A crónica de um arguido anunciado
Ponto de Vista

A crónica de um arguido anunciado

No final da audiência de ontem foi bom ter ouvido o Minho, como é conhecido em alguns círculos da sua amizade, afirmar que não se calará. Uma declaração que encerra uma dose de benévola “fanfarronice”, mas no fundo é possível que se se trate apenas disso. E se não fosse um atentado contra a minha natureza intrínseca, até era capaz de dar ao Hermínio Silves um conselho que nunca esperei dirigir a um jornalista: “fica calado, sim, não te exponhas porque ninguém virá em tua ajuda”. Mas isto é apenas uma hipótese.


Ainda antes de a decisão da Procuradoria Geral da República (PGR) ter sido tomada eu tinha projectado escrever alguma coisa sobre o “Caso Hermínio Silves” (sim, porque agora há um caso Hermínio Silves), mas foi porque alimentava a expectativa, ou melhor dizendo, uma certa esperança, de que o Ministério Público iria desistir definitivamente de atribuir ao jornalista em questão e ao jornal para o qual trabalha o estatuto de arguidos num processo em que os citados não o podiam ser, por não se lhes poder imputar o crime de violação do Segredo de Justiça.

Deixei decorrer ainda mais de 24 horas e dormi sobre o assunto para ver se me passava a vontade de fazer a crónica que tinha prometido a mim mesmo, mas nada! A tentativa de autocensura não resultou e apesar de tratar-se, nos tempos que correm, de uma atitude "sensata" e constituir o desporto favorito da classe profissional a que tenho a honra de orgulhosamente pertencer, não consegui silenciar-me.
E então acontece este texto a que chamo “A Crónica de um Arguido Anunciado” porque apesar da esperança que alimentava em relação a uma possível atitude de bom-senso da parte do titular da acção penal em Cabo Verde, este decidiu mesmo, em pleno Século 21, constituir arguido um jornalista no exercício da sua profissão, pela simples razão de ter divulgado informações constantes de um processo do qual o principal guardião é o próprio Ministério Público.

Não interessa se não estou de acordo com o que escreveu, quando escreveu e como escreveu o meu colega e amigo Hermínio Silves em relação ao caso que envolve o Ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, sobre ocorrências que há mais de 7 anos estão a ser investigadas pela Procuradoria Geral da República.

Mas o facto de não aprovar eventualmente as opções e os critérios jornalísticos do Hermínio Silves no tratamento do referido dossier não me iliba da responsabilidade de lhe ser solidário nem da obrigação de tudo tentar fazer para que lhe seja possível exercer o direito, fundamental para um jornalista, de divulgar as informações de que é possuidor e que ele considere serem do interesse público.

GRAVES CONSEQUÊNCIAS

De qualquer forma, aconteceu o que se poderia ter evitado, e a primeira consequência, lamentável mesmo que a lei fosse clara e cristalina a prever a condição de arguido para alguém que, não fazendo parte de um processo judicial, não está sujeito ao dever de Segredo de Justiça, é a seguinte: o jornalista em alusão fica completamente impedido de escrever sobre o caso, em relação ao qual o que a sociedade cabo-verdiana exige, quanto mais não seja para tranquilidade e para a reposição do bom nome dos implicados, é que seja esclarecido de maneira definitiva e sem mais perda de tempo.

A segunda consequência são os impactos negativos de toda esta história na estrutura psicológica do jornalista que, creiam-me, senhores, jamais será o mesmo. Conheço muito bem o Hermínio Silves, sei da sua irreverência, da sua valentia e até, posso dizê-lo, da sua generosa temeridade, mas pode ser que sobre ele se tenha lançado, com esta decisão do Ministério Público, um forte e definitivo quebranto.
Espero estar enganado, mas a verdade é que é desta maneira que se criam e se formam autocensurados, jornalistas amorfos e acomodados, homens amedrontados e cidadãos submissos. E se levarmos em conta que é a própria máquina da justiça republicana e democrática cabo-verdiana a proceder desta forma, somos obrigados a estar seriamente preocupados porque acima dos magistrados ninguém (nao digo que incorram em ilegalidades mas que podem cometer erros grosseiros, como todos nós), e o único controlo que sobre eles impende é o escrutínio da opinião pública, que só pode estgar informada e ser esclarecida com o trabalho dos jornalistas.

FORÇA DESPROPORCIONAL

E nesta fase, já nem interessa saber a quem a lei favorece, uma vez que importaria sim, era perguntar quem está do lado da justiça e do bom senso. Mesmo que pontualmente a razão dos códigos legais assista ao Ministério Público, este estaria a prestar um grandioso serviço à sociedade se abdicasse da sua razão e da sua legalidade para deixar respirarem as liberdades, neste caso de imprensa, ainda que exercida com um pouco de excesso e com alguns laivos de desafio à máquina judicial.

Afinal, o Ministério Público está a dar mostras de uma forca desnecessária, excessiva, esmagadora e mal dirigida, porque neste caso de violação do Segredo de Justiça ele sabe bem onde deveria procurar os culpados, mas um facto é que, daquele lado também se pode opor alguma resistência equivalente, ao contrário do nulo perigo que o meu amigo Hermínio Silves pode representar.

Outra coisa que se deve esperar da Procuradoria Geral da República é que o “Caso Hermínio Silves” fique nas gavetas durante os longos 7 anos que o outro já dura, e seja depois arquivado. É que as implicações da decisão impendente sobre o escriba de São Domingos são sérias, muito sérias, para todos nós. Se o jornalismo cabo-verdiano já padecia de níveis preocupantes de autocensura, porque esta é convenientemente subterrânea, este fenómeno vai, agora, passar a estar muito mais profundamente arraigado nessa classe profissional.

Ficaremos de certeza mais pobres, quanto mais não seja pelo facto, simples, de ficarmos, a partir de agora, sem o nosso cão de guarda de São Domingos. Menos um.

No final da audiência de ontem foi bom ter ouvido o Minho, como é conhecido em alguns círculos da sua amizade, afirmar que não se calará. Uma declaração que encerra uma dose de benévola “fanfarronice”, mas no fundo é possível que se se trate apenas disso. E se não fosse um atentado contra a minha natureza intrínseca, até era capaz de dar ao Hermínio Silves um conselho que nunca esperei dirigir a um jornalista: “fica calado, sim, não te exponhas porque ninguém virá em tua ajuda”. Mas isto é apenas uma hipótese.

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