Educação à distância: Mais um passo falhado de um Ministério sem bússola
Ponto de Vista

Educação à distância: Mais um passo falhado de um Ministério sem bússola

Lê-se na nota/refª27/DNE/2020 um conjunto de orientações aos delegados sobre a implementação de “Ensino à Distância”, como alternativa face à situação do COVID-19 em Cabo Verde. Notícia surpreendente para muitos. Por exemplo, José Rito Teixeira fala de miopia na educação (in Terra Nova: 15/04/20). Porém, a mim não foi surpresa, pois na minha memória estão ainda a ferver os vários “tombos”/ziguezagues/falhas crassos dos últimos quatro anos deste tão importante setor. Quem não se lembra por exemplo do “caso manuais escolares” e da “taxa de 1.000$00 na escolaridade obrigatória e gratuita” (em que um simples post de um cidadão, no facebook, levou à reação da inspeção e recuo das escolas na cobrança)? A verdade é que desta vez a ousadia foi extrema e quiçá com a utopia do Nobel da Educação com a “magia” do ensino à distância num país onde apenas 37% da população tem acesso ao computador, 46% tem acesso a rádio, 70% tem acesso a internet e 81% tem acesso televisão (INE, 2018); várias localidades não estão eletrificadas; muitas localidades estão sem sinais de rádio, televisão e internet; e onde, em tempos de COVID-19, falta “arroz” (facto reconhecido pelos poderes, com a distribuição de cestas básicas). Dados apontam que não há condições ótimas para implementar o ensino à distância sem deixar ninguém para trás.

Ora, a nota supracitada levou a reações e opiniões diversas (cada uma ao seu nível, mas todas importantes) em artigos, posts e comentários, posicionamentos, conferências de imprensas, a saber:

(1) Francisco Carvalho interroga “Agora, como fica este ano letivo?” e, seguramente, aguarda a resposta (in Santiago Magazine: 07/04/20);

(2) José Rito Teixeira fala de “Covid-19 e a Miopia em Educação” (in Terra Nova: 15/04/20);

(3) Adalberto Varela relata “ O jogo do faz de conta e de um cenário improvável” (in Santiago Magazine:15/04/20);

(4) Adalberto Varela, através de um post no facebook, lança um questionário com seis cenários, em que a partir dos comentários dos professores, pais e alunos conhece-se a posição da sociedade civil: não há condições, hoje, para o ensino à distância em Cabo Verde;

(5) O Coordenador da Rede Nacional de Educação para Todos, numa entrevista concedida à RCV foi taxativo em afirmar que não há condições hoje para este cenário (17/04/20);

(6) Representante dos professores, na entrevista à RCV, foi categórico ao afirmar que não há condições para avançar sem excluir muitos;

(7) Os Sindicatos dos professores, nomeadamente o Sindprof, consideram que é impraticável e que a medida seria boa se houvessem as condições necessárias;

(8) A líder do maior partido na oposição, Janira Hopffer Almada, numa mensagem alusiva ao dia do Professor cabo-verdiano (23 de Abril), diz que o ensino à distância deve ser visto, antes de tudo, como uma oportunidade, que pressupõe uma sala virtual, com interação entre o professor e o aluno e avaliação do processo ensino aprendizagem, que poderá ser um caminho de forma planeada, estruturada, que transforme numa oportunidade e fator de inclusão e nunca como meio de exclusão e, apela aos decisores que auscultem os professores e pais, a que acrescentaríamos que auscultem também os alunos.

Portanto, entendemos que, num primeiro momento (quando se falou de Ensino à Distância), ou o Ministério desconhecia da realidade do país e da “casa” onde reina, ou queria mesmo “num jogo do faz de conta”, sem avaliação, sem ouvir os stakeholders do sistema educativo, conquistar o Nobel da Educação, num país com condições de acesso aos recursos tecnológicos ainda residuais para o efeito (apesar dos avanços).

Outrossim, parece-nos que aos olhos do chefe do Governo e do Presidente da República a Ministra da Educação revela-se intocável e incontestável e ainda a única “Sábia” em Educação neste país. Primeiro, pelo não posicionamento e silêncio do Primeiro-Ministro. E, segundo, pelo facto do Sr. Presidente da República, no seu discurso sobre a declaração do Estado de Emergência (declarado dia 16 de Abril), conceder à Ministra plenos poderes/carta-branca para decidir sobre qualquer cenário. Ora, num assunto tão sério costuma-se um Presidente de uma República ser implacável, taxativo quanto às balizas. Pelo menos, esperava-se eliminar dois cenários: (I) o não regresso ao ensino presencial, tendo em conta, infelizmente, a propagação do vírus na Praia e na ilha da Boa Vista e o cenário tendencioso aos outros municípios do país; (II) chamar a atenção ao Ministério da Educação que o país não goza de condições, neste momento, para implementação do ensino à distância (não confundir este com transmissão de conteúdos nem entretenimento), se é efetivamente um Presidente junto das pessoas e que, portanto, conhece bem a realidade do país.

O certo, é que após posicionamentos dos especialistas em educação, dos docentes, dos sindicatos, dos pais, dos alunos e dos representantes dos partidos, o Ministério recua claramente da sua premissa inicial: do “Ensino à Distância” ao “Aprender a Estudar Em Casa”, o que nos suscitam dúvidas e questões.

E, se os outros stakeholders não tivessem reagido, o Ministério avançaria com ensino à distância, excluindo milhares de crianças e adolescentes, pais e docentes?

Que avaliação e resultados esperam-se de um Ministério que decide sobre uma matéria tão delicada sem auscultar as partes do processo? Porque, na verdade, noutras paragens decisões como estas são ancoradas em estudos científicos, inquéritos e audições das partes envolvidas.

É verdade que a educação constitui a prioridade e que com a educação não se brinca? Se sim, por que razão o Primeiro-Ministro não se posicionou a quando do “caso de manuais escolares” e agora com “Ensino à Distância”; e por que razão o Presidente da República deixou vago na declaração do Estado de Emergência, dando “carta-branca” para decidir à ministra?

Que caminhos para que a Educação não pare em Cabo Verde, face à pandemia do COVID-19 e indefinição do Ministério da Educação?

Ora bem, as três (3) primeiras questões deixamos para reflexões e conclusões dos leitores.

Relativamente à última questão, pensamos que é pertinente refletir, ponderar e decidir sobre os seguintes:

(i) Sobre o ano letivo em curso, infelizmente, pelo alastramento do COVID-19 não nos parece ser possível as aulas presenciais e pelas condições de acesso aos recursos tecnológicos do país não é possível implementar o Ensino à Distância (no verdadeiro sentido do termo), pelo que aconselhamos ao Ministério em encerrar o ano letivo, recorrendo à avaliação com recurso às notas dos dois períodos (1º e 2º trimestre), cálculo da nota do 3º trimestre por técnicas de projeções ou atribuição de nota administrativa ao 3º trimestre, para o cálculo da nota final. De realçar que se isso acontecesse, não estaríamos perante um facto novo porque em educação, sempre que justificável, um ou outro aluno foi avaliado com notas de dois (2) trimestres, a única diferença é que desta vez será global;

(ii) Retificar o orçamento do Estado, na rúbrica Educação e realocar as verbas de Educação, reforçando de imediato as condições de conetividade para manter os docentes em contactos mínimos com alunos;

(iii) Preparação para o arranque do próximo ano letivo, à distância, num cenário de tendência atual da evolução e pessimista do COVID-19, que se prendem com: (i) inscrever os docentes (considerando-os de pivots) em cursos online em Ambientes Virtuais de Aprendizagem (Google sala de aula, moodle,), para melhor capacitá-los para esse desafio, que para a maioria é novo; (ii) investir na aquisição de materiais necessários (computadores, telemóveis, tablets, rádios, televisão, etc) e fazer chegar aos potenciais usuários (alunos, docentes e pais); (iii) desenvolver protocolos e parcerias com outros Ministérios, operadoras de comunicação, empresas, no sentido de levar a energia elétrica, sinais de rádio, televisão e internet a todas as localidades do país. O certo é que terremos cinco (5) meses de muito trabalho e preparação para o arranque do ensino à distância em Setembro próximo, mas é necessário para que a educação não pare nem exclua ninguém.

A educação à distância no Ensino Básico Obrigatório e no Secundário poderá ser uma oportunidade a que o COVID-19 nos impele, mas antes de tudo, devem ser criadas as condições de modo a que todos se sintam integrados e incluídos no processo. Por isso, entendemos que os decisores públicos são obrigados a (re)definir as prioridades do país, repensar com urgência os orçamentos e tomar medidas diligenciais, de forma a evitar o “stress” e a exclusão a partir de Setembro próximo (tida como data habitual do arranque do ano letivo).

*Docente universitário e secundário.

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