"Provedor da Praia” salta das denúncias do Facebook para associação cívica
Sociedade

"Provedor da Praia” salta das denúncias do Facebook para associação cívica

Uma página de Facebook tornou-se no maior local de denúncia dos problemas da capital cabo-verdiana e a adesão é tal que, mesmo com ameaças pelo meio, o “Provedor da Praia” passou este mês a associação cívica.

“Posso dizer que 90% das publicações são da parte dos cidadãos. Eles colocam os problemas e nós publicamos. Eu vejo se os problemas que colocam estão dentro de propósito da página, mas é tudo de âmbito cívico, não há política. Só assuntos da cidade, dos bairros, das diferentes zonas da cidade”, explicou à Lusa João Cardoso, conhecido como “provedor” da Praia, concelho com cerca de 150 mil habitantes.

“Eu retifico: Sou administrador de uma página que se chama o 'Provedor da Praia'. Bom, abreviadamente, as pessoas chamam-me provedor da Praia”, brinca este engenheiro de construção civil de 60 anos, funcionário de uma empresa pública cabo-verdiana.

A aventura da página “Provedor da Praia” começou em 2016, com um desafio de um amigo da ilha de São Vicente à sua veia interventiva e crítica. Ambos lançaram os respetivos provedores no Facebook, um para o Mindelo (São Vicente) e outro para a Praia (Santiago), para “denunciar as coisas que não estavam bem” nas suas cidades.

“Abre-se um buraco no asfalto e ou não repõem ou colocam calçada, buracos que ficam eternamente aí. São desses problemas”, relata.

Casos de insegurança ou de falta de limpeza das ruas integram o grosso das denúncias – publicadas de forma anónima após verificação - foram crescendo e o “Provedor da Praia”, hoje com cerca de 4.800 membros, conseguiu aguentar a pressão e as retaliações, quando até em 2018 a página foi atacada, ficando um mês inoperacional.

“Eu criei a página sozinho. Claro, no início tive apoios, mas depois de algum tempo, os apoios, que eram voluntários, acabaram por desaparecer, porque infelizmente há represálias e as pessoas têm medo, têm o seu trabalho e eu entendo, acabaram por desistir. Eu estou há quase sete anos praticamente sozinho a fazer esse trabalho, que é um trabalho cívico. Não tem nada a ver com cariz político, é voluntário, gratuito e que eu faço pela minha cidade, pelo meu concelho”, explica João Cardoso.

Nada que não impeça de regularmente receber também na caixa de mensagens várias ameaças: “Já, muitas vezes. Muitas vezes. Inclusive já tive problemas na minha residência, mas graças a Deus foi só uma vez. Recebo ameaças via Messenger, claro, de pessoas anónimas. Mas acho que isso são só tentativas de amedrontar”.

A página conta com publicações que já tiveram alcance de 300.000 pessoas, em Cabo Verde e fora do país, garante ainda.

As denúncias mais recorrentes passam ainda por locais com falta de iluminação pública, problemas de pavimento após obras ou avarias constantes nas redes de água e de saneamento, mas, sobretudo nos últimos tempos, de criminalidade, com assaltos em várias zonas a qualquer hora, rapidamente denunciadas na página. Aponta igualmente o “caso gritante de poluição sonora” nos bairros da Praia e o problema do atendimento nos diferentes serviços públicos e privados.

“O mau atendimento nos bancos comerciais, em que se nota a ausência de funcionários (…) Muitos clientes já contactaram o Banco de Cabo Verde, como entidade reguladora, para fazerem as suas queixas, mas não têm resposta. A ausência de casas de banho, o atendimento é muitíssimo lento”, enumera, sobre essas denúncias que publica, normalmente acompanhadas de imagens.

A nova etapa iniciou-se em 20 de outubro, com a publicação da constituição da associação sem fins lucrativos com o mesmo nome e com o objetivo de “promover o exercício da cidadania ativa”, dar “visibilidade às reivindicações dos cidadãos”, de “procurar soluções para os problemas das comunidades do concelho da Praia”, bem como “criar espaços de diálogo entre as comunidades e os poderes públicos” ou “apoiar a elaboração de políticas e programas para cidadania, educação, saúde e assistência social”, entre outros.

São mais dez cidadãos que se juntam ao ‘provedor’ nesta associação, também para dar resposta mais rápida à avalanche de pedidos e denúncias que recebe.

“Estou sozinho neste momento. Por semana recebo centenas e não tenho tempo. Tenho o meu trabalho e faço isso à noite, aos fins de semana e sempre que tenho um tempo livre, porque agora as demandas são maiores”, admite.

“Vamos distribuir as tarefas e acho que teremos capacidade de dar mais resposta em tempo mais célere às solicitações dos cidadãos. E claro que nós não publicamos só por publicar, temos de muitas vezes de ir ao terreno verificar”, acrescenta.

O impacto do “Provedor da Praia” é tal que algumas empresas públicas negociaram entendimentos para tentar resolver os problemas antes da publicação das denúncias, receando o impacto: “Dar um tempo de 48 horas, 72 horas para resolução de problemas sem publicar, se conseguirem, eu não publico. Se não conseguirem, eu publico”.

Noutros casos, é o próprio ‘provedor’ a tratar com técnicos das empresas a resolução dos problemas denunciados.

Garante que a página ajudou a mudar a cidadania na capital cabo-verdiana: “Acho que mudou e muito. E os exemplos são vários, mas não são visíveis a olho nu. Mas posso dizer lhe em relação à via pública já não acontece a situação que acontecia antes. A AdS [Águas de Santiago] e outras empresas que laboram na via pública têm muito mais cuidado em executar os trabalhos. Executar e concluir”.

Também nos transportes públicos urbanos “houve muitas melhorias graças às denúncias”, o mesmo acontecendo em relação à poluição sonora, ao trabalhar em colaboração com a Inspeção-Geral das Atividades Económicas na “denúncia de discotecas e bares clandestinos”.

“A minha satisfação é isto, contribuir para que os cidadãos se sintam melhor nesta cidade e que as coisas melhorem”, conta, garantindo que a prioridade é a “vida da comunidade” da Praia, nos seus diferentes bairros, num trabalho que o facto de estar próximo da reforma permite realizar com tranquilidade e sem pressões.

“Acho que tenho muito mais apoio do que inimigos”, conclui.

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