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Ulisses Correia e Silva e o assalto ao aparelho do Estado*
Ponto de Vista

Ulisses Correia e Silva e o assalto ao aparelho do Estado*

O MpD vive momentos agitados, a paz podre dos consensos de conveniência foi abalada pela ousadia de um homem que, sem que nada o fizesse prever, desafiou o poder ilimitado de um líder partidário que se julga uma figura providencial e, por via dessa convicção, exige a lealdade dos fracos, dos alpinistas sociais, dos carreiristas e dos que buscam as migalhas do bodo dos poderosos.

Habituado a não ser contestado, Ulisses Correia e Silva sente-se desconfortável na posição que a história e o seu próprio trajeto, as suas contradições e a sua soberba política, lhe impuseram como circunstância. Pela primeira vez, desde que é presidente do MpD, tem um opositor interno na disputa para a eleição do próximo líder do partido.

A Candidatura de Orlando Dias surge num contexto muito particular, decorrente de forte condicionamento à liberdade de opinião, à aniquilação do debate no MpD e reiteradas tentativas de imposição do pensamento único.

É minha opinião que estes sinais inquietantes são datados no tempo, num processo orquestrado que levou Ulisses Correia e Silva à liderança do partido, com o forte objetivo de, num primeiro momento, assaltar o MpD e, a partir daí, promover o assalto ao aparelho do Estado. Trata-se de um projeto de poder pessoal, mas vai muito para além disso, trazendo por arrasto a intenção de descaracterizar o MpD, rompendo com a sua identidade histórica e a sua natureza de partido popular e de causas.

O ASSALTO AO PARTIDO

A primeira parte dessa investida traduziu-se na despolitização do Partido, de que é exemplo primeiro a substituição (mais tarde revertida) da figura de secretário-geral para a de administrador geral, neste caso, em particular, para menorizar o papel do então detentor do cargo, Austelino Correia, visto por Ulisses como um risco para a sua liderança.

Paralelamente, procedeu-se a uma revisão estatutária que apenas serviu para desorganizar toda a estrutura partidária, acabando com as comissões políticas regionais e manipulando as eleições para as comissões políticas concelhias, que se traduziu no desaparecimento dos núcleos locais e na debandada da militância. Paralelamente, ainda, criaram-se as condições para o esvaziamento da autoridade política dos órgãos de direção, nomeadamente, a Comissão Política Nacional e a Direção Nacional, passando a concentrar-se todo o poder decisório na figura de uma única pessoa: o presidente do partido.

A OCULTAÇÃO DO PARTIDO

A estratégia para as legislativas de 2016 assentou na ocultação do partido, que passou a chamar-se “Cabo Verde”, e na glorificação e culto da personalidade de Ulisses Correia e Silva, apresentado a partir daí como uma espécie de figura providencial. A primeira fase do processo de liquidação do MpD estava praticamente concluída.

Ulisses foi apresentado como o grande vencedor das eleições de 2016 – ele e apenas ele -, ocultando-se completamente o papel da militância e dois aspetos fundamentais: 1. O descrédito da governação de José Maria Neves, no seu último mandato; 2. A liderança fraca e pouco credível do PAICV de Janira Hopffer Almada. Isto é, mais do que uma vitória pessoal de Ulisses, o resultado das eleições foi, antes de mais, uma derrota de José Maria Neves, e decorrência da firme vontade de mudança do eleitoral, traduzida numa “aliança” conjuntural interclassista, interideológica e multigeracional.

O ASSALTO AO APARELHO DO ESTADO.

Embora já com manifestações anteriores de descontentamento, o sentimento de insatisfação da militância e da base de apoio assume particular relevância com a chegada do MpD ao poder, começando a ruir a mitologia do “somos diferentes, fazemos diferente”, da “transparência”, da “meritocracia” e outros chavões de uma propaganda despida de conteúdo. O partido de Ulisses, que há muito deixara de ser o MpD, afinal, também não era “Cabo Verde”, antes uma espécie de sociedade anónima com um (mau) conselho de administração e plataforma para a distribuição de cargos aos amigos, de momento (salvo uma ou outra circunstância conjuntural) que se posicionassem por uma atitude de fidelidade e reverência ao líder incontestado… O processo de assalto ao aparelho do Estado iniciava a sua caminhada.

À sua volta, Ulisses rodeia-se, no essencial, do grupo sistémico que já o havia acompanhado na Câmara Municipal da Praia, juntando, pelo meio, alguns convertidos ao “ulissismo” e ao exercício autocrático do poder, que é uma das características da personalidade de Ulisses Correia e Silva.

O investimento na requalificação do país, a introdução de medidas promovendo a massificação da formação e qualificação profissional, a par de uma forte investida na área social, no investimento e nos apoios ao crédito, mas também no ensino, mantiveram Ulisses numa espécie de “estado de graça”, ao mesmo tempo que se aprofundava o aniquilamento faseado do MpD, instituição e património político, histórico e cultural dispensável, segundo o “ulissismo”, contrariando, inclusive, aquilo que a história política mundial nos ensina: o mais fácil é chegar ao poder, é apenas necessário estar na hora certa e no sítio certo e não hesitar no “assalto ao Palácio de Inverno”… O difícil é manter o poder, sendo aí que qualquer partido surge como elemento central de mobilização, de ativismo e de suporte político ao governo.

Num contexto de grande dificuldade, com o País fustigado por anos de seca e por uma pandemia, o governo lá se foi aguentando, pesem alguns escândalos, muito graças a dois fatores principais: 1. A gestão do combate à pandemia, que no essencial esteve à altura em termos de medidas públicas; 2. As divisões internas no PAICV, a fragilidade da sua liderança e os baixos níveis de aceitação pública de Janira Hopffer Almada.

AUTÁRQUICAS ACENTUAM DIVÓRCIO COM A MILITÂNCIA

As eleições autárquicas de 2020 acentuam o divórcio entre a cúpula e a militância, num momento em que o desgaste da governação já se começa a sentir. As más opções e interferências nos processos de escolha dos candidatos locais, dão uma vitória aritmética ao MpD, mas, paralelamente, uma pesada derrota política com a perda da Câmara da Praia, das câmaras de São Filipe e Ribeira Grande, e mais grave, ainda, a derrota em municípios considerandos “bastiões históricos” ventoinha, como sejam, Tarrafal de Santiago e São Domingos. Embora no caso do Tarrafal, não tenha sido a escolha do candidato que determinou, por si só, a derrota eleitoral, havendo que encontrar razões anteriores, na gestão da própria autarquia e na manutenção de um presidente que, objetivamente, nunca esteve à altura.

ULISSES VOLTA A ENGANAR AS BASES

De todo o modo, a partir daqui os sinais de alerta “laranja” começam a apoquentar a liderança do MpD que, neste contexto, percebeu que, embora hipocritamente, teria de se reaproximar das bases para não pôr em causa as eleições legislativas de 2021, prometendo que as coisas, em termos de gestão do partido, já não seriam como antes...

Embora desconfiando das “boas intenções” de Ulisses, mas centrando-se fundamentalmente, na necessidade de derrotar o PAICV nas urnas, militância e base de apoio engajam-se completamente no objetivo da vitória eleitoral, com fortes mobilizações na Praia e em Santiago Norte, lideradas, respetivamente, por Beta e Austelino Correia.

No entanto, logo no momento seguinte, Ulisses volta a virar as costas às bases e a retomar a pose de figura providencial, prejudicando e perseguindo, mesmo, internamente, muitos dos que o ajudaram a vencer as eleições.

FOI ULISSES QUE TRAMOU CARLOS VEIGA

Mais adiante, num contexto de grande complexidade, as eleições presidenciais são paradigmáticas das verdadeiras intenções de Ulisses e da sua corte.

Ao contrário dos alertas de vozes mais avisadas, Carlos Veiga avançou tarde demais para o terreno, começou a campanha menorizando a sua figura com um boneco e abrindo espaço para ataques dos seus adversários, e permitiu que Ulisses o secundarizasse.

Mas os problemas de Carlos Veiga começaram lá bem atrás, quando não percebeu que o cargo de embaixador nos EUA era um presente envenenado do presidente do MpD, que não gosta de sombra nem de empecilhos que possam prejudicar a sua agenda pessoal. Foi assim com Veiga, com Eurico Monteiro (um outro possível candidato) e com José Filomeno Monteiro, um dos mais brilhantes pensadores políticos de Cabo Verde.

Que Ulisses Correia e Silva foi o principal fator da derrota de Carlos Veiga nas eleições presidenciais, não parece suscitar dúvidas, mesmo entre os militantes do MpD (e, principalmente, entre eles).

Ulisses tem uma agenda pessoal (isso do “Nha Partido é Cabo Verde”, sempre foi uma invenção do marketing para disfarçar a sua desmedida soberba política) e ambiciona vir a ser presidente da República.

Feitas as contas, percebeu que, com Carlos Veiga na presidência, as suas possibilidades seriam limitadas já que, a tendência de alternância poderia trocar-lhe as voltas. Para ele, José Maria Neves é o presidente ideal, aquele que lhe permitirá, após a sua saída do governo, uma travessia do deserto e ressurgir como o “salvador da pátria”. Ulisses sempre gostou de associar à sua pessoa uma iconografia gloriosa…

Se assim pensou, melhor o fez! Tomou completamente conta da campanha, secundarizando o candidato, fazendo girar ministros pelos palcos e colando Carlos Veiga ao executivo, fazendo-o passar por uma espécie de cordeirinho ao serviço do governo. E Veiga - o que não deixa de ser extraordinário para um político com a sua experiência - engoliu o anzol.

Mas fez mais: de forma calculista, permitiu que se anunciasse o aumento de bens essenciais e do IVA (que mais tarde não chegou a confirmar-se), levando para a campanha o descontentamento popular. Com esperteza, Ulisses aproveitou o descontentamento com a sua pessoa e a sua governação para transformar isso em arma de arremesso contra Carlos Veiga. E, assim, tramou a maior referência histórica do MpD.

A não terem sido estas as intenções de Ulisses, só nos restaria a possibilidade de ser um perfeito idiota, já que, se queria Veiga na presidência, fez tudo ao contrário.
É neste contexto complexo e contraditório que Orlando Dias avança para a liderança do MpD, colocando Ulisses na posição de, pela primeira vez, ter um adversário nas eleições internas. Sendo, também, pela primeira vez, que o descontentamento interno tem uma referência física de oposição ao atual presidente do MpD, o que pode abrir possibilidades de criação de uma corrente crítica organizada e mobilizadora, única forma de (segundo vários militantes) obstar ao processo de liquidação do partido, iniciado em 2013.


* Título da responsabilidade da Redação.

** Texto original publicado pelo autor no Facebook.

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