"E a gravidade maior foi ver o tribunal constitucional, depois de todas as aberrações cometidas, quer pela Relação, quer pelo Supremo, sancionar, através de um acórdão que certamente permanecerá para sempre como uma anátema no seu curriculum, a ilegalidade de um dos órgãos do poder, a assembleia nacional, que autorizou a prisão de um deputado sem culpa formada e dez meses depois inventou um simulacro de resolução que em verdade foi uma emenda que apenas piorou o soneto já de si tão mal escrito."
O advogado e colunista do jornal “Público”, Francisco Teixeira da Mota, publicou no jornal de 16.03 passado um artigo com o sugestivo título “Kafka está a escrever em Cabo Verde”. Como não podia deixar de ser, esse título imediatamente nos remeteu para o mais que kafkiano processo criminal que atingiu o deputado Amadeu Oliveira, com a diferença essencial de que o atual processo já beneficia das grandes conquistas da civilização que provavelmente ainda não existiam no tempo do Joseph K.
Por exemplo, K. morreu sem chegar a conhecer o exato crime de que foi acusado, enquanto que ao Amadeu Oliveira os juízes tiveram a bondade de lhe indicarem o nome exato do crime de que viria a ser acusado e por que foi condenado: “atentado contra o estado de direito democrático”! E deram-lhe sete anos!
Mas vendo bem, é uma verdadeira sorte não termos pena de morte no país, de contrário não se sabe que mais teriam os juízes inventado para o sujeitar e calar. Teixeira da Mota reconhece que o Amadeu não é uma personagem particularmente simpática à Justiça cabo-verdiana, mas, diz e bem, a Justiça não deveria ter “estados de alma”. Ora acontece que todos, mas todos, os magistrados que se viram envolvidos nos processos Amadeu Oliveira viveram intensamente em “estados de alma” contra ele, o que não lhes permitiu agir com justeza às acusações que lhe imputaram. Pelo contrário, mal o Parlamento lhes ofertou a oportunidade de o prender, caíram sobre ele como lobos vorazes.
Teixeira da Mota enumera dos 3 juízes desembargadores (Circe da Costa Neves, Maria das Dores Gomes e Helder Maurício) que não hesitaram em transformar um eventual crime de auxílio à evasão (prisão até um ano) num crime de atentado ao estado de direito democrático que também não hesitaram em punir com uma pena de sete anos.
Mas se esses três merecem ser referidos, sobretudo pela arte ajurídica de inventar um crime a partir de um quase nada, será injusto esquecer o desembargador Simão Santos, afinal das contas o sal desta panela, enquanto o juiz que, atropelando todas as leis e normas referentes ao estatuto e à condição dos deputados, mandou encarcerar, sem djobê pa lado, um eleito nacional garantido por imunidades que ele não ti-
nha competência para suspender, cometendo desse modo um crime de prevaricação. Mas que, coisas deste país mais livre da África, acabou sendo “punido” com a sua elevação à dignidade de conselheiro do Supremo Tribunal da Justiça.
Teixeira da Mota diz não ser possível relatar no seu artigo todas as graves ilegalidades e inconstitucionalidades suscitadas e rejeitadas pelos tribunais no processo Amadeu Oliveira. Ele tem razão, são tantas que daria um tratado de centenas de páginas. E pode-se dizer sem receio que todos os poderes do Estado, Parlamento, Justiça, Governo, se conluiaram para perseguir, tacita ou expressamente, um único homem erigido, em inimigo público.
Aliás, o episódio do computador que lhe é abusivamente subtraído, é elucidativo dessa verdadeira conspiração silenciosa que mais não visa que “esmigalhar” o homem que ainda há em Amadeu Oliveira.
Ouvia há dias o primeiro-ministro de Cabo Verde a vangloriar-se de Cabo Verde ser considerado o país mais livre da Africa. E vendo bem, não será difícil ter essa fama que apenas provém do amorfismo em que vivemos, um país que em quase 50 anos de independência não conseguiu desenvolver sequer uma amostra do que se convenciona chamar-se “sociedade civil” com voz pública para se contrapor aos abusos e desmandos e prepotências e arrogância da sociedade política, uma terra de criticadores mas sem espirito crítico, onde ninguém se atreve a dizer que o nosso poder político tem sido totalitário e esmagador de todas as opiniões diferentes.
Não obstante todos os desmandos de que é acusado, Amadeu Oliveira devia ser exemplo para os cidadãos deste país, particularmente para os seus colegas advogados. Errou muitas vezes, sem dúvida, mas mostrou-se digno da profissão que escolheu: denunciou sem receio a ideia corporativa que persiste na instituição judicial, denunciando graves anomalias que não se provou, por entidade independente como devia ter sido, não terem realmente existido.
Aliás, o próprio processo crime em que foi condenado a sete anos de prisão, não ficou isento de inserção de falsidades, como ele já denunciou, como é o caso da falsa distribuição do seu processo, como já chegou a constar do mesmo.
Temos, pois, que agradecer ao advogado Francisco Teixeira da Mota o facto de ter denunciado esse doloroso processo que vem atingindo sem piedade um homem solitário. Estando nós numa terra de grandes e doutas personalidades e que se dizem ilustres, que sem reservas se ocupam e se preocupam com o que se passa em terras distantes do nosso horizonte, cerram no entanto os olhos diante de uma realidade que em nada fica a dever aos totalitarismos mais abjetos.
Que importa todo o mundo, se o mundo todo é aqui, ensina a cantora Maria Bethania. E foi necessário que viesse um estrangeiro, ainda que não um estranho, para dizer, Tomem atenção, Cabo Verde, esse país de que dizem e se diz o mais livre da África, tido entre os mais democráticos do mundo, não está andando pelo caminho da Justiça, antes muito pelo contrário.
E a gravidade maior foi ver o tribunal constitucional, depois de todas as aberrações cometidas, quer pela Relação, quer pelo Supremo, sancionar, através de um acórdão que certamente permanecerá para sempre como uma anátema no seu curriculum, a ilegalidade de um dos órgãos do poder, a assembleia nacional, que autorizou a prisão de um deputado sem culpa formada e dez meses depois inventou um simulacro de resolução que em verdade foi uma emenda que apenas piorou o soneto já de si tão mal escrito.
(Artigo originalmente publicado no A Naçáo e enviado para publicaçáo no SM pelo Grupo de Apoio de Amadeu Oliveira)
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