O dia em que a luz se apagou no Parlamento ficará, provavelmente, como uma das imagens mais expressivas da atual legislatura. Mais do que um incidente, foi um diagnóstico coletivo. Ulisses Correia e Silva parece prisioneiro de um ciclo que já não domina: o de um poder fatigado, reativo e envolto em justificações. A história política mostra que governos não caem apenas por derrotas eleitorais, mas por esgotamento simbólico, quando já não são capazes de inspirar ou de representar esperança. O episódio da escuridão no Parlamento foi, nesse sentido, o prenúncio visível do que muitos interpretam como o crepúsculo de uma era política em Cabo Verde.
O episódio ocorrido recentemente no Parlamento cabo-verdiano, um apagão súbito durante a intervenção do Primeiro Ministro Ulisses Correia e Silva, transcende o domínio do acaso técnico e inscreve-se simbolicamente no imaginário político nacional. No momento em que o chefe do Governo afirmava que “tudo está bem”, as luzes da Assembleia Nacional extinguiram-se, deixando a sessão mergulhada na escuridão e a nação, simultaneamente, numa metáfora perfeita da sua atual condição. O incidente, transmitido em direto pelos meios de comunicação, não apenas expôs a precariedade da infraestrutura energética do país, mas revelou, com brutal clareza, a fragilidade do próprio discurso governativo. Foi um instante de ironia política tão involuntária quanto devastadora: enquanto Ulisses Correia tentava afirmar estabilidade, a realidade respondeu-lhe com silêncio e trevas.
A ironia política como diagnóstico de uma era
A coincidência do apagão não pode ser lida apenas como curiosidade. No plano simbólico, ela traduz um colapso de coerência entre palavra e realidade. A energia que falha no momento em que o líder defende a normalidade é o reflexo mais fiel de um governo em desconexão com o quotidiano dos cidadãos. Cabo Verde tem vivido sucessivos cortes de eletricidade, sobretudo na cidade da Praia, atingindo tanto lares humildes como instituições públicas. Quando a escuridão atingiu o Parlamento, atingiu também a credibilidade de um Executivo que há muito parece governar sob a sombra da sua própria retórica. O riso nervoso que percorreu as bancadas e o embaraço generalizado dos presentes foram a tradução sensível de uma verdade política que nenhum comunicado oficial pode apagar.
Um governo sitiado pelo quotidiano
Ulisses Correia e Silva tem procurado construir uma imagem de racionalidade e serenidade administrativa, mas o país parece escapar-lhe pelos interstícios da rotina. A gestão das crises energéticas, a instabilidade social e a perceção pública de ineficiência criam uma atmosfera de exaustão coletiva. A cada falha técnica corresponde uma falha simbólica: o Estado que não consegue manter a luz acesa é também o Estado que não ilumina o caminho das suas políticas. O apagão no Parlamento, nesse sentido, condensou num só gesto toda a vulnerabilidade de um poder que insiste em afirmar domínio sobre uma realidade que já não controla.
A teatralidade do poder e o colapso da encenação
A política moderna, sobretudo em democracias frágeis, depende da manutenção de uma encenação de autoridade. O Parlamento é o palco dessa teatralidade institucional, onde a linguagem e o gesto devem transmitir domínio e previsibilidade. No entanto, quando o cenário literalmente se apaga, o que se revela é o esgotamento do próprio teatro do poder. O episódio, visto em direto por milhares de cabo-verdianos, desmontou o artifício da confiança governativa. O desconforto do Primeiro Ministro foi perceptível, não apenas físico, mas existencial. Ali, sob o olhar das câmaras, o poder perdeu o controlo da luz e, com ela, da narrativa.
De metáfora a diagnóstico estrutural
O apagão é também sintoma de uma crise mais profunda: a do modelo de governação. Desde as derrotas autárquicas que abalaram o Movimento para a Democracia (MPD), o país observa um Executivo cada vez mais reativo, consumido por explicações e justificações. A oposição, reforçada por um PAICV internamente revigorado após as suas eleições partidárias, encontrou terreno fértil para capitalizar o desgaste. Entretanto, a população observa com cepticismo uma elite governativa que parece priorizar a imagem sobre a substância. O investimento em campanhas e estratégias de comunicação não tem conseguido encobrir o sentimento de declínio. O governo fala de progresso; o cidadão vê apagões, carestia e promessas adiadas.
A erosão da legitimidade e o cansaço social
A confiança pública, tal como a eletricidade, é um fluxo contínuo que sustenta a vida democrática. Quando esse fluxo é interrompido, instala-se a penumbra da descrença. Cabo Verde, outrora celebrado como exemplo de estabilidade e institucionalidade em África, assiste agora à lenta erosão dessa reputação. O nervosismo do Primeiro Ministro é, em última instância, o nervosismo de um sistema que já não convence. As falhas técnicas tornaram-se parábolas políticas; e cada apagão é lido, na imaginação popular, como metáfora da governação que falha. A ironia, cruel mas precisa, é que o governo se debate para restaurar luz onde primeiro precisa restaurar confiança.
O Parlamento como espelho da república
O comportamento do Presidente da Assembleia, ao tentar gerir com elegância o embaraço, salvou momentaneamente a dignidade institucional do momento. Mas nem o seu gesto conciliador pôde disfarçar o constrangimento coletivo. O Parlamento, símbolo máximo da racionalidade democrática, foi subitamente reduzido à vulnerabilidade de qualquer casa comum do cidadão. A fronteira entre Estado e sociedade dissolveu-se na escuridão partilhada. O episódio revelou uma verdade paradoxal: o poder, mesmo no seu espaço mais solene, é tão frágil quanto a lâmpada que o ilumina.
Epílogo: quando a política perde a sua luz
O dia em que a luz se apagou no Parlamento ficará, provavelmente, como uma das imagens mais expressivas da atual legislatura. Mais do que um incidente, foi um diagnóstico coletivo. Ulisses Correia e Silva parece prisioneiro de um ciclo que já não domina: o de um poder fatigado, reativo e envolto em justificações. A história política mostra que governos não caem apenas por derrotas eleitorais, mas por esgotamento simbólico, quando já não são capazes de inspirar ou de representar esperança. O episódio da escuridão no Parlamento foi, nesse sentido, o prenúncio visível do que muitos interpretam como o crepúsculo de uma era política em Cabo Verde.
A democracia, contudo, vive de renovações. Que o apagão de hoje se converta, amanhã, num recomeço iluminado dependerá menos dos governantes e mais da maturidade cívica de um povo que aprendeu a reconhecer a diferença entre luz artificial e claridade verdadeira.
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Comentários
Casimiro Centeio, 17 de Out de 2025
O apagão não se restringe só no âmbito da energia elétrica, mas em todos os domínios, i.e. o país inteiro vive no apagão cuja causa principal é a desgovernação de UCS. A análise feita através desse artigo, demonstra quão grave é o efeito dominó dessa má governação no futuro. Parabéns, C. Barbosa, por essa reflexão .
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