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Faleceu Humbertona. Perfil de um notável cabo-verdiano – combatente, músico, diplomata e gestor
Sociedade

Faleceu Humbertona. Perfil de um notável cabo-verdiano – combatente, músico, diplomata e gestor

Morreu esta manhã em São Vicente aos 83 anos, vítima de doença prolongada, o conceituado músico Humbertona, nome por que era tratado Humberto Bettencourt Santos, que muito mais do que compor foi combatente da liberdade da Pátria (negociou com Portugal os termos e acordos para a Independência Nacional), destacado gestor e diplomata. Cabo Verde perde um notável cidadão.

Humbertona será mais conhecido pela generalidade dos cabo-verdianos pelo seu virtuosismo na guitarra, e seus aclamados discos onde eternizou temas como Sodade, Dispidida ou Miss Perfumado, mas Humberto Bettencourt Santos tem um percurso histórico e intervenção pública muito mais vasta.

Ele veio ao mundo no ano de 1940, em Santo Antão, de onde sairia cedo para viver com a mãe, professora, em São Vicente, ilha que lhe mudaria o curso do seu destino, ao despertar-lhe para a música. 

Aprendeu com o mestre Malaquias Costa até se estrear para o grande público em 1957, no Éden Park, ao lado de Valdemar Lopes da Silva. Depois, em conjunto com o pianista Tony Marques, forma, em 1964, o conjunto Ritmos Caboverdianos, tocando guitarra elétrica. Aliás, Humbertona, que era o viola solo do conjunto, terá tido um papel fundamental na adaptação inicial da guitarra elétrica à música de Cabo Verde, que até então era menos utilizada.

No onda do sucesso do grupo, Humberto Bettencourt Santos abandona o conjunto e parte para a Bélgica para estudar economia, onde juntar-se-ia ao PAIGC.

Na Bélgica, o estudante de Economia dava sempre um pulo à vizinha Holandae particularmente, a cidadede Roterdão, sede da editora Morabeza Records. Colaborou com Luís Morais na gravação dos primeiros trabalhos da editora.

Em 1966, Humbertona lança seu primeiro trabalho discográfico a solo, ‘Lágrima e Dor’, continuando o ritmo pelo menos até 1973 granvandi outros discos que trouxeram relíquias como as músicas Sodade, Dispidida, Morna Câ Sô Dor e Miss Perfumado. Voltou a juntar a Valdemar Lopes da Silva para gravar o disco Protesto e Luta – Música de Cabo Verde, um trabalho único no seu género, cujas músicas foram concebidas para serem utilizadas na mobilização para a causa da Independência.

Sim, a causa independentista era o assuno daquela época, daí o surgimento de várias músicas de intervenção.

Após o 25 de abril de 1974, Humberto Bettencourt regressa a São Vicente. Participa ativamente no processo de Independência Nacional, nomeadamente ao nível das negociações com Portugal para o contencioso colonial. A questão da situação dos funcionários públicos, os equipamentos e as empresas que se encontravam a operar no país fizeram parte desse dossier então chefiado por Osvaldo Lopes da Silva.

A 30 de junho de 1975, durante as eleições para a Assembleia Nacional, Humberto Bettencourt Santos é eleito deputado nacional por São Vicente. Foi reeleito para um segundo mandato em 1980, cargo que exerceu até, dois anos mais tarde, ser nomeado para chefiar a Embaixada de Cabo Verde na Holanda. Durante o período que foi deputado nacional, foi incumbido de reestruturar o setor das pescas, acabando por criar a primeira Direção Nacional de Pescas e da qual foi diretor geral durante sete anos (de 1975 a 1982).

Como embaixador, Humberto Bettencourt Santos representou Cabo Verde, entre 1982 e 1987, nos países do Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo), nos países nórdicos e na União Europeia enquanto instituição. Na altura havia poucas embaixadas e cada uma tinha uma vocação regional. Era a partir da Holanda que fazia essa cobertura regional dos interesses de Cabo Verde na zona. Trabalhava essencialmente na diplomacia multilateral como resultado da adesão de Cabo Verde, em 1975, à Convenção de Lomé, o acordo comercial entre a União Europeia (na altura denominada de Comunidade Económica Europeia – CEE) e os países ACP (uma associação de 79 países da África, Caribe e Pacífico). Também desenvolveu importantes relações com a Holanda e a Suécia ao nível da cooperação bilateral. Coube-lhe ainda a organização da visita do presidente Aristides Pereira à Holanda, Suécia, Finlândia, Bélgica e à Islândia. Com o sucesso desta importante visita de Estado, deu por terminada a sua comissão naquela zona da Europa.

Em maio de 1987, Humbertona foi enviado para Nova Iorque, onde chefiou durante quatro anos a missão diplomática nas Nações Unidas. Enfrentou uma realidade completamente diferente da vivida na Europa, onde todos os países precisam uns dos outros e onde o relacionamento multilateral é potenciado pelos diferentes objetivos de cada um ao nível dos negócios estrangeiros.

Em Nova Iorque, Humberto Bettencourt viveu momentos únicos e que iram para sempre mudar a história da humanidade: a queda do muro de Berlim, a Independência da Namíbia, o fim do Apartheid, o aparecimento e consolidação da Perestroika, entre muitos outros acontecimentos enriquecedores na sua já rica carreira diplomática.

Regressou a Cabo Verde em janeiro de 1991, antes das eleições presidenciais. Como funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, solicitou uma licença para poder assumir o cargo de Diretor de Campanha de Aristides Pereira. Apesar da forte derrota obtida nas eleições legislativas e da perda de intensão de voto que foi registada ao longo da campanha, Aristides Pereira assumiu a derrota, mas decidiu que não deveria desistir, indo até ao final. À semelhança de outros que tinham perdido o poder, o regresso de Humberto Bettencourt Santos ao Ministério dos Negócios Estrangeiros mostrou-se penoso, pois não lhes era atribuída qualquer função ativa, caindo muitos deles no esquecimento confinados exclusivamente ao ironicamente denominado “Depósito Geral de Adidos”. Esta situação levou-o a pedir, ainda em 1991, uma licença sem vencimento de longa duração.

Após ter enviado o currículo profissional para várias agências internacionais ligadas às pescas, foi convidado a chefiar uma equipa de consultores para o desenvolvimento da pesca artesanal em toda a costa moçambicana. Foram dois meses de missão: um em Moçambique e o outro em Roma. A partir desse projeto foi convidado a integrar outros projetos em áreas distintas da economia. A experiência adquirida fora da diplomacia, levou-o a abrir em 1992 na cidade da Praia, juntamente com Jorge Lopes, a Basic, primeira escola de informática de Cabo Verde. Este projeto permitiu-lhe permanecer durante quase cinco anos em Cabo Verde. Terminado o período de licença sem vencimento, regressou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Era ainda um período de alguma crispação política e, como tal, durante esse tempo, também não lhe foi atribuído nenhum papel ou cargo de relevo no Ministério. Ao fim de quase um ano, foi convidado para ser Embaixador em Moscovo, numa embaixada que sabia estar prestes a ser encerrada. Desiludido, cinco dias depois apresentou o pedido de desoneração do cargo. Deixaria, nesse momento, o funcionalismo público de forma definitiva.

Abraçou a carreira empresarial, gerindo e dinamizando a escola de informática. Continuou as consultorias e criou uma unidade de organização de eventos.

Politicamente, participou ainda no núcleo da campanha eleitoral de 2001 que elegeu José Maria Neves para Primeiro-Ministro de Cabo Verde. Após as eleições, foi-lhe proposta uma pasta ministerial no então governo. Apesar de inicialmente ter aceitado o cargo, teve de o renunciar, pois o momento era inoportuno. Com a esposa na Bélgica a lutar contra um cancro, um filho a terminar o liceu em Boston e uma filha a terminar a formação no Brasil, Humberto Bettencourt Santos viu-se sem condições de assumir a pasta que lhe tinha sido delegada. O ordenado que iria receber como ministro, não lhe permitiria alcançar os mesmos ganhos que obtinha como consultor e empresário.

Uns meses depois, foi convidado a assumir o cargo de Presidente do Conselho de Administração da Cabo Verde Telecom. Uma vez que era uma função não executiva que lhe dava liberdade para se deslocar e acompanhar os tratamentos da esposa e a formação dos filhos, acabou por aceitar. Esteve à frente dos destinos da CV Telecom de maio de 2001 até setembro de 2012, altura que escolheu para se reformar.

Humbertona esteve nestes últimos anos como cônsul honorário da Holanda e da Bélgica, Fez ainda parte da comissão nacional responsável pela candidatura à UNESCO da morna como Património Imaterial da Humanidade.

PR lamenta perda

Em nota de pesar, o Presidente da República, José Maria Neves, diz que foi com profunda consternação e pesar que tomou conhecimento do falecimento de Humberto Bettencourt Santos, carinhosamente tratado por todos como Humbertona.

“Uma figura multifacetada, pessoa de fino trato, Combatente da Liberdade da Pátria, que, muito cedo e enquanto membro do coletivo de estudantes universitários na Bélgica, aderiu às causas da liberdade e da independência de Cabo Verde, tendo desempenhado um papel de destaque na mobilização de outros compatriotas, Diplomata e músico exímio, em cuja memória me inclino com respeito”, lê-se.

 

*Com Nôs Genti

Foto: Hélder da Paz

 

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