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Apontamentos sobre uma ante-proposta de Orgânica DOA
Ponto de Vista

Apontamentos sobre uma ante-proposta de Orgânica DOA

"Apesar de falhas que ocorreram, é importante defender a justeza global de um caminho seguido com toda a transparência e o propósito de construir um resultado sério e benéfico. Sobretudo, importa sublinhar que as soluções vazadas nessa ante-proposta foram reflectidas e são razoáveis. Na sua discussão e posterior transposição a escrito participaram vários sujeitos, incluindo Juristas de diferentes gerações. Procurou-se, naturalmente, chamar a bordo experiências de outras paragens. Por exemplo, a solução encontrada em Timor Leste para a Primeira Dama é inspirada e inspiradora, merecendo ser saudada. Em Cabo Verde sabemos todos que a Primeira Dama não é figura com assento constitucional. Não é isso que está em causa. Sabemos também, conquanto circunstancialmente não se queira admiti-lo, que a Primeira Dama é hoje uma realidade indesmentível nestas ilhas. Nem sempre foi assim, é verdade. "

‘Vladimir: Então, vamos?

Estragon: Vamos.

Não se movem.’

- in Beckett, À espera de Godot

 

Ainda adolescente, pude ler (na edição portuguesa da Ulisseia, 2 vols, 1958/60), ‘O Degelo’, 1954, do mais que controverso Ilya Ehrenburg, o célebre romance que deu nome, na então União Soviética, a um período de alguma abertura relativamente ao tenebroso estalinismo, a chamada ‘Era Nikita Khrushchev’. Esse mesmo, o das sapatadas nas Nações Unidas. Achei-o lá por casa, li-o. Pouco antes, por conseguinte, de obras como ‘O pavilhão dos cancerosos’, de Soljenitsine, ‘O Processo’, de Kafka, as de George Orwell e outras nessa fileira da denúncia da pequenez ou da fragilidade do indivíduo perante as engrenagens do poder e suas derivas para a irracionalidade e a maldade como política de Estado, quaisquer que sejam as vestes que assuma, não importa em que época. Obras que ensinam a estar do lado da Liberdade e da Dignidade da Pessoa, mormente quando lidas no tempo certo, na idade porventura de maior sede de aprender.


Estranhamente, ou nem tanto, estes registos de leitura têm-me vindo à memória. Recordam-me o quanto a minha relação antiga e constante com os livros moldou o meu desempenho nas diferentes instituições por onde passei. Aqui, o apoio à  criação de uma biblioteca pública, acolá o estímulo ao hábito de actualização dos espólios, o que, infelizmente, não é um dado adquirido no Estado cabo-verdiano. Extinto que fora o Instituto Cabo-Verdiano do Livro, a problemática do livro e da leitura ficara sem poiso institucional. E é em 2002, estava eu na pasta da Cultura e Desportos, que, no quadro de um alargado trabalho de institucionalização, surge o Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro. Anos mais tarde, na Presidência do Conselho de Ministros, coloquei especial empenho na criação, na Orgânica da Chefia do Governo, com a subsequente instalação e dinamização, da Biblioteca do Governo. Actualmente, tenho tido imenso gosto em ajudar a enriquecer e a dinamizar a ‘Biblioteca Presidente Mascarenhas Monteiro’, da Presidência da República. Um grande empecilho com que temos sido confrontados é o da falta de um ou uma Bibliotecário/a. Essa era, aliás, uma das questões que se propunha resolver com a nova Lei Orgânica da Presidência da República, concluída em Maio de 2022.


E assim, com este intróito, faço a ponte para o seguinte: nessa ante-Proposta de Lei Orgânica (se assumida pelo Governo, passaria a ser Proposta ao Parlamento) as disposições jurídico-administrativas atinentes à Primeira Dama representavam apenas um bloco de matérias de entre as várias outras tratadas. Não sem razão se disse (desde logo no longo e detalhado preâmbulo) que um tal diploma seria um importante contributo para o enriquecimento institucional do nosso Estado. De resto, e porque disposições dessa ante-proposta vão sendo lançadas a público de forma esquartejada, parece-me oportuno que brevemente ela seja partilhada, no seu todo, enquanto uma peça de interesse para a Opinião Pública. De todo o modo, vou realçando que o maior ganho seria, finalmente, reconhecer à Presidência da República, tal como de há muito acontece com a Assembleia Nacional, a capacidade de se organizar internamente e de viver com um quadro privativo, trazendo alguma justiça salarial aos seus funcionários. Capacidade também de atrair maiores qualificações profissionais para o seu quadro permanente. É esse quadro, e não o do pessoal em comissão, que garante a estabilidade e o futuro da instituição. Nesse sentido, todos os cálculos foram feitos e traduzidos em dotação orçamental. Em 2023 e em 2024. Ou seja, há compreensões de política pública que sustentam a ante-proposta. Não se trata de uma caprichosa penada, desmerecedora, por conseguinte, de atenção e seguimento nos corredores do procedimento legislativo.


É pena que não tenha havido abertura e serenidade para trabalhar sobre tal ante-proposta e viabilizá-la. Todavia, tenho que se trata de um adiamento; mais tarde ou mais cedo, as matérias em causa terão de ser encaradas. Desta vez, bastava que a oposição à ante-proposta tivesse sido frontal e claramente exprimida e teríamos todos, o Estado à cabeça, sido poupados de um tão prolongado ciclo de desgaste. No relacionamento entre Órgãos de Soberania a boa fé tem de prevalecer e não é razoável que seja qualificada de imprudência ou ingenuidade. Ai de nós!... Ela não é um conteúdo espúrio. Pelo contrário, no domínio da boa fé nunca se deve arrepiar caminho. E este é um ingrediente que temos todos de ajudar a cultivar na conversação nacional, designadamente na conversação política. Com as estratégias de não-diálogo, de relacionamento com reserva mental, de autismo em relação aos argumentos dos outros, de diabolização de pessoas porque as suas ideias são diferentes, de atirar a lama a ver se pega, acabamos todos, enquanto comunidade nacional, por perder, no imediato ou a prazo. Por mim, preferirei sempre o espaço do bom senso e do equilíbrio. Assim foi, por exemplo, quando se abriu uma campanha de aviltamento do Senhor Primeiro Ministro por causa de uma intervenção em Inglês num evento internacional. Pareceu-me mal tal sanha contra o Chefe do Governo da República e, em consequência, escrevi um texto que, queira-se ou não, ajudou a desmantelar tal irracionalidade. Note-se, de irracionalidade falei logo na abertura desta minha escrita de hoje... Acredito que o combate político deve ser feito com elegância, sempre. Nunca com ódio, nunca sob o impulso da inveja, do despeito, do ressabiamento, nunca nivelando por baixo. Já leva alguns anos (DNC de 2016) este ensinamento dessa figura proeminente que é Michelle Obama, antiga Primeira Dama dos Estados Unidos da América: “When they go low, we go high”.


Apesar de falhas que ocorreram, é importante defender a justeza global de um caminho seguido com toda a transparência e o propósito de construir um resultado sério e benéfico. Sobretudo, importa sublinhar que as soluções vazadas nessa ante-proposta foram reflectidas e são razoáveis. Na sua discussão e posterior transposição a escrito participaram vários sujeitos, incluindo Juristas de diferentes gerações. Procurou-se, naturalmente, chamar a bordo experiências de outras paragens. Por exemplo, a solução encontrada em Timor Leste para a Primeira Dama é inspirada e inspiradora, merecendo ser saudada. Em Cabo Verde sabemos todos que a Primeira Dama não é figura com assento constitucional. Não é isso que está em causa. Sabemos também, conquanto circunstancialmente não se queira admiti-lo, que a Primeira Dama é hoje uma realidade indesmentível nestas ilhas. Nem sempre foi assim, é verdade. Algures, no meu post de 7 de janeiro de 2024, escrevi o seguinte a propósito do primeiro diploma orgânico da Presidência da República aprovado sob a égide da Constituição de 92: “Na época, esse diploma foi um ganho enorme. Nesses idos de 90, já se sentia a necessidade de amparo institucional para o Cônjuge do Chefe de Estado e era referida, em particular, a necessidade de assessoria específica. Mas não se foi além disso. Não foi algo sentido como uma premência que devesse o diploma orgânico acautelar.” Com o passar dos anos, os dados foram-se alterando, cresceu em grau e em âmbito o espaço de intervenção do cônjuge do Chefe de Estado, bem como foi entrando na linguagem comum e na oficial a expressão Primeira Dama. Isso é acima de tudo resultado da postura e do trabalho das digníssimas Senhoras que sucessivamente assumiram o papel de Primeira Dama. Outrossim, parece absolutamente anacrónica a ideia das Primeiras Damas como agentes da bondade ou inócuas promotoras de tômbolas. Fosse para isso, no caso de Cabo Verde, nunca o Legislador, com a Orgânica de 2007, ainda em vigor, se teria dado à maçada de produzir as disposições constantes no artigo 11º e relativas ao Gabinete de Apoio ao Cônjuge do Chefe de Estado.


No que se refere aos vínculos laborais vs proventos, paulatinamente os Estados têm procurado acomodar a situação dos cônjuges dos Chefes de Estado, por via de regra, Primeira Dama (sendo que se vai alargando o leque de Chefes de Estado Mulheres). E sobretudo porque longe vai o tempo em que as Primeiras Damas eram Senhoras já em idade respeitável e sem tradição de vida profissional, no sector público ou no privado. Era o tempo da ‘esposa do Senhor Presidente’. Mesmo a linguagem protocolar fazia coro com o apagamento, maxime nos discursos oficiais: “Sua Excelência o Presidente Fulano X e Senhora de Fulano X”.  Já não é assim hoje em dia. Os cônjuges são ciosos da sua identidade e do seu percurso profissional. Urge proteger as dinâmicas de hoje. Urge romper com algum provincianismo na interpretação da evolução que vai acontecendo, no mundo mas também nas nossas ilhas. É fundamental que a celeuma em torno da subvenção ou o seu montante não impeça o diálogo sobre o fundo da questão.


Por tudo e por nada, normalmente invoca-se a experiência portuguesa. Neste caso, conviria conferir se, nas mais recentes situações, as Senhoras Primeiras Damas tiveram ou não, nos seus quadros profissionais, os seus compromissos reduzidos ao mínimo, quase simbólico, para que pudessem assumir sem constrangimentos a sua nova condição no Estado. E assim até à passagem à aposentação. Entendimentos de Estado, afinal.

O caso americano, conquanto frequentemente citado, é distinto. Trata-se de uma realidade outra, com uma longa história e uma experiência institucional consolidada. Funciona para o Chefe de Estado e seu cônjuge a lógica dos encargos do Estado. E tudo acontece normalmente, sem atropelos nem alaridos. A actual Primeira Dama, Senhora Jill Biden, quis (=opção) continuar a trabalhar na sua área, a do Ensino, mas teve de ser num regime de mínimos. Justamente porque tem de atender a intensos compromissos na agenda presidencial. Ainda recentemente foi ela quem chefiou a delegação oficial americana aos Jogos Olímpicos de Paris. Certamente que está presente na memória das pessoas que se interessam por este tipo de matérias, o ponto de viragem que foi, neste particular, a chegada do Presidente Clinton à Casa Branca, em 1993. Era então a vez de um casal jovem, ambos profissionais bem sucedidos. Seria possível, na lógica da salvaguarda do ‘office’ presidencial, que a nova Primeira Dama continuasse na sua fulgurante carreira profissional no mundo da concorrência de pesadíssimos interesses? O que se viu foi um fortalecimento do prestígio do Gabinete da Primeira Dama, com Hillary Clinton assumindo um papel de destaque, conduzindo dossiers de interesse público que lhe deram enorme projecção interna e internacional. Por exemplo, a sua campanha “it takes a village to raise a child” foi de enorme impacto para a realização dos Direitos da Criança à escala global, e designadamente para a protecção das jovens raparigas. Deu enorme visibilidade à luta contra práticas, como a da excisão genital, que o ‘relativismo cultural’ desculpava, normalizava. Em Dakar, em 1998, pronunciou-se frontalmente contra tal prática. A África é testemunha desse contributo. A União Africana sabe disso. Repercussão positiva também se encontra no Protocolo Adicional de Maputo sobre os Direitos da Mulher em África. Foi a expensas pessoais essa agenda cumprida pela Senhora Clinton? Não, esteve sempre a cumprir encargos, nunca tendo de questionar por proventos ou subvenções. Esta linha de densificação do papel da Primeira Dama continuou especialmente com as Senhoras Laura Bush e Michelle Obama. Chegados a Novembro próximo, porventura o Gabinete será, pela primeira vez, Gabinete do First Gentleman...

Na nossa pequena e modesta realidade institucional, no nosso meio social de atavismos que volta e meia vêm à tona, convém que prevaleça a serenidade para perceber o que está em causa e, assim, debater com o necessário nível de qualidade e argumentação. Se as soluções apresentadas pela Presidência da República são porventura obtusas, que se contraproponha outras. O silêncio não é caminho idóneo.
Pessoalmente, sou testemunha do quanto a presença da Senhora Dra. Débora Carvalho na Presidência da República, a tempo inteiro, foi proveitosa. Trouxe uma outra dimensão ao que seja ser Primeira Dama. Deitou mãos à obra, sem pruridos, e ajudou a trazer ganhos em várias frentes do desempenho da Instituição. Penso que é o jeito dela de estar: sempre com enorme entrega e capacidade de fazer acontecer. Em Cabo Verde, parece-me que cabe sobretudo às Mulheres defender a figura da Primeira Dama como um ganho seu, ano após ano fortalecido. Cabe-lhes ampará-la e acalentá-la.

Porventura em ocorrendo algum degelo na forma crispada e absolutamente violenta, não raro irracional, de fazer política em Cabo Verde, se abra caminho à possibilidade de discutir os problemas pelo seu mérito intrínseco, com a preocupação, sufragada por todos, de encontrar soluções que melhor respondam ao que for identificado como de interesse público. Importa acreditar e ir colocando, aqui e acolá, o quinhão de cada um para que o futuro seja melhor. Soyinka fala de ‘idealistas incorrigíveis’ ...
 

(*) DOA = Dead on arrival. Morto à chegada. Rejeitado liminarmente.

* Chefe da Casa Civil da Presidência da República

(Artigo originalmente publicado pelo autor na sua conta no Facebook)

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