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Ensino Superior em Cabo Verde, quo vadis?
Ponto de Vista

Ensino Superior em Cabo Verde, quo vadis?

Espera-se que o anunciado estudo sobre o modelo de financiamento do ensino superior venha fornecer pistas. A nossa inquietude, contudo, prende-se com as afirmações do Sr. vice-primeiro-ministro, que não vê a falta de financiamento como sendo uma questão central do ensino superior em Cabo Verde, porque este, há de existir com certeza, mas só quando forem definidas que ensino superior queremos, e como obtê-lo. Não tendo essa noção, e nem como tê-la, é razão para perguntar, quo vadis ensino superior em Cabo Verde?

Num evento do lançamento de uma revista científica ocorrido recentemente na cidade da Praia, o Sr. vice-primeiro-ministro e Ministro das finanças, Olavo Correia, perante uma plateia repleta de alunos e professores universitários, gestores de instituições de ensino superior, e outras entidades públicas e privadas, afirma, em tom provocativo, mas convicto, que falar de ensino superior em Cabo Verde pressupõe-se primeiro definir que ensino superior se quer para o país (visão), o que é necessário fazer para materializar o que se quer (políticas), e só depois falar de recursos necessários para executar o que se quer. Estas afirmações não seriam novidades, não fossem proferidas em resposta às súplicas da Sra. Secretária de Estado do ensino superior, que, também presente no evento, chamou à atenção do Sr. vice-primeiro-ministro sobre a relevância e a urgência da disponibilização de recursos para que o país possa implementar políticas de investigação, produção de conhecimentos e inovação, enquanto alavancas do desenvolvimento socioeconómico do país. Os apelos de ambos os governantes, que por sinal, por falta de tempo ou de oportunidades para acertarem os pontos nos corredores do palácio do governo, aproveitaram do encontro num evento público para “dialogarem” e comentarem, em união, sobre a ausência de políticas públicas para o ensino superior em Cabo Verde (desde que subiram ao poder em 2016), mormente no que diz respeito à “investigação” e “inovação”.  

As afirmações do Sr. vice-primeiro-ministro deixam transparecer duas preocupações que merecem a atenção dos stakeholders do ensino superior em Cabo Verde: primeiro, as linhas orientadoras, ou a “visão” plasmada no seu programa de governo para o setor, já deixa de ser relevante, e já não faz parte do “compromisso” antes assumido perante a nação. Será esta desistência justificada pela incapacidade do governo em materializar as suas próprias metas e compromissos, enveredando-se, por isso, em manobras dilatórias, e um certo passar de culpa para “os agentes” do setor, a quem, segundo o ilustre ministro, devem encetar/promover debates de ideais em conjunto com o governo em busca das melhores estratégias para o setor? A segunda preocupação, é o facto de que, na verdade, hoje não se encontra em execução nenhuma medida política substancial que dá corpo ao programa do governo, com exceção de algumas medidas sobre o financiamento, herdadas do passado (acesso/bolsas de estudo, por exemplo), e alguns “prémios científicos institucionalizados” recentemente, que felicitamos, mas, como se brinca entre nós os professores/investigadores, vendo o rol dos vencedores, têm servido mais para premiar os centros de investigação nos países estrangeiros que albergam os nossos conterrâneos estudantes e investigadores, enquanto confirmam a pobreza da investigação que se faz, ou que não se faz em Cabo Verde. Sim, porque, esses conterrâneos nossos que estudam e investigam nesses países, são-lhes garantidas as condições materiais que os motivam no seu empreendimento, e, por isso ganham prémios, enquanto nós cá dentro, não tendo essas condições, ficamos simplesmente a “ver prémios”. 

Na sua plataforma eleitoral, e no seu posterior programa de governação apresentados em 2016, o governo estabeleceu metas, ousadas até, para o ensino superior, sobretudo no que tange à investigação. Citamos apenas algumas dessas metas:  

·         “Promoção de uma política científica em cada instituição do ensino superior de modo sintonizado com as grandes linhas de desenvolvimento do país”;

·         “Criação de um Fundo Nacional de Apoio à Pesquisa para o apoio da investigação em qualquer instituição nacional de ensino superior ou com vocação de investigação, nomeadamente, para a melhoria dos observatórios e centros de investigação”;

·         “Desenvolvimento de Centros de Investigação, Desenvolvimento e Inovação (I&D+i) com foco nas parcerias público-privadas, reunindo o Estado, as Instituições do Ensino Superior, os Parques Científicos e as Empresas”, etc.

A lista de “compromissos” para o ensino superior/investigação é grande, e não vale a pena citá-la toda aqui. Contudo, volvidos 8 anos da apresentação desses compromissos para o setor do ensino superior, enquanto uma estratégia fundamental para a geração e promoção de conhecimentos e inovação como pilares do desenvolvimento económico do país, hoje, constata-se que infelizmente, ainda ficam por ser cumpridos. As instituições de ensino superior (IES), sobretudo as privadas, lutam tenazmente pela sua sobrevivência, uma vez que a sua principal fonte de receitas, as propinas, escasseia-se. Escasseia-se pela redução brusca da procura do ensino superior em Cabo Verde, mas também pela falha do estado em intervir com políticas públicas, regulatórias e de suporte financeiro, que sirvam para dinamizar as IES. É verdade que a falta de condições financeiras está a empurrar os jovens para fora de salas de aulas. É corrente ter turmas compostas no início de ano letivo, mas que vão-se minguando ao ponto de esvaziar-se com a publicação dos resultados do concurso às bolsas de estudo. Contudo, é verdade também que, não obstante a diminuição da população com a faixa etária entre 20-24 anos (tida em princípio como o indicador do contingente que frequenta o ensino superior) de 52.886 em 2010 para 38.550 em 2021 (INE, 2010; 2021), impera uma certa descrença, ou falta de esperança nos pais e nos jovens em relação ao “diploma universitário” enquanto um caminho, ou fator de sucesso e realização pessoal. Pelo contrário, muitos estão a colocar a “fé” na emigração, como uma oportunidade para a sua realização pessoal. Ouve-se com frequência a pergunta, “para que serve ter um diploma universitário, se tudo o que vou conseguir depois é um estágio profissional?” E a pergunta que nós os “adultos” e stakeholders do sistema devíamos e devemos fazer, é “o que podemos e devemos fazer para devolvermos aos jovens a confiança de que é possível ter um futuro próspero no seu próprio país, optando-se pelo caminho de capacitação pessoal?” Talvez seja a resposta a esta pergunta que o Sr. vice-primeiro-ministro quer ouvir, já que não a tem.        

A maioria das IES privadas em Cabo Verde emergiram na primeira década de 2000 para dar resposta à incapacidade do estado em fazer face à crescente demanda pelo ensino universitário. Contudo, hoje percebe-se que elas não só não se prepararam para as mudanças do mercado do ensino superior, como são também vítimas da falha do Estado que não soube redefinir a sua política para o setor, conforme as transformações sociais e económicas se impunham. Numa lógica mercantilista, rentista e movida pelo interesse individual, as IES, que se suponha com o cunho do próprio Ministério de Educação/Estado, mergulham-se numa “tragédia dos comuns”, com dificuldades em abrir turmas, ou com cursos e aulas a funcionarem com um número baixíssimo de alunos, ou a não funcionarem porque já não há alunos. Existem hoje em Cabo Verde 10 IES a funcionarem em pleno, para um total de 8,529 alunos inscritos no início do ano letivo 2023/2024 (ARES, 2024), contra 11,769 alunos para 9 IES em 2011. Se a Uni-CV, com os seus campos espalhados pelas ilhas, alberga uma população estudantil de 3,758, quase 44% do total, algumas IES funcionam com 42 (EUCV) ou 69 (UNICA) alunos. Diz um estudo do Banco Mundial (2012) sobre o ensino superior em Cabo Verde que a “denominação como uma "Universidade" ou "Instituto Superior" de algumas IES cabo-verdianas, “é mais uma declaração de intenção do que uma realidade.” E a tendência decrescente da população estudantil cabo-verdiana, a ausência de políticas públicas assertivas para o ensino superior, adicionado a um aumento exponencial da “esperança na emigração”, não resta outra alternativa às IES no país de se colaborarem entre si, evitando assim uma “tragédia” total, a sua extinção.

O futuro?

Fazer declarações recorrentes que as universidades e o ensino superior são aceleradores importantes para o desenvolvimento da nossa economia é importante, mas, o mais importante é fazer e implementar políticas para que essa missão se efetive. Portanto, precisa-se da política. As nossas universidades, atreladas à gestão do dia-dia, acabam por ser pouco empreendedoras (poderão existir exceções), e pouco ousadas (muitas vezes não por culpa própria, mas sim porque labutam numa sociedade que se diz “aberta”, mas que, ao mesmo tempo fecha-se à “criatividade disruptiva” do outro), contentam-se, ou pelo menos contentaram-se com a conjuntura favorável da alta procura, agora choram e lamentam a baixa procura, ao qual não souberam, ou não quiseram adaptar-se (pelo menos algumas). Faltando-lhes a capacidade de se reinventar no meio de uma intempérie, e face a uma “tragédia” eminente (algumas IES terão mesmo que fechar as portas, mantendo as condições atuais), é o momento oportuno para que as autoridades competentes do Estado, a quem, em última instância cabe o papel de zelar pelo interesse coletivo (ensino superior neste caso), atuem em diálogo com todos os stakeholders do sistema, no sentido de encontrar novos caminhos, definir novas diretivas a serem observadas, assim como assegurar a existência das condições para o seu cabal cumprimento. Para quando a meta de 1,5% do PIB para a investigação cientifica no país? Para quando a Fundação para a Ciência, Inovação e Tecnologia? Para quando o Fundo de Investigação & Desenvolvimento? Espera-se que o anunciado estudo sobre o modelo de financiamento do ensino superior venha fornecer pistas. A nossa inquietude, contudo, prende-se com as afirmações do Sr. vice-primeiro-ministro, que não vê a falta de financiamento como sendo uma questão central do ensino superior em Cabo Verde, porque este, há de existir com certeza, mas só quando forem definidas que ensino superior queremos, e como obtê-lo. Não tendo essa noção, e nem como tê-la, é razão para perguntar, quo vadis ensino superior em Cabo Verde?

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