Inspeção à Presidência da República. Tempo de se assumir o erro, arrumar a casa e seguir em frente
Ponto de Vista

Inspeção à Presidência da República. Tempo de se assumir o erro, arrumar a casa e seguir em frente

....independentemente do que os outros poderiam ter feito, ou terão deixado de fazer, nomeadamente em sede do dever de leal cooperação institucional e de atempada fiscalização da legalidade das despesas que se iam fazendo, deve haver humildade para se reconhecer que a Presidência da República, em particular a sua Casa Civil, incorreu num erro crasso. No mínimo, agiu-se com um grau de amadorismo e de imprudência, inaceitável a esse nível, pois que se subestimou que os interlocutores do lado do Governo, eram, antes de mais, adversários políticos, com objetivos próprios, que jamais passariam por facilitar a vida ao novel Presidente José Maria Neves. Muito pelo contrário. Esse erro deve ser definitivamente assumido, com as inevitáveis consequências.

O presente artigo de opinião não pode deixar de começar por uma declaração de interesse. O seu autor tem votado em José Maria Neves em todas as eleições em que ele se tem apresentado, desde 2001: as três maiorias absolutas consecutivas por ele conseguidas, enquanto líder do PAICV, e a sua vitória nas eleições presidenciais de 2021.

Tenho votado nele, juntamente com a maioria dos meus concidadãos Cabo-verdianos, nas Ilhas e na nossa vasta Diáspora, por reconhecer nele valores que prezo no homem público, como a probidade, a verticalidade e firmeza do carácter, o respeito pelas suas origens humildes, as suas genuínas preocupações de justiça social e, sobretudo, o amor que se percebe nele a este nosso país.

E, é por causa desse elevado apreço, que, tal como muitos que nele têm depositado a sua renovada confiança, me sinto apossado por um sentimento de deceção, por ele se ter deixado cair, podendo o ter evitado, na cilada que lhe foi sendo laboriosamente urdida por seus adversários políticos, alguns seus inimigos figadais de longa data.

Que fique, entretanto, claro, que a responsabilidade que inevitavelmente tem de se debitar ao Presidente José Maria Neves, por aquilo que se tem hoje como irrecusáveis irregularidades na gestão da Presidência da Presidência, não decorre de qualquer acto ilícito, muito menos criminoso, que ele teria pessoalmente praticado.

Na verdade, como é de todos sabido, no nosso sistema constitucional a gestão administrativa da Presidência da República é, por prudente opção, confiada a um Conselho de Administração, encabeçado por um Chefe da Casa Civil.

O legislador quis, assim, resguardar o Presidente da República, representante da Nação, por ela directamente eleito, das contingências e das vicissitudes do envolvimento na gestão de coisa mundana, nomeadamente no que toca ao recrutamento do pessoal e à autorização de despesas, que poderia não só retirar-lhe disponibilidade para se ocupar de elevados assuntos dos Estado, como acarretar a sua directa responsabilização financeira, civil ou criminal.

Ainda assim, o Presidente não poderá, de todo, se eximir de responsabilidades, quanto mais não seja pelas escolhas que faz, por actos e omissões daqueles a quem decidiu confiar a gestão administrativa e financeira da Presidência da República e que, como as circunstâncias estão a demonstrar, acabaram, em certa medida, por não se mostrar à altura das responsabilidades e das expetativas neles depositadas.

Efectivamente, não se pode deixar de se ter, no mínimo, por temeridade, a roçar a irresponsabilidade, a Presidência da República, cujo titular tem sido um alvo a abater na primeira oportunidade que se oferecer aos seus inimigos – que jamais hão de lhe perdoar as sucessivas derrotas políticas que lhes tem infligido, em eleições legislativas e presidenciais – ter-se abalançado para a integração formal da Primeira Dama no respectivo quadro de pessoal, com o correspondente salário, apenas porque se obteve, a meio a conversa fiada, a promessa de que a questão ia ser resolvida no plano legal.

Como terá sido possível terem se deixado levar nessa conversa, em matéria tão sensível, e aventurarem-se precipitadamente numa tal direção, sem legislação expressa, aprovada pelo Parlamento, que pudesse dar mínimo respaldo e conforto a essa profissionalização?

Como é que não se colocou a hipótese de se poder estar perante um ardiloso assentimento, sem qualquer propósito de se honrar a palavra, para mais tarde se vir colocar o Presidente da República perante uma situação embaraçosa, que pudesse legitimar o questionamento da sua probidade – aquilo que até hoje tem sido o seu principal ativo político --, quiçá tentando forçá-lo à renúncia?

Isso para dizer que, dificilmente se poderá encontrar casamento mais perfeito entre a santa ingenuidade, de um lado, e a refinada astúcia, do outro.

Efetivamente, tendo-se gerado na Presidência da República a falsa expectativa de que as coisas estavam (ou iriam estar) nos conformes, aos seus interlocutores só restou deixar correr o marfim, isto é, deixar acentuar e avolumar a ilegalidade das despesas da Presidência com o pessoal, em particular com a Primeira Dama, ao mesmo tempo que iam preparando o terreno para o golpe fatal, o festim em que se viria a transformar a intervenção da Inspecção Geral das Finanças e o seu muito celebrado relatório.

Um relatório, há que reconhecê-lo com frontalidade, praticamente irrebatível, pelo menos aos olhos da opinião pública, naquilo que é o seu ponto mais saliente e a sua conclusão mais sonante: a ausência de suporte legal para o pagamento do salário à Primeira Dama, pelo que deve haver lugar ao reembolso do que foi indevidamente pago.

Daí que, a nosso ver, e sobre esse assunto da Primeira Dama, de nada vale perder mais tempo e se desgastar, ainda mais, com esse penoso exercício de autojustificação, a meio à tentativa de se transferir ou diluir responsabilidades que são próprias, de mais a mais acalentando, mais uma vez, a ingénua expetativa de que das bandas do Tribunal de Contas poderá ainda vir algum milagre. Não, não é minimamente razoável esperar que, naquilo que é essencial, isto é, quanto à legalidade do pagamento do salário à Primeira Dama, o Tribunal de Contas irá contrariar as conclusões e recomendações da Inspecção Geral das Finanças.

Por essa razão, e independentemente do que os outros poderiam ter feito, ou terão deixado de fazer, nomeadamente em sede do dever de leal cooperação institucional e de atempada fiscalização da legalidade das despesas que se iam fazendo, deve haver humildade para se reconhecer que a Presidência da República, em particular a sua Casa Civil, incorreu num erro crasso.

No mínimo, agiu-se com um grau de amadorismo e de imprudência, inaceitável a esse nível, pois que se subestimou que os interlocutores do lado do Governo, eram, antes de mais, adversários políticos, com objetivos próprios, que jamais passariam por facilitar a vida ao novel Presidente José Maria Neves. Muito pelo contrário.

Esse erro deve ser definitivamente assumido, com as inevitáveis consequências.

Neste domínio, Cabo Verde deve inspirar-se em exemplos que lhe são próximos, de respeitáveis democracias que viveram uma situação muito parecida, mas que conseguiram a ultrapassar, sem crise constitucional.

Foi o que, por exemplo, aconteceu há relativamente pouco tempo no Gana, no corrente mandato do Presidente Nana Akufo-Addo, em que se decidiu pagar salários à Primeira Dama, bem como à esposa do Vice-Presidente.

Despoletada a polémica, e ante o tremendo embaraço da situação e à ensurdecedora indignação da opinião pública, procedeu-se de imediato à reposição do que foi pago indevidamente, sem se esperar sequer pelo pronunciamento de qualquer instância formal sobre a (i)legalidade desses pagamentos. Três anos mais tarde, os tribunais viriam confirmar, tal como se esperava, pois que constituía percepção generalizada, a ilegalidade dessas despesas.

O Gana seguiu em frente, sob a liderança do mesmo Presidente Nana Akufo-Addo, afirmando-se, cada vez mais, como umas das mais sólidas democracias do nosso continente, dotada de robustas instituições, ciosas do seu papel de garante da transparência e accountability na gestão da coisa pública.

É, pois, tempo, Prezado Presidente José Maria Neves, de se assumir o erro, com toda a humildade, como aliás tem sido seu timbre, arrumar a casa e seguir em frente.

 

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Comentários

  • Casimiro Centeio, 22 de Ago de 2024

    Pois, eu não teria dito, há pouco e noutro lugar que
    "MAIS VALE CONFIAR NOS ABUTRES QUE COMEM OS MORTOS, DO QUE NOS TRAIDORES QUE COMEM OS VIVOS " ?

    Responder


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