Cabo Verde está a celebrar 50 anos de independência. Um dos grandes ganhos disso é uma lei que permite o ensino do berdianu, o crioulo de Cabo Verde, que chegou a ser várias vezes proibido1 no setor educativo do país, que conta com mais de 200 anos de funcionamento ininterrupto.
O berdianu chegou à escola, e ligado a isso, a sociedade conta e espera que a sua língua, finalmente, seja didatizada e ganhe condições de ser padronizada (mas em moldes pós-modernos).
Do que estamos a falar quando apresentamos os conceitos de Didatização e padronização em moldes pós-modernos? Ambos são operações necessárias ao crioulo berdianu, mas são conceitos e processos diferentes e, no contexto berdianu atual, um é vital. O outro, não. O primeira (didatização), tem enfoque na língua materna, mas enquanto sistema de signos e ferramenta mais poderosa para a formação intelectual e moral, e precisa deixar de ser um saber erudito restrito a calhamaços de artigos científicos do mundo académico-universitário, “do mundo dos doutores” para ser convertido em saber a ser ensinado a crianças e adolescentes em escolas e população em geral, a partir de um currículo estruturado, com processos de diagnóstico, aulas, avaliação e certificação, que tomará mais de uma década na vida do estudante. Como produtos concretos, a didatização deve apresentar softwares por faixa etária, dicionários escolares (não dicionários gigantescos), dicionários temáticos, manuais escolares, sebentas e gramáticas escolares por faixa etária, cadernos de exercícios por faixa etária e níveis de escolaridade, guias de professores por níveis e faixas de escolaridades, turmas de estagiários, etc. Neste sentido, é tarefa conjunta de gramáticos, pedagogos e cientistas da educação (e pode-se contar com outros especialistas) que se ajudam mutuamente e encontram caminhos, de entre eles, a teoria do conhecimento2 que deve estar na base dessa didatização. O segundo, a padronização, tem enfoque na língua, mas enquanto entidade político-institucional. Dou um exemplo: Uma padronização baseada numa teoria de conhecimento que propugna um padrão centrado em determinadas variedades geográficas ou sociais3, sem um amplo conhecimento das leis linguísticas do berdianu, por parte da população, coloca problemas hoje, tendo em conta as amplas liberdades e garantias em termos de direitos à expressão e diversidade constantes das Leis locais, convenções e tratados de que Cabo Verde é parte. Mas a padronização remete, também, para conceito de língua enquanto instrumento de poder e nisto, os atores em foco são os agentes políticos. Em Cabo Verde, esses atores têm sua ação bitolada em curtos anos de mandato eleitoral (5 anos para o poder central e 4 para o poder local). Tecnicamente, a padronização será mais fácil, sem violência, depois de haver um conhecimento profundo das estruturas e funcionamento da língua por parte da comunidade de falantes, processo que depende de uma boa didatização. Neste momento, o foco já tinha sido determinado em dois dos instrumentos deste processo, que andam a ser violados, tentando resultados imediatos inaceitáveis. Esses instrumentos são:
i) A lei que institui a disciplina de língua e cultura Cabo-verdiana a partir do 10º, a ser lecionada, três horas semanais, em regime opcional e experimental, por 3 anos, a partir do qual deixará de ser em regime experimental (Decreto- Lei n.º 28/2022 , art.º 15.º, que cria a disciplina);
ii) O programa da disciplina para o 10º ano de escolaridade, elaborado por especialistas cabo-verdianos, todos eles, membros do grupo que realizou a petição;
Neste texto daremos a conhecer a natureza desse desvio plasmado no manual de L&CCV do 10º ano de escolaridade publicado em linha4 a 21 de fevereiro de 2025, pelo Ministério da Educação.
O manual apresenta, em boa medida, aquilo que foi o programa do 10º ano proposto em 2022 pelos especialistas que nele trabalharam. Há hipótese de que possa estar com excesso de conteúdos, mas isso resulta da densidade do próprio programa que, por ser experimental, teria de ser reduzido, caso esse excesso se confirmasse junto às turmas de experimentação. Esse re-doseamento de conteúdos não chegou a ser feito pois, o Ministério da Educação não organizou para que os especialistas seguissem o processo da experimentação.
Mas vamos ao dado novo que aparece no manual e que não está no programa e nem faz sentido neste momento. É aquilo que consta como escrita Pandialetal.
Neste momento, era suposto estar a ocorrer, tão simplesmente, experimentação de um programa de uma disciplina que nunca existiu antes. Os dados a serem experimentados são muitos, mas não incluem, por mais urgente que possa parecer, a experimentação de um novo sistema de escrita, cujo excerto se apresenta a seguir:
4 https://app.box.com/s/19dpltcxfed60np0hzog07lxk5cc3ly0?fbclid=IwY2xjawIt3HNleHRuA2Flb
Tal tentativa de escrita, apresentada como sendo pandialetal, pode não ser tanto isso, mas, mais uma ou mais de uma do que de outra, na verdade, acaba sendo algo contra os valores subjacentes à criação da própria disciplina e que consta tanto da lei que a criou como do próprio programa a partir do qual o manual foi elaborado. Ei-los:
Portanto, a criação da disciplina obedece a valores plasmados na sua finalidade que esclareceremos a seguir, destacando suas nuances mais importantes para sociedade cabo-verdiana atualmente:
1. A desocultação da língua em todas as suas variedades. Tal desiderato não se realiza com a apresentação de uma escrita que, oculta em vez de aumentar a familiaridade dos alunos com a diversidade de sua língua,
2. Desmistificar preconceitos, promovendo a compreensão interdialetal . Para que se promova a diminuição dos preconceitos os textos devem aparecer, hora numa variedade, hora em outra, incluindo os comandos, pois, não se quer passar uma ideia de inutilidade cientifica das variedades. Pelo contrário, o que se pretende é mostrar que, em princípio, qualquer uma serve. De referir que o manual apresenta os dados científicos na tal escrita pandialetal como se nenhuma das variedades do berdianu se prestasse para esse efeito;
3. Apresentar a língua ensinando as regras e suas variações favorecendo uma padronização participada e consensual. Este valor está sendo violado flagrantemente, pois, a escrita já apresenta uma variedade padrão forjada pelo Ministério da Educação, cujo Ministro já tinha dito na Televisão de Cabo Verde (TCV), por ocasião da abertura do ano Letivo 2022/2023, que não se vai colocar em causa nenhuma variedade e que os objetivos de padronização não são imediatos 5. Aliás, o programa manda ensinar todas as variedades no sentido de formar a sociedade para que ela venha a participar desse processo, de um modo mais democrático (o tal molde pós-moderno referido no início), em lugar de uma abordagem de cima para baixo como acabou de ser feita nesse manual (abordagem mais antiga, ocorrida com algumas línguas coloniais em tempos e sociedades não democráticas);
4. Abordagem descritiva, comparativa e contrastiva. O foco hoje é aumentar o conhecimento dos alunos sobre a diversidade da sua língua desenvolvendo a capacidade metalinguística, processo importantíssimo no desenvolvimento intelectual, emocional e moral dos alunos. Disso decorre maior respeito e maior compreensão do irmão falante de outras variedades e mais inteligentes e unidos seremos, sem sermos iguais!
Em suma
Por estas razões apontadas, a escrita pandialetal se mostra inoportuna e inadequada. Viola, de modo sorrateiro, os valores de democracia e participação plasmados na Constituição e demais leis da República (Decreto-Lei n.º 28/2022 , art.º 15.º, que cria a disciplina), principalmente nos valores e princípios de base da criação da disciplina, e, ainda, o processo de didatização de um conteúdo nunca dantes constituído em formato de disciplina, processo cujos princípios científicos precisam ser observados. No essencial, o que esta fase deve propugnar é que os alunos possam, primeiro,
i) entender as variedades que não a sua (tanto na oralidade como na escrita) para poderem respeitá-las;
ii) ii) estudar e compreender a sua variedade materna e escrevê-la... e pouco mais que isso.
Para isso, há que ver em quantos anos é possível alcançar esses resultados e quais conteúdos são essenciais. Para começar, enquanto autores, vazamos muitos conteúdos no programa do décimo ano, para que os professores experimentassem à vontade; fossem seguidos e capacitados, de modo contínuo, para que se pudesse vir a reformular tudo e dar indicações para o alargamento dos conteúdos para os anos letivos anteriores e posteriores e demais medidas curriculares essenciais. O Ministério da Educação foi incapaz de gerir o processo neste sentido, mas não se coibiu de raptar o processo, afastando-o da comunidade e redirecionando-o para rumos inaceitáveis.
A criação desta disciplina não é para afastar os cabo-verdianos de sua língua e nem tão pouco abrir a oportunidade para que uma elite imponha uma língua de ninguém como sendo “a Língua” dos cabo-verdianos, por dificuldades em fazer uma política que, verdadeiramente, leve os cabo-verdianos a se unirem e se respeitarem na sua diversidade.
1 Em 1849 se proíbe o berdianu nas escolas; Portaria 303-1920 LCV proíbe o berdianu nas escolas; no Liceu de S. Vicente, através do regulamento interno, se reforça essa proibição em 1932 estabelecendo uma punição de até 2 anos de suspensão aos professores que não executarem essa proibição junto aos seus alunos.
2 No caso do berdianu, isso é importante, tendo em conta que este processo em Cabo Verde remete para uma etapa importante (talvez a mais importante) no processo de descolonização e emancipação da nação iniciado há quase de 70 anos.
3 Não sou contra a padronização baseada em variedades sociais e geográficas, etc, mas a população não está instruída sobre o que a “elite intelectual” e/ou política está a falar. Isso não pode ocorrer nos tempos atuais
4 https://app.box.com/s/19dpltcxfed60np0hzog07lxk5cc3ly0?fbclid=IwY2xjawIt3HNleHRuA2Flb
5 (https://www.youtube.com/watch?v=qJKskC1opHM&t=304s). Noutro vídeo o Ministro deixou escapar que espera que os professores de Santo Antão estejam a ensinar a variedade de Santo Antão (https://youtu.be/_7mipdOBUEY?t=499), quando o programa recomenda nenhum foco especial em nenhuma variedade.
*Professor e co-criador do programa do 10º ano
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