A privatização é ideologia, sim!
Colunista

A privatização é ideologia, sim!

1. Um dos primeiros estratagemas mundiais utilizados pelos neoliberais é o facto de começarem logo no início por dizer que o neoliberalismo não tem ideologia. É deste modo que procuram que fique completo o truque que começou a ser montado com aquela pintura da ideologia como uma coisa muito má e uma característica exclusiva do comunismo e dos socialistas, os vermelhos. Mas, é suficiente que saibamos todos que a ideologia é um conjunto de ideias interligadas que constituem um quadro geral que serve de orientação para a governação, para que fiquemos todos a saber que, afinal, os neoliberais também têm ideologia, sim! Porque os neoliberais têm um conjunto de ideias próprias que, designadamente, lhes servem de orientação na sua governação;

2. Que ideias são essas que compõem esse conjunto de traços característicos dos neoliberais? Consideremos apenas três desses traços: i) A ideia de Estado amigo das empresas, mas em prejuízo das famílias. Uma vez que a prioridade da governação são as empresas e os empresários amigos; ii) A defesa de uma menor regulação possível do mercado para que as empresas possam atuar o mais livremente possível e, assim, obterem os maiores lucros imagináveis. É nesta lógica de menor regulação que se enquadra a extinção de maior parte de agências reguladoras, fundidas numa única, a Agência de Regulação Multisetorial da Economia (ARME), logo com menor capacidade de influenciação e maior probabilidade de dominação pelo governo; e, por fim, iii) A pérola da direita neoliberal que é a privatização, bem entendido, como a consequência de uma ideia clara de se ir para o governo com o objetivo de desmantelar o Estado e entregá-lo, aos pedaços, exclusivamente, aos empresários amigos;

3. Contudo, se a privatização é ideológica, já ter o próprio Estado a esconder os meandros do processo, designadamente, os contratos e as propostas, é crime! Pior ainda, ter eventuais futuros recetadores de bocados dessas privatizações, a virem a público defender que é assim mesmo que a República deve atuar, procurando fazer uma nova escola de gestão da coisa pública. É o cúmulo do grau de descaramento em relação à Nação! É a total subversão da ética e da moral públicas, aos novos princípios orientadores da ação, próprios dos vendilhões do templo!

4. Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia em 2001, é a autoridade máxima mundial no estudo da desigualdade criada pela economia, tendo estudado este fenómeno durante mais de 50 anos. Foi vice-presidente sénior do Banco Mundial e Presidente do Conselho de Assessores Económicos durante a presidência de Bill Clinton. Este economista chamou atenção para o facto de o Governo ter várias formas de favorecer a criação de riquezas pessoais. A privatização é uma delas, na medida em que o Governo apanha recursos que são de todos os cidadãos do país – ou seja públicos – e oferece a pessoas individuais para se enriquecerem e, logo, aumentarem a desigualdade. É um exercício difícil de aceitar: o Governo paga todas as dívidas, manda para casa e indemniza o pessoal considerado excedentário, paga pilotos em casa sem voarem, distribui mil contos para cada pessoal navegante ir morar na ilha do hub, o Sal, compra cinco aviões, estabelece que não tem de fazer o transporte de doentes inter-ilhas, ou seja, cria todas as condições para passar a ter lucro e – precisamente, nessa hora – entrega para privados passarem a ficar com os lucros! Porque é que depois de todo este esforço, com o dinheiro de todos os caboverdeanos, Cabo Verde não fica com a empresa, e aplica os lucros no desenvolvimento do país? Que lógica é esta?!

5. É Stiglitz que invoca o exemplo dos banqueiros para nos alertar sobre o mito da bondade dos empresários: “como consequência da crise financeira, hoje ninguém pode defender que as atividades privadas de interesse pessoal dos banqueiros conduziram ao bem-estar de todos. No máximo, conduziram ao bem-estar dos banqueiros, com o resto da sociedade a suportar os custos”;

6. Muito ao contrário da atuação dos empresários, cujos lucros revertem-se para os próprios bolsos, é o caso da Noruega em que o governo controla várias empresas – sim, Governo! – e todas elas mantidas longe do fantasma das privatizações! Os lucros dessas empresas do Estado são canalizados para grandes investimentos no chamado “bem-estar social”, também conhecido pelo nome “felicidade”! Esta é uma das razões porque, nos últimos doze anos, a Noruega tem vindo a ocupar o lugar de topo em termos de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e com a criminalidade praticamente no zero. É um dos países mais igualitários do planeta onde quase não há diferenças entre os salários mais altos e os mais baixos. A Noruega tem o maior fundo soberano do mundo criado com os lucros do petróleo. São 900 bilhões de dólares para garantir o futuro das gerações futuras!

7. Portanto, no país onde há mais felicidade no mundo é o governo que controla várias empresas, garantindo, assim, o investimento dos lucros na vida das pessoas. Pois, é um país que não segue aquela ideia de que é melhor colocar a riqueza nacional nas mãos de privados para, depois, supostamente, redistribuírem para as pessoas. É o próprio Estado que faz essa redistribuição – e muito bem –, sem intermediários movidos a lucros!

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine

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