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Para além do liceu da Várzea
Colunista

Para além do liceu da Várzea

1. Tomemos como ponto de partida a seguinte ideia: o problema não está diretamente na “venda do liceu”. O problema estará no “significado da venda do liceu”. O problema é mais abrangente, está em muito do que se situa à volta do processo e a forma como foi e tem sido conduzido. Forçosamente, teremos de olhar para todos os lados desta venda. O filósofo Ortega y Gasset dá razão a esta forma de olhar à volta quando profere a conhecida frase: “eu sou eu e as minhas circunstâncias”. As circunstâncias têm o poder de definição e entendimento. Além de olhar à volta, temos ainda de olhar para além do evidente que se apresenta diante dos nossos olhos, na linha do defendido pelo sociólogo Pierre Bourdieu: “é preciso olhar para além das cortinas”. Olhar as circunstâncias e olhar para além daquilo que nos mostram. Olhar para aquilo que não nos mostram e, logo, tentam esconder;

2. Parece-nos que o motivo de toda esta indignação que estamos a presenciar em torno da “venda do liceu da Várzea”, reside no elevado grau de repulsa e antipatia que a ideia de venda de património do Estado está a atingir no seio da sociedade caboverdeana! Para termos uma ideia da evolução desta situação, é muito importante notarmos que, nas redes sociais, chegou-se ao ponto de o Primeiro-ministro do país ser apelidado de “rabidante de luxo”, em alusão à ideia de alguém que tem na ‘revenda’ um modo de vida – sem qualquer desprimor para @s rabidantes.   Neste caso, seria mais alguém que vende um bem público – uma escola – que é de todos os caboverdeanos. Assim, uma questão que se torna central é a de se saber como irá reagir a população quando mais patrimónios como, por exemplo, se começar a vender os lucrativos aeroportos? O desafio é abandonar as vendas dos bens do Estado ou negar e desvalorizar a crescente indignação e, assim, comprar um perigoso risco de explosão social!

3. É fundamental perceber que a gravidade da venda do liceu da Várzea reside no facto de ser uma estratégia já utilizada ao nível da Câmara Municipal da Praia e que, agora, é levada para o Governo da República: há um refinamento da venda de terrenos que passa por identificar e vender os derradeiros pedaços de terra disponíveis dentro da malha urbana. São exemplos disso os últimos recortes de terrenos vendidos às entradas de Ponta d’Água, mesmo nas ourelas da rotunda; da Fazenda, logo a seguir à estação da Shell; e da Prainha, depois da rotunda da subida de Poeta, na Achada de Santo António; tudo, revolvendo essas encostas, sufocando com betão os últimos pedaços de chão bem localizados nos cruzamentos e pontos de maior circulação para criar a sensação de trabalho. Certamente, terá contribuído para o avolumar desta indignação popular, o recente caso da alegada oferta do terreno também na Prainha, a um ex. Embaixador da União Europeia em Cabo Verde – oferenda justificada publicamente como tendo sido em nome dos “relevantes serviços prestados à Nação”. Vendas que, juntas, constituem o reforço da ideia de que os terrenos só serão entregues aos detentores de maior poder económico;

4. É imperioso notar que a venda do terreno com o liceu da Várzea acontece ainda neste período turbulento, em que há uma onda crescente de contestação provocada pela tragédia do fim de toda a parte da praia da Gamboa, depois do antigo “Ponto Bedju”; da ocupação de mais de metade do areal da Prainha por um investimento direto estrangeiro; do fim da praia de Maria Virgínia, reservada para um novo bar; e da criação da cortina de bares à volta da praia de Quebra Canela. Vem se juntar ainda a destruição da Praia Negra, ocorrida por volta dos anos 90. Neste contexto, é ilustrativo, o desabafo lancinante do artista praiense Tony Kaya: «Cidade da Praia comemora e assinala a morte das suas praias! Praínha, Kebra Kanela, Gamboa, Praia Negra. “Ningen pa tadja!»

5. Será esta onda de indignação o sinal de uma réstia de esperança de que – uma franja significativa da sociedade – já começou a ter uma ideia mais clara das consequências que representa o risco da concretização da venda das 25 empresas, cuja lista o Governo da República publicou no Boletim Oficial do dia 3 de agosto de 2017? Enquanto isso, já se está a viver a confirmação da aposta em vender tudo que é rentável de modo a transferir para os amigos as riquezas do Estado. É o regresso de uma estratégia já utilizada nos anos 90, em que foram vendidas inúmeras empresas do Estado, entre as quais a Cabo Verde Telecom e a Electra, recuperadas mais tarde, a partir de 2001, com mudança de Governo. Arriscamo-nos a afirmar que pelo menos 41% de caboverdeanos não sabe o que significam nomes como: EMPA, ENAVI, Arca Verde, EMEC, SONACOR, TRANSCOR, CABNAVE, SCAPA e Justino Lopes. Se a esses 41% que tinham 18 anos no final da década de 90, somarmos mais uns tantos que não se importaram com o rumo dado ao país, então, assim poderemos perceber uma amnésia social tão grande que pode explicar o regresso de, exatamente, os mesmos “vendedores” ao poder para finalizarem o processo de “privataria” iniciado 25 anos atrás: vender o Estado!

6. Na teoria dos movimentos sociais, a venda do liceu da Várzea é aquilo que se designa de “gatilho” capaz de despoletar uma situação latente que estivesse à espera de um derradeiro empurrão. A verdade é que as circunstâncias atuais são caracterizadas por um ambiente social de vendas: TACV foi vendida; a ligação aérea entre as ilhas foi vendida à Binter; as ligações marítimas foram vendidas à Transinsular; o mar foi vendido para exploração da pesca. Daí, a necessidade imperiosa de olharmos para além da venda isolada do liceu da Várzea – uma simples cortina de fumo – e, sobretudo, esta é a hora de as autoridades governamentais começarem a perceber que vender património do Estado – às claras ou às escondidas – poderá estar a tornar-se perigoso para quem vende e arriscado para quem compra!

  • Cabo Verde: "Favorecimento” na aquisição de terreno pelo ex-representante da UE? (16 jan 2018)

https://www.dw.com/pt-002/cabo-verde-favorecimento-na-aquisi%C3%A7%C3%A3o-de-terreno-pelo-ex-representante-da-ue/a-42167915

  • Denúncia de eurodeputada portuguesa agita dirigentes políticos cabo-verdianos (9 jan 2018)

https://africa21digital.com/2018/01/09/denuncia-de-eurodeputada-portuguesa-agita-dirigentes-politicos-cabo-verdianos/

  • Governo avança para privatização de empresas públicas (12 ago 2017)

https://expressodasilhas.cv/economia/2017/08/12/governo-avanca-para-privatizacao-de-empresas-publicas/54315

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine