Nos finais de Maio de 2015 fui agradavelmente surpreendido por um telefonema da jornalista Margarida Fontes a convidar-me para participar de um debate no seu programa de então, o “Conversa em Dia”.
Foi uma surpresa porque era um convite para um programa em directo, coisa nunca acontecera antes, nem nos anos em que fui Presidente (Bastonário, agora) da Ordem dos Arquitectos. Na altura já havia cristalizado a propaganda político-partidária que sempre procurou me definir como sendo “contra-a-Nação” e “contra o desenvolvimento de Cabo Verde”. De maneira que a última coisa que esperava era um convite da TCV, ainda por cima para uma emissão em directo. (Em todo o caso, devo ter tido um desempenho tão mau que nunca mais voltei a ser convidado…)
Intitulado “Os Desafios da Praia”, esse episódio, que contou com a presença e prestimosa prestação do meu colega Alberto Melo (na altura Vereador da CMP) e do cidadão-munícipe Pedro Moreira, infelizmente já não consta do arquivo da TCV.
Felizmente, há alguns anos o coloquei em segurança (aqui) no meu canal do YouTube e convidaria todos os meus concidadãos que reagiram negativamente após a publicação do primeiro artigo desta série na semana passada, a terem a paciência de o visualizar na íntegra, pois cinco anos depois, continuo rigorosamente no mesmo lugar, muitas das coisas que disse ali vão se cumprindo, para grande tristeza minha, e com base nele estes meus textos apresentarão as razões por que defendo que, pelo menos por ora, a efectivação do Estatuto Administrativo Especial para a Cidade da Praia (EAEP) é altamente contraproducente.
Para âncora deste segundo artigo desta série extraí a resposta que dei à primeira questão que foi colocada ali, justamente sobre por que razão o EAEP nunca conseguia ser aprovado:
À luz deste facto, quanto a mim inquestionável, de que “O Estatuto Especial é essencialmente um pacto de regime(…)”, entendo que fica clara uma das principais razões dos fracassos sucessivos, tanto do PAICV, como do MpD agora, para tentar cumprir esse preceito constitucional, a meu ver, totalmente espúrio.
Os pactos de regime são até corriqueiros nas democracias avançadas, por exemplo do norte da Europa, e possibilitam que esses países sejam governados muitas vezes por coligações de vários partidos políticos minoritários sem qualquer dificuldade de maior, porque os pactos de regime significam que as políticas essenciais (económicas, sociais, culturais, educacionais, científicas, geo-estratégicas, etc.) são objecto de consensos políticos alargados que devem ser respeitados no essencial por qualquer partido que vier a assumir as rédeas da governação. Isto garante uma estabilidade e uma previsibilidade do comportamento dos governantes que são muito preciosas por um lado, e excelentes garantes do desenvolvimento e da paz social, por outro.
Ora, é evidente que para tal é essencial DIALOGAR, um processo empático de OUVIR MESMO, com muita atenção, o que o outro tem para apresentar e num clima de muito respeito mútuo, tolerância e humildade, para ser possível identificar os pontos de união e construir pontes de entendimento alargado que permitam o aparecimento dos embriões dessas tais políticas essenciais que, aí sim, poderão ser consolidadas em pactos de regime. Isto sempre leva muitos anos, e depende da confiança mútua entre os actores políticos e do respeito profundo que devem ter pelo eleitorado.
Em Cabo Verde, a classe política é (no seu todo, apesar das pouquíssimas excepções que felizmente ainda existem para confirmação da regra), paradoxalmente, a principal barreira ao desenvolvimento da nossa Nação. Continua a demonstrar clara imaturidade, continua a faltar-lhe o jogo de cintura que os pactos de regime exigem, continua num nanismo estrutural sem esperança e, enquanto permanecer neste estado, não conseguirá definir pactos de regime e o país continuará adiado…
Porque é absolutamente necessário que saiamos da actual situação, 45 anos depois da independência, em que sempre que acontece alternância no poder, quem chega logo desvaloriza e depois tenta desfazer tudo o que foi feito pelo antecessor. Havendo pactos de regime isso simplesmente deixaria de ser possível e, evidentemente, o país sairia a ganhar sempre.
Acredito que qualquer cabo-verdiano sabe que não é saudável a maneira de se fazer política que prevalece no nosso país, em que não somente não existe respeito mútuo entre os actores políticos, como também impera a agressão e o insulto, muitas vezes gratuitos e muitas vezes intencionais para impedir, na casa parlamentar (por esgotamento do tempo regulamentar), os debates que verdadeiramente interessam aos cidadãos.
É neste contexto que importa recordar a proposta que o PAICV apresentou em Dezembro de 2015, do novo Estatuto dos Municípios, uma reforma abrangente do poder local cabo-verdiano que preconizava um conjunto de soluções que importaria estarem hoje implementadas em todo o país, nomeadamente a criação da figura de um Presidente da Câmara eleito como hoje elegemos o Primeiro-Ministro, ou seja com liberdade para depois de eleito escolher livremente a sua equipa governativa, sem estar sujeito a listas muitas vezes paupérrimas em termos de competência técnica e mesmo política, cozinhadas no interior dos partidos políticos… Igualmente, ela trazia um quadro muito mais propício ao aparecimento e sucesso de candidaturas sólidas de grupos de cidadãos, independentes dos partidos políticos.
Tivesse sido esse novo figurino do poder local aprovado, este mandato autárquico que está no fim teria sido uma oportunidade para testarmos o novo sistema, afinando-o concomitantemente e eu não tenho dúvidas de que hoje o país estaria francamente melhor. Muitas dessas reformas precisam ser implementadas e melhoradas no terreno antes de nos aventurarmos, como Nação que não tem recursos, em aventuras de regionalização e de estatutos especiais…
A não-aprovação desse diploma causou um estrago muito grande ao país.
Se, por um lado o PAICV o guardou e só o levou à discussão na última sessão parlamentar, pelas mãos de um Ministro do Ordenamento do território já extremamente fragilizado politicamente pelo escândalo do Fundo do Ambiente, por outro lado o MpD, certamente na posse de sondagens que lhe davam certeza de uma vitória retumbante nas eleições do ano seguinte, aproveitou essa deixa de debate tardiamente solicitado para dizer que já era tarde e que teria que ser deixado para a legislatura seguinte (ainda me recordo do Deputado José Filomeno de Carvalho humilhando esse Ministro, nessa sessão parlamentar, por causa do Fundo do Ambiente…)
No ano seguinte esse calculismo político rendeu ao MpD a conquista de quase todas as Câmaras Municipais do país…
Coincidentemente (ou não), a legislatura seguinte passou toda sem ninguém se lembrasse da proposta de lei e a recolocasse em pauta para aprovação, se calhar logo nas primeiras sessões parlamentares de 2016…
Neste particular, a posição mais incompreensível é do PAICV, pois se ao MpD nunca interessaria (sobretudo com o recém-conquistado monopólio das autarquias locais) aprovar e implementar tal reforma, ao partido tambarina deveria interessar implementar ao máximo todas e quaisquer reformas políticas que o ajudassem a enfraquecer o domínio tão avassalador que os ventoinhas detêm sobre o poder local cabo-verdiano. Estranhamente, o PAICV nunca mais se lembrou da proposta.
Voltando ao nosso problema de fundo, urge assumirmos que a cidade da Praia, antes de estatutos especiais, precisa primeiramente de um projecto aglutinador, que faça jus às suas responsabilidades de capital do país e que lhe possibilite afirmar-se como uma capital digna, inclusiva, capaz de cuidar dos seus habitantes com qualidade e segurança. Apenas com tal abordagem, poderá algum dia ser capaz de se afirmar na sub-região, numa competição sadia com Dakar.
Ora projecto de cidade a sério Praia nunca teve até hoje, tão pouco uma gestão visionária, corajosa, competente, transparente e responsável. Muito pelo contrário.
Assim, tendo nós uma classe política por um lado incapaz de dialogar e de buscar pontes de entendimento com base no respeito mútuo para viabilizar pactos de regime e, por outro lado, mais interessada na continuação de um status quo que apenas visa a sua perpetuação no poder, nomeadamente impedindo astuciosamente a aprovação do novo Estatuto dos Municípios pelo menos desde 2015, acho que todos podem ver o quão inoportuna e prejudicial seria, para o país, a aprovação de um Estatuto Especial que apenas procurava promover o actual Presidente da CMP ao estatuto de Ministro da República…
(continua…)
*Artigo publicado pelo autor no seu blog nanindipala.net
Praia, 17 de Julho de 2020
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