1. Desejo poder partilhar convosco, ainda que em ritmo acelerado, o olhar de quem está num pequeno país que é, ao mesmo tempo, um pequeno Estado insular, atlântico, africano e inserido num espaço muito específico que é a África Ocidental.
Ou seja, um perfil que engendra dinâmicas várias que, especialmente quando vistas pelo ângulo dos desafios globais ou comuns em matéria de segurança, tornam muito mais complexo o dia-a-dia do arquipélago e da sua governação. Mesmo assim, um dado constante na gestão do país é a vontade, melhor, a determinação política na luta contra a criminalidade, não raro esticando as limitadas capacidades internas. Mas não há concessão! Sempre foi evidente para nós que não há desenvolvimento sem segurança. O nosso sistema de Defesa e Segurança não é perfeito, tem aliás insuficiências várias, mas é credível e tem dado o seu contributo para o bom funcionamento do nosso Estado de Direito Democrático. De resto, constitui motivo de reconforto a verdadeira rede de parcerias de que dispomos neste domínio, envolvendo uma pluralidade de Estados, pois que de há muito temos investido na Diplomacia para a Segurança. Temos assim procurado contribuir para dar conteúdo útil à noção de segurança cooperativa. Nunca nos passou pela cabeça querer enfrentar sozinhos os desafios que nos rodeiam, o menor deles não sendo o vastíssimo espaço marítimo.
Os custos do contexto são, na verdade, elevados para Cabo Verde. Sempre o foram; são-no ainda mais nestes tempos de imprevisibilidade e angústia ao pequeno-almoço e de imprevidente desconstrução a cada post ou tweet.
Estou a referir-me ao Atlântico e à África Ocidental.
Será esse Atlântico o tal corredor de paz e legalidade de que amiúde falamos? Será a região ocidental africana um espaço de estabilidade?
Quero crer que ninguém desconhece, mormente quem tenha responsabilidades em domínios pertinentes à Segurança e às relações internacionais, alguns factos ou evidências. Em primeiro lugar, por esse vasto oceano circula muito da criminalidade transnacional organizada, a começar pela pirataria marítima e pelos tráficos de diferente natureza, sobretudo o narcotráfico; por outro lado, a África Ocidental tem visto crescer a sua importância enquanto posto ou zona de trânsito no tráfico internacional de drogas; em terceiro lugar, a África Ocidental é ainda uma das mais pobres e instáveis regiões do mundo, facto este que propicia a intercomunicação entre o narcotráfico e outras valências da criminalidade organizada.
O Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime (UNODC), no seu mais recente Relatório Mundial sobre Drogas, assevera que, no período 2009/2014, as apreensões de cocaína na África Ocidental (cerca de 22 toneladas), representaram 78% do total das apreensões feitas em todo o continente. Só em Cabo Verde foram 2 mil quilos numa única apreensão, no âmbito da “Operação Lancha Voadora”, a qual teve um enorme impacto no país e o seu desfecho, designadamente as decisões finais da Justiça, significou um enorme estímulo para as forças de perseguição do crime.
Nesse mesmo lapso de tempo, apreensões expressivas foram feitas também na Gâmbia, na Nigéria e no Gana.
Mas placas maiores nesse tráfico continuam a ser a Guiné-Bissau, o Mali e países do Golfo do Benin, com uma dinâmica que muito esparsamente cai na estatística das apreensões.
Estamos a falar de droga que parte da América do Sul com destino à Europa e à América do Norte. Pontos de partida são o Brasil (representando 51% dos carregamentos expedidos), a Colômbia (18%), o Perú, com 13%, e o Chile com 9%.
Trata-se de operações ousadas e que envolvem meios sofisticados. É verdade que apreensões vão sendo realizadas, mas não é menos certo que o que escapa às malhas da lei é ainda avultadíssimo. A maior fatia, seguramente.
Há quem analise estes dados de forma extremamente crítica e fale mesmo de falhanço da abordagem que tem sido seguida pelas Nações Unidas. Não sendo necessário perfilhar essa leitura extremada, importa de todo reparar que há algum desconforto da parte do Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime quando reconhece que, e cito, “os esforços globais para o controle da droga tiveram uma dramática consequência não esperada: um criminoso mercado negro de proporções assustadoras. O crime organizado é uma ameaça à segurança. As organizações criminosas têm o poder de desestabilizar sociedades e governos. O negócio ilícito das drogas gera bilhões de dólares por ano, parte dos quais é utilizado para corromper agentes do Estado e para desestruturar economias”.
Ora bem. Comecei a minha conversa pelo narcotráfico justamente para sublinhar que ele é a principal ameaça à segurança nesse espaço em que Cabo Verde está inserido.
De resto, este sentido de premência já tinha sido identificado pela Conferência Ministerial da CEDEAO que se reuniu em Cabo Verde, em Outubro de 2008, especificamente para abordar a problemática do tráfico de drogas na região. Foram então adoptados a chamada Declaração Politica da Praia e o Plano Regional de Ação. Tais documentos receberam logo após, em Dezembro do mesmo ano, a aprovação final da Conferência de Chefes de Estado e Governo.
Questão que se pode legitimamente colocar é a seguinte: por que razões a aplicação de tais documentos vai produzindo resultados minguados no conjunto e desequilibrados de país para país dentro da comunidade?
Com antiga MNE do Gana, Dra. Hanna Tetteh
2. Outra grande ameaça é claramente o terrorismo. Neste particular, falar da África Ocidental é igualmente falar do Sahel. São realidades interconectadas, com problemas que fluem num sentido e noutro de forma imediata e intensa. Pelo prisma da segurança, não convirá ver entre elas uma fronteira ou, a haver, ela é de uma porosidade deveras altamente inflamável. Veja-se que dentre os países que vêm sendo como que sinónimo de Sahel (os do G5: Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger) quatro são estados da África Ocidental. O outro, o Chade, da África Central, tem tido um forte envolvimento na luta contra o terrorismo, designadamente contra o Boko Haram, nesse gigante do oeste que é a Nigéria. Também no Níger. Como quer que seja, estamos a identificar uma região ou uma faixa que, estendendo-se do oeste ao oriente, do Atlântico ao Mar Vermelho, é altamente problemática sob todos os ângulos. Nela estão ingredientes que apontam para a necessidade de um tratamento atento e num quadro de forte articulação internacional. Não se pode subestimar o potencial de risco aí instalado. É real a ameaça para a estabilidade global, desde logo para a Europa aqui mesmo ao lado. Basta ver que se trata de um quadrante geográfico onde pontifica um estendal de problemas, de verdadeiras ameaças que não será possível conter indefinidamente. Tem de haver ação sobre as causas, pois que o êxodo não é solução. À cabeça desses problemas está a pobreza extrema, a par de um acelerado depauperamento ambiental e uma tremenda escassez de água; onde a população cresce de forma acelerada. O Mali é o país com a maior taxa de natalidade do mundo e no Níger cada mulher tem em média 7 filhos; uma região onde a crise migratória é entranhada e é dramática. Na Bacia do Lago Chade estão cerca de 2.5 Milhões de pessoas deslocadas; é curioso reparar num como que pudor em em referir os riscos no plano sanitário; uma região onde a profunda dependência da assistência humanitária internacional é um dado real; onde grupos terroristas estendem e consolidam os seus tentáculos, em especial a partir do Mali. Caso do Al-Qaida do Magreb islâmico e do Al Mourabitoun; onde existe uma clara aposta na disseminação do fanatismo violento, desde logo em torno do Islão radical, sendo evidente que com a deslocação de pessoas há também a circulação de ideias, de crenças, de projetos; uma região ainda onde armamento de diferente calibre circula sem dificuldades, sobretudo agora que, com a desagregação da Líbia, o próprio deserto do Sara passou a ser refúgio de traficantes e criminosos de todo o quilate.
E um dado que não se deve perder de vista é o da imbricação entre o narcotráfico e o terrorismo. O seu financiamento.
Repito, para fechar este ponto: a ameaça é real. Do que pode fazer esse terrorismo já houve manifestações várias na Nigéria, como também já houve no Mali, na Cote d’Ivoire, no Burkina Faso...
Tenho bem presente o medo que se instalou, por exemplo, no Senegal (nosso vizinho do lado) e as fortíssimas medidas de segurança que foram tomadas.
Ou seja, nada nos autoriza a esperar que o pior não venha a acontecer. Em qualquer lugar. Temos sim de investir na prevenção e temos de agir em sintonia. Todos os Estados, pois que nenhum está imune. Não há solução pela via de abordagens isoladas nem muito menos em ostracismo. O terror e a violência extremista não conhecem fronteiras. Porque assim é, o medo é um dado real no mundo atual; vamos aprendendo a viver com ele, a geri-lo. Sublinho o seguinte: tem de estar sempre presente um sentido de solidariedade efetiva, pois que não há uma hierarquia das vitimas nem uma geografia do sofrimento humano. A dor dói tanto em Paris quanto em Ouagadougou. Tão-pouco podemos abrir mão de ganhos de humanismo conquistados de geração em geração. Não podemos negar o que nos é essencial. E não há que conter as palavras: é vergonhosa a deriva xenófoba que corre solta por esta Europa. Essa não é a Europa em que queremos acreditar. E confiar. É preciso que cada região não se demita das suas responsabilidades no destino comum da humanidade.
Por outro lado, é fundamental renovar continuamente a aposta no Estado de Direito como o contexto insubstituível e o antídoto mais eficaz na luta contra a criminalidade. Mais ainda, é essencial reforçar os quadros de diálogo e cooperação entre os Estados. Sobretudo, é preciso que haja confiança. Só assim os compromissos se forjam de forma genuína e com sentido de resultados.
3. Voltando à minha região, debatemo-nos ainda com fragilidades de diferente natureza, não obstante os recursos financeiros gastos ao longo dos anos. A ideia de Estado de Direito é, em vários casos, apenas isso: a ideia. A debilidade institucional chega a ser gritante, como o é igualmente a ausência da cultura de Estado. Os remendos de aparelho ou máquina pública são sustidos por servidores impreparados e muito mal remunerados. Mesmo as forças de segurança padecem de carências tremendas, o que as torna fatores de insegurança. A permeabilidade à criminalidade organizada é evidente. E, se queremos, por exemplo, reverter os magros resultados da luta contra o narcotráfico, temos de colocar toda esta realidade sobre a mesa.
Ao dizer isto, estou a procurar sublinhar a urgência do investimento no institucional, um investimento de longo alcance que privilegie a formação/ capacitação dos recursos humanos, o estabelecimento dos contextos reguladores e de controle, os procedimentos, a tecnologia necessária...
4. Chegado a este ponto, devo sublinhar o seguinte: esses desafios interpelam a CPLP. Dizendo de forma mais positiva, o facto de a maioria dos nossos Estados estar no Atlântico Sul constitui um dado que tem de ser devidamente gerido. Se o propósito é fazer desse Atlântico um corredor de paz, estabilidade e desenvolvimento, então a CPLP tem aqui assim uma clara vantagem comparativa ou estratégica. E só não será um sujeito incontornável neste Atlântico se não quiser.
Do lado africano, a vontade política existe, mas têm faltado envelope financeiro específico e capacidade institucional.
Faço em seguida três observações de forma telegráfica.
- primeira observação: porventura é chegada a hora de introduzir algum ajuste nas prioridades, alguma recentragem, o que necessariamente tem de ser traduzido no financiamento das ações, como é evidente. Julgo ser ajuizado que a CPLP emita um sinal inquestionável face a esses desafios em matéria de Defesa e Segurança. Impõe-se contrapor-lhes uma forte dinâmica de estabilidade e desenvolvimento. Certamente que nos fica complicado falar, por exemplo, de livre circulação enquanto não resolvermos problemas pungentes em matéria de segurança, ao nível das nossas casas respetivas. Certamente também que somos uma comunidade diminuída em todos os sentidos enquanto um seu Estado membro, estou a referir-me à Guiné-Bissau, se perpetua na via da desacreditação e do adiamento da estabilidade e do desenvolvimento. O mais recente relatório das Nações Unidas, analisado pelo Conselho de Segurança no passado dia 13, volta a falar de impasse. Pessoalmente, intervindo numa conferência, no ano passado, por ocasião dos 20 anos da CPLP disse algo que repito agora: a CPLP tem de fazer da Guiné-Bissau o seu caso prioritário. É também a credibilidade da Comunidade que está aqui em causa. Todo o potencial da CPLP em matéria de concertação político-diplomática (e de ação!) ainda não foi utilizado, parece-me. Acho curioso que nenhum dos nossos Parlamentos nacionais tenha agendado um debate/ audição sobre este assunto.
- a segunda observação é a seguinte: o desenho existente para o tratamento das questões da Defesa e Segurança no seio da CPLP é um bom desenho. Faço uma menção muito especial aos exercícios da série Felino.
De todo o modo, no plano do funcionamento, continuo a entender que as reuniões da instância política (a dos Ministros) deveriam ser mais espaçadas, deixando assim mais tempos e maior margem de responsabilização aos níveis de articulação técnica ou operacional. Um domínio específico que merece mais investimento é o da cooperação em matéria de inteligência / serviços de informação, pressupondo naturalmente montagem ou reforço de capacidades institucionais e humanas. De igual modo, tem de ser reforçada ou repensada a capacidade de análise estratégica. Os Núcleos Nacionais Permanentes têm tido algo de caricatural no seu funcionamento.
- terceira e última observação: o que chamo de sinal inquestionável tem de ser dado, parece-me, sob o signo do Mar. Neste momento, não falo nem da língua, nem dos afetos, nem da comunhão de princípios e propósitos. Esses não estão em causa. Parece evidente que o mar é o recurso tangível mais poderoso e mais prenhe de oportunidades que temos ao nosso dispor. Não se deve adiar um balanço crítico. Seria proveitoso, por exemplo, revisitar os entendimentos erguidos na Conferência dos Ministros responsáveis pelos assuntos do Mar que teve lugar em São Julião da Barra, em 2010. Foi um passo muito importante. Mas urge avaliar e, sobretudo, ser mais ousado, agarrar sem vacilações o mar enquanto recurso geoestratégico global. Por todos os ângulos: do da Defesa e segurança ao das pesquisas oceanográficas, dos transportes marítimos à pesca, da biodiversidade às tecnologias de exploração dos ecossistemas marinhos e costeiros, ao turismo, à exploração das plataformas continentais, enfim.
Insisto na ideia de ousadia. Vinte anos decorridos, a organização precisa de um momento mágico, quase re-fundacional. Talvez não fosse má ideia convocar as instâncias de articulação multissectorial para, com vagar e sentido de resultados, ver da pertinência de uma Cimeira da CPLP dedicada ao Mar. A nossa Comunidade precisa da sua carta de navegação nesta matéria. Esta afirmação ganha sentido acrescido feita aqui em Lisboa – por todas as razões.
Este texto corresponde à intervenção proferida na Conferência “A Cooperação Militar no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Desafios e Oportunidades” organizada pela Comissão de Defesa Nacional da Assembleia da República Portuguesa. Lisboa, 22 de Fevereiro de 2017.
Está disponível, gratuitamente, na plataforma iBooks.
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