Nenhum investidor nacional ou estrangeiro investe no turismo na ilha por caridade. Investem porque confiam que o seu investimento tem retorno. No dia em que acharem que não, desistem do País e procuram outro destino. Infelizmente, nem todos de livre e espontânea vontade adotam um comportamento responsável na certeza que o retorno é tanto maior quanto melhor for o comprometimento de todos na defesa, preservação e valorização do nosso património natural e ambiental. Por isso o País tem uma administração local, uma administração central, um governo, um parlamento nacional, eleitos locais, organizações da sociedade civil e CIDADÃOS, todos responsáveis por assegurar que ninguém fica impune quando age com total desprezo ambiente e pela nossa inteligência. Ou ninguém está à altura das suas responsabilidades? Ninguém se importa?
Estou longe de Cabo Verde há 5 anos, mas nunca cortei o meu cordão umbilical com a minha terra natal, muito menos com o meu berço, ilha do Sal, meu pedaço do mundo cristalino. Por isso me mantenho sempre atento a tudo o que acontece na minha terra, participo ativamente na sua vida politica e cívica, contribuo, à minha maneira, para o seu desenvolvimento e não me canso de questionar as autoridades, locais e nacionais, sobre bondade das decisões tomadas, as omissões e as distrações propositadas e cúmplices que põem em risco o bem-comum. Sinto-me na obrigação, como cidadão preocupado e interessado em ver o desenvolvimento do meu país e da minha ilha natal, de pronunciar sobre o que, a meu ver, estiver certo ou errado, contribuir com ideias e sugestões para a resolução de problemas concretos que nos assaltam, pouco me importando com os ataques daqueles que percebem de forma distorcida das minhas intervenções. Afinal conserva intactos todos os meus direitos porque também cumpro todos os seus deveres de cidadão cabo-verdiano e salense.
Desta vez, o tema que me impeliu a escrever é a estupefação e indignação que assaltaram-me ao tomar conhecimento do que se passou com o Areal de Santa Maria, sem sombra para dúvidas, a galinha dos ovos de ouro do turismo cabo-verdiano e da economia da ilha do Sal, sem a qual a ilha não seria a detentora do maior PIB per capita do país. O mesmo areal, fotografado e postado por milhares de pessoas pela sua beleza, referenciada em revistas e órgãos de imprensa mundial como sendo uma das mais belas praias do mundo, alavanca de um sector que responsáveis por mais de 25% do PIB Nacional.
Chocou-me as imagens trazidas ao conhecimento de todos pelas redes sociais, essa benfazeja válvula de escape do rijo barbicho colocado na boca dos jornalistas e dos órgãos de imprensa cada vez mais controlados pelo Governo da República, o estado em que ficou o Areal de Santa Maria, depois de uma ação de despejo intencional ou casual, de resíduos de uma central dessalinizadora propriedade de um dos hotéis implantado no coração dessa bênção divina que é a Praia de Santa Maria. De repente parecia que uma significativa área do cristalino areal que encanta a todos os que nos visitam tinha-se transformado num vulgar local de despejo, coberto de um resíduo verde-escuro, doentio e pantanoso. Ora, chocou-me o silêncio cúmplice das autoridades locais, da população, das autoridades nacionais, sobretudo o Ministério do Ambiente e a autoridade nacional sobre a orla marítima. Se não vejamos:
1. A reportagem(?)
Passado algum tempo sobre o acontecimento que deixou o Areal de Santa Maria com um aspeto tal que confundia-se perfeitamente com a Praia Negra, a TCV, órgão de comunicação social pública, abordou o assunto, em jeito de mero cumprimento de um dever, sem grande interesse, limitando-se a transmitir o conteúdo de uma nota informativa do Grupo Oásis acompanhado com imagens do manto verde a cobrir uma extensa área da praia. Nenhuma investigação mais a sério, nenhuma preocupação em ouvir especialistas sobre a matéria para se apurar se estávamos ou não perante o derrame de um material perigoso nessa praia balnear, muito menos ouvir as autoridades ambientais nacionais e locais. A minha indignação é ainda maior, quando apercebo que o jornalista conclui a peça jornalística, baseada apenas na opinião do representante do eventual infrator, “deixando claro que o resíduo ali não possuía quaisquer químicos, razão pela qual era absolutamente inofensivo”. Ora, por muito menos, Plote já tinha dito à Bia que se a água fosse assim tão limpinha porque não guardou-a no pote ao invés de jogá-la na rua?
Entendi esta informação como uma atitude defensiva, ou seja, uma tentativa discreta de retirar as responsabilidades, tanto da Empresa, como da CMS e das outras autoridades, nomeadamente da Delegação local do Ministério do Ambiente e da administração marítima e costeira.
É meu entendimento que a dita “reportagem” pecou e de que maneira, por não ter procurado informar-se junto de especialistas sobre a natureza e as características do concentrado de uma dessalinizadora de água extraída do mar, os motivos reais que fizeram com que ocorresse o derrame ou o depósito desse material numa zona que tem que ser seriamente protegida dessas situações e os motivos pelas quais esse concentrado gerou essa horrenda imagem conforme imagens infra, quando o normal seria ouvir as autoridades ambientais nacionais e locais para se elucidar o cidadão sobre o ocorrido, sobre as análises a serem feitas para se assegurar que não estaríamos perante um crime ambiental, e que medidas seriam tomadas para que a intervenção de limpeza e restauração ambiental fossem imediatamente implementadas. O foco nunca poderia ser tão somente dar espaço na comunicação social pública a quem prevaricou e causou esse dano ambiental de se desresponsabilizar perante a opinião pública.
Bem, o assunto ficou mesmo por ali, como se o único problema do concentrado é a existência ou não de produtos químicos.
2. Os Alertas do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) sobre os Cuidados a ter com as Dessalinizadoras
Ora, contrariamente à ideia que se trata de um produto tão limpinho e inofensivo que tal qual a Bia, o citado Hotel podia tê-lo colocado nos jardins interiores, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a principal entidade supra nacional de formulação da agenda ambiental para todas as nações membro do Sistema das Nações Unida, publicou, no dia 11 de Janeiro de 2021, um importante relatório que identifica e descreve 5 fatos importantes que devemos ter em atenção relativamente às dessalinizadores.
Destacamos no caso vertente o conteúdo do ponto 3 desse relatório que explica o que é afinal esse concentrado, também denominado água residual, que na maioria das dessalinizadoras cria por cada Litro de água produzido, 1,5 Litros de líquido poluído com cloro e cobre. Qual foi a prova concreta apresentada pela aempresa de que esta água não esteja nesta situação?
No mesmo relatório, lê-se o seguinte: “Se não for devidamente diluída e dispersa, pode formar uma densa nuvem de salmoura tóxica que, se não for tratada, pode degradar os ecossistemas costeiros e marinhos. O aumento da salinidade e da temperatura pode causar uma diminuição do conteúdo de oxigénio dissolvido e contribuir para a formação de "zonas mortas", onde muito poucos animais marinhos podem viver.”, ( https://www.unep.org/pt-br/)
3. Este problema não constituiu um assunto de interesse para os eleitos nacionais e locais?
Estes acontecimentos numa praia com o importância e a visibilidade que tem a praia de Santa Maria, sem que ninguém tenha-se dado ao trabalho de cuidar de esclarecer devidamente o que se passou e os seus efeitos, demonstra bem o estado de degradação a que chegaram instituições importantes como a administração ambiental, a administração marítima e costeira, as políticas públicas do ambiente a nível local, mas também a falta de consciência ambiental da população ou então, o laissez-faire porque o melhor mesmo é fingir-se de morto para evitar represálias.
Nenhuma palavra da Câmara Municipal do Sal, que no mesmo dia aparece na comunicação social a agradecer o Hotel infrator pelas oferendas feitas ao ATL de Santa Maria; nenhuma palava de nenhum eleito local dos três partidos com representação da Assembleia Municipal; Nenhum dos quatro deputados nacionais eleitos pelo círculo eleitoral do Sal demonstrou nenhum interesse relativamente a uma potencial contaminação de uma praia cujo papel no turismo nacional é absolutamente inquestionável, sobre uma área do território nacional que deveria merecer redobrado cuidado das instituições que concebem, implementam e monitoram as políticas ambientais nacionais. Um silêncio sepulcral!! Temos toda a legitimidade de perguntar se tão ruidosa omissão deve-se ao desinteresse absoluta pelas questões ambientais que ainda nem dão nem votos no estágio atual de desenvolvimento da nossa sociedade ou por cumplicidade e laços comestíveis?
Ouviu-se uma tentativa de desvalorizar o sucedido pelo facto de o representante do Grupo Oásis ter atribuída a culpa à Covid-19, a culpada de todos os males em Cabo Verde, que paralisou os hotéis, obrigando a que desligassem as máquinas e tivessem que as limpar agora, imaginem, sem nenhuma obrigação de garantir que essa limpeza não afeta nem contamina o areal da praia de Santa Maria. Como se isso fosse um motivo mais que suficiente para se despejar esse resíduo no nosso areal, esquecendo até que, quando convém, os ministros batem no peito que a ELECTRA tem capacidade suficiente para satisfazer 2 ou 3 vezes as necessidades da Ilha do Sal.
Cometeu-se um crime ambiental, meus caros e ponto final!
Se o Hotel não está em condições de reparar os seus equipamentos e fazer uma produção saudável, deveria os responsáveis do mesmo recorrer à empresa de fornecimento de água até que o problema ficasse resolvido. Despejar esse concentrado na praia de Santa Maria só pode configurar a prática de um crime ambiental que não deve ficar sem a devida investigação, responsabilização e efetiva descontaminação desse areal.
4. Descaso Ambiental não Combina com Bandeira Azul: ou o anunciado é apenas mais uma “Basofaria” inconsequente das nossas autoridades?
Como continuar a falar da preparação da nossa praia-estrela das ilhas de Cabo Verde para receber a tão proclamada bandeira Azul, quando tolera-se com essa leveza atos dessa natureza?
Não poderei deixar de recordar que a Bandeira Azul simboliza uma elevada qualidade ambiental para as praias, procurando sempre aumentar a consciencialização e a preocupação com o ambiente costeiro, lacustre e fluvial dos utilizadores que dele usufruem. Mas, ao que parece, mais uma vez, as nossas palavras e os nossos desejos, andam na contramão das nossas políticas, práticas e ações. Será que ninguém percebe que numa praia onde cada um faz o que quer “Bandeira Azul” nunca passará de mais uma retórica, mais uma “Basofaria de Criol”? Nunca mais alinhamos as palavras com os atos no que tange à importância do turismo para a Ilha do Sal? É que turismo sem o mínimo de compromisso com o ambiente só pode ser sol de pouca dura? Como podem as mesmas autoridades fundamentar palavrosamente toda a estratégia para a obtenção da bandeira azul para praia de Santa com a sua importância para o turismo nacional, a competitividade da ilha do Sal, quando na prática ignoram completamente tão graves agressões exercidas sobre ela, já que sequer estamos perante um “pequeno deslize” que não tenha acontecido antes neste mesmo areal. Onde anda a coerência, meus senhores?
A própria população da ilha que tanto depende do turismo, num tempo em que se volta a falar de forme na ilha do Sal devido aos efeitos da pandemia da Covid-19 no turismo e no emprego, precisa ser mais interventiva e interessada em reivindicar das autoridades locais e nacionais muito maior compromisso para com o ambiente na ilha toda, mas sobretudo na preciosa e frágil praia de Santa Maria. Pois, já dizia Edmund Burke - "Ninguém cometeu maior erro do que aquele que não fez nada só porque podia fazer pouco". Se quisermos melhorar, temos que ter atitudes mais responsáveis e apostar numa verdadeira cidadania ambiental na nossa ilha. É urgente que a ilha recupere a sua capacidade interventiva do passado e se defenda dos políticos desinteressados ou comprometidos com outros interesses que não os públicos.
Nenhum investidor nacional ou estrangeiro investe no turismo na ilha por caridade. Investem porque confiam que o seu investimento tem retorno. No dia em que acharem que não, desistem do País e procuram outro destino. Infelizmente, nem todos de livre e espontânea vontade adotam um comportamento responsável na certeza que o retorno é tanto maior quanto melhor for o comprometimento de todos na defesa, preservação e valorização do nosso património natural e ambiental. Por isso o País tem uma administração local, uma administração central, um governo, um parlamento nacional, eleitos locais, organizações da sociedade civil e CIDADÃOS, todos responsáveis por assegurar que ninguém fica impune quando age com total desprezo ambiente e pela nossa inteligência. Ou ninguém está à altura das suas responsabilidades? Ninguém se importa?
Osvaldino Cruz
2022-01-30
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