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Sérgio Corrá. “A situação da Boa Vista é catastrófica. Os lobbies não são regionais, são familiares. Já nenhum investidor acredita nesta ilha”
Entrevista

Sérgio Corrá. “A situação da Boa Vista é catastrófica. Os lobbies não são regionais, são familiares. Já nenhum investidor acredita nesta ilha”

Retrato quase distópico da Boa Vista, feito pelo deputado do Partido Popular na Assembleia Municipal da ilha, o italiano Sérgio Corrá, a contrapor cenários mais optimistas do presidente da Câmara e da AM local que mesmo apontando potencialidades, culpam o Governo pelo atraso da ilha das dunas. Para Sérgio Corrá, há dois tumores malignos na Boa Vista: Sociedade de Desenvolvimento Turístico da Boa Vista e Maio (SDTIBM) e A Água e Energia da Boa Vista (AEB). “Na Boa Vista está tudo interligado, lobbies familiares, financeiros… Criam-se oligarquias. Boa Vista é a pior ilha para governar”, considera o deputado e empresário, que já não acredita em Cláudio Mendonça como ‘salvador’ da Boa Vista.

Santiago Magazine – No rescaldo das festividades da Santa Isabel, padroeira do município da Boa Vista, pergunto-lhe, enquanto deputado do Partido Popular (PP), que equilibra a assemblea municipal, como vê a ilha neste momento?

Sérgio Corrá – Estamos a viver na ilha da Boa Vista há 26 anos. Durante todo esse tempo, só vemos da parte das Câmaras Municipais uma política exclusivamente populista que não favorece o desenvolvimento da ilha. Infelizmente, mesmo com a mudança em Outubro de 2020, vemos que essa política populista continua. Ou seja, esta maneira de fazer foi implementada pelas câmaras do MpD há 16 anos, depois continuada de forma muito pior pelo BASTA! (de José Luis Santos), durante quatro anos, e mantém-se com a actual câmara do PAICV. Esta é para nós uma grande fonte de desilusão, porque pensávamos, finalmente, que iriamos ter uma política completamente diferente.

O estado da praça principal, que foi demolida há três anos, e toda a orla marítima de Sal-Rei, cidade turística, durante todos estes anos não viu nem um único centavo de investimento. É uma situação que, infelizmente, vai continuar porque temos dois grandes problemas..

- …que são?…

- Primeiro chama-se Sociedade de Desenvolvimento Turístico Integrado da Boa Vista e Maio (SDTIBM) que está a 17 anos a brincar com todas as câmaras municipais, sejam do MpD sejam do PAICV. Depois há a AEB (Água e Energia da Boa Vista), que cobra 11% a mais pela energia elétrica, razão pela qual esta é a ilha considerada a mais custosa para se viver.

Eu estou em Cabo Verde há 26 anos, e nessa altura havia uma câmara do PAICV e Governo do MpD. Depois um Governo do PAICV e uma câmara do MpD. Vimos também um governo do MpD e uma câmara do grupo independente BASTA!, que era também MpD, e agora temos um governo MpD e uma câmara PAICV. Em todos os governos vi que aquilo que era competência do governo sempre foram cumpridas. Não é verdade que a ilha está a dar mais do que está a receber.

- A contribuição do turismo na Boa Vista não é mais elevada, proporcionalmente, que a das outras ilhas?

- Em termos de contribuição sim, contribui, mas não é verdade que recebeu menos. Vamos calcular: temos dois cais, um feito pelo MpD em 1997, e outro construido pelo governo do PAICV em 2011; há o aeroporto internacional feito em 2008; estradas; alfândegas; centro de saúde; cartório; estrada alcatroada para Bofareira; estrada alcatroada para Estância de Baixo e Povoação Velha…

Se formos ver, há um conjunto de investimentos, dinheiro investido a nível de infra-estruturas, mas o dinheiro que a ilha gera fica aquém. Porque estamos numa ilha onde a maioria não paga imposto – vais a qualquer lugar e verás que ninguém passa fatura ou recibo -, de modo que continuar a dizer isso de dar mais e receber menos não ajuda, passa-se todo o tempo a dizer que aqui não foi feito nada e debitar a culpa nos outros. Nós sabemos onde está a culpa.

- Onde está e de quem é a culpa?

- A culpa… é que em 2006 foi criada a SDTIBM, cuja ideia era empurrar o desenvolvimento da ilha, só que infelizmente foi o contrário. Esta sociedade, desde a sua criação, custa 150 milhões de escudos por ano em despesa fixa, mais o prédio que construíram e que custou mais de 180 mil contos. Entretanto, desde que foi criada, a SDTIBM não conseguiu trazer um só investidor novo. Venho o denunciando há anos e ninguém consegue dizer ou mostrar o contrário.

"Vamos perguntar ao presidente da AM quantos familiares e amigos seus trabalham na SDTIBM. Ele não quer mexer na SDTIBM porque mexe na sua família. É este o problema da Boa Vista, aqui estão todos interligados. Não estamos a enfrentar os problemas reais e a ilha continua a afundar, com os ricos mais ricos e a maioria pobre cada vez mais pobre"

- O presidente da Assembleia Municipal disse na sessão solene do dia do município, que isso se deve a lobbies regionais que impedem quaisquer investimentos, sejam privados, sejam públicos na Boa Vista.

- Vamos perguntar ao presidente da AM quantos familiares e amigos seus trabalham na SDTIBM. Ele não quer mexer na SDTIBM porque mexe na sua família. É este o problema da Boa Vista, aqui estão todos interligados. Não estamos a enfrentar os problemas reais e a ilha continua a afundar, com os ricos mais ricos e a maioria pobre cada vez mais pobre. Portanto, nós sabemos onde estão os problemas. Porquê a energia electrica custa 11% a mais do nas restantes ilhas! Temos dois conselhos de admnistração que controla a AEB: a SDTIM controla a AEB, mas a AEB tem o seu próprio conselho de administração, porque a empresa foi privatizada desde 2008.  Depois de algum tempo que o investidor estrangeiro ganhou dinheiro passou  a sua participação ao Governo, por meio de um contrato do qual não se sabe nada, quanto custou.

A diferença é que o resto de Cabo Verde tem uma única empresa, a Electra, e na Boa Vista temos a AEB, que custa uma fortuna e é preciso pagar as contas. Repito, sabemos onde atacar, mas estamos todos com interesses familiares ali. Também os bancos.

- Como assim os bancos?

- Os bancos comerciais daqui. Se o presidente da CM quiser resolver esse problema cria um conflito com os bancos. Porque a SDTIBM vai tomar dinheiro emprestado aos bancos, a AEB faz a mesma coisa, portanto, se cortamos essa relação os bancos aqui não saberão o que fazer nem a quem emprestar dinheiro. Trabalhei em sete bancos comerciais norte-americanos, ingleses e franceses, sei como isso funciona. O presidente está numa situação em que não sabe como movimentar-se, ainda por cima numa ilha onde estão interligadoas as famílias, os bancos, os clientes dos bancos… governar não é fácil.

- Vai-se criando uma pequena oligarquia, empresários ligados ao sistema político financeiro?

- Exacto. Penso que Boa Vista, desse ponto de vista, é a pior ilha para governar. É uma ilha de pouca gente, onde 70% da população vive no Bairro Boa Esperança, que é uma cidade à parte, um país à parte, onde ninguém paga nada, ninguém precisa pedir autorização a ninguém. Politicamente ninguém quer fazer nada, nem mesmo para o caso da praça Santa Isabel.

As casas antigas à volta da praça estão a cair aos pedaços, mas ninguém faz nada. E aqui é fácil tomar uma decisão porque há um código de postura municipal que tem as directrizes como agir. Mas o presidente da CM não quer mexer e a cidade vai caindo aos pedaços.

O dr. Walter Évora disse que queria ver se fosse na Praia se se deixaria a praça assim arrebentada por anos e anos. Não isso não aconteceria na Praia nem em nenhum outro lugar em Cabo Verde. Porque não há nenhuma câmara que vai demolir uma praça histórica, sobretudo porque está protegida por lei, como a de Sal-Rei. Pergunto em qual ilha isso seria possível, que uma câmara iria demolir seu coreto municipal. Em São Nicolau o coreto foi restaurado, não demolido. Isso que aconteceu na Boa Vista é impossível de suceder nas outras ilhas.

Essa praça foi demolida pela gestão anterior, que dois meses depois perdeu as eleições. Esta actual equipa está há mais de 30 meses a gerir esta situação. E está nesta situação por causa dos lobbies – aqui concordo com Walter Évora, os lobbies existem sim, ele sabe quem são e ele tem grande responsabilidade nisso.

 

"Essa praça foi demolida pela gestão anterior, que dois meses depois perdeu as eleições. Esta actual equipa está há mais de 30 meses a gerir esta situação. E está nesta situação por causa dos lobbies – aqui concordo com Walter Évora, os lobbies existem sim, ele sabe quem são e ele tem grande responsabilidade nisso"

- Me explica isso melhor.

- A situação é clara e gravíssima. A praça foi demolida pela empresa Sogei, que ganhou o concurso. Quando Cláudio Mendonça ganhou a eleição a Sogei paralisou a obra, sem nenhum motivo aparente. Mas nós sabemos qual é.

É que um projecto tão complicado não interessava. A ideia era simples, demolir, ganhar a eleição, dizer à população que o projecto era impossível realizar e fazer ali uma coisa mais simples, assim um pequeno centro comercial. Perdendo a eleição, esta jogada não foi possível fazer. E Cláudio encontrou essa situação, uma obra paralisada que não pediu para ser demolida, nem para ser suspensa. Falámos com o presidente nessa altura e mostrámos-lhe qual era o plano e que era impossível concretizar, mas ele não acreditou. Preferiu então entrar em acordo com a Sogei em Janeiro de 2021 e dar continuidade à obra. Mas a Sogei sabendo que foram oferecer 50% do orçamento inicial, que era 300 mil contos, e que já não era possivel denunciar o contrato, retomaram as obras, tirando terra dali colocando ali, cavando buracos…

Eu, na qualidade de presidente da comissão de fiscalização da AM da Boa Vista, reuni com o pessoal da empresa construtora mais o presidente e após quatro horas de reunião ficou claro que era impossível continuar a obra. E depois, Cláudio Mendonça, com muita coragem, tomou a decisão de interromper o contrato com a Sogei.  

Meses depois escrevi-lhe um e-mail a sugerir-lhe qual era a melhor via para sair dessa situação. Primeiro era a Sogei demolir algumas paredes feitas em argamassa, fazer um único calcetamento, pedir aos hotéis, restaurantes para financiarem pequenas coisas à volta da praça como postes de iluminação etc., e em oito meses, com 40 mil contos era possível ter uma praça. E depois era recuperar o património antigo, porque em toda a parte do mundo a praça não tem nada, o que está à sua volta sim. Esta era a proposta.

O que aconteceu, foi que Cláudio Mendonça e Walter Évora foram fazer uma viagem às Canárias e encontraram-se com o dono da empresa Bucan, que era proprietária da AEB, e foram a Tenerife também, e vieram convencidos de que era possível retomar as obras da praça do largo Santa Isabel com a Bucan.

A Bucan participou do concurso onde tinha pedido 300 mil contos, mas não conseguiu sequer apresentar a documentação exigida, o certificado de operador, por isso foi excluída do concurso. Então passaram a construção para o segundo classificado, Figueiredo e Soares, que passou a sub-empreitada à Bucan, que assumiu essa responsabilidade, moldada desde as Canárias, mesmo sendo ilegal já que excluída do concurso.

A Bucan iniciou os trabalhos mas quando perceberam que era mais complicado do que estariam a pensar abandonou a obra. Prometera concluir a parte em frente à Igreja para Julho do ano passado, depois prometeu obra acabada em Setembro de 2022 e depois em Março deste ano, veja…

Pelo nosso cálculo temos 25% da obra feita, faltam 75% e mais de 250 mil contos para a parte mais complicada que falta fazer. Só o basalto que resolveram colocar ali (25 mil m2) até agora não chegámos nem a 5 mil m2. Faltam 20 mil pedras por cortar e a máquina está estragada.

E depois, a qualidade da obra é lastimável. No dia que terminar – que deve ser nunca – será necessária manutenção continua e será uma infra-estrutura muito perigosa para as pessoas, porque todas essas pedras basálticas são cortantes, pessoas vão cair por causa de um desnível contínuo no pavimento… A escada que dá acesso à CM é uma coisa vergonhosa, e não estava no projecto.

 

- É por causa disso que pensa pedir demissão do cargo de presidente da comissão de fiscalização da AM da Boa Vista?

- Eu vou pedir demissão porque o acordo que  chegámos, com o presidente da CM, Cláudio Mendonça, e com o presidente da AM, Walter Évora, era para ser nomeado presidente desta comissão para investigar o que se passou na autarquia e tentar recuperar todo o dinheiro tirado ou esbanjado pela câmara anterior, mas não está a ser assim.

Aqui há várias situações de especulação imobiliária, basta ver que 90% dos terrenos vendidos estão lá abandonados, seja terreno residencial, seja para investimento turístico. Estão abandonados porque ninguém paga imposto patrimonial. A CM do MpD inventou uma lei em que um terreno que não for declarado acima de 500 contos não paga o IUP. E esta câmara não faz melhor, pensa que é melhor deixar as coisas como estão.

E eu vou pedir demissão porque esta comissão era composta por três eleitos, um do PAICV, um do MpD e um do PP. Começamos a trabalhar e a trabalhar bem, mas muita gente começou a ficar preocupada, bancos, SDTIBM, e criaram uma situação de embaraço com o presidente da CM e o presidente da AM. E numa sessão da assembleia municipal o MpD propôs o aumento do número de membros da comissão de fiscalização para cinco e o PAICV votou a favor. Com cinco elementos – dois do PAICV, dois do MpD e apenas eu do PP – não consigo investigar.

- Acha que querem bloquear os trabalhos desta Comissão?

- Obviamente que sim. Nenhum dos documentos que solicitamos à Câmara nos forneceram. Repara, 35% da SDTIBM pertence ao município da Boa Vista, ou seja, é da Assembleia Municipal e não da Câmara Municipal. Colocámos lá uma pessoa a representar o município nesses 35%, mas essas pessoas não estão a passar nenhum tipo de informação. De modo que não há como eu continuar.

 

- Do ponto de vista político vai manter colaboração com a CM, que contou e conta com os votos do PP para fazer aprovar seus instrumentos de gestão como o Orçamento e o Plano de Actividades, ou doravante vai se opor abertamente aos projectos da CM?

- Apresentamos muitas deliberações e pedidos para continuar as investigações de forma diferente. Nenhum dos acordos que firmamos junto do presidente da CM e do presidente da AM foram cumpridos. Assim, na última sessão da assembleia, em Dezembro do ano passado, para aprovar o plano de actividades e o Orçamento votámos contra. Porque eles falharam os compromissos. Da parte do PP, não podemos fazer nada. A situação é catastrófica.

 

- Voltando aos terrenos. A gestão fundiária tem sido satisfatória, no geral?

- Olha, os terrenos vendidos estão abandonados, não pagam nada, por  causa desse tal regulamento que diz que só paga quem tiver terrenos com valor acima de 500 contos. O presidente da CM não faz nada, continua a dizer que sempre foi assim, pois pensa que é melhor assim, que gente pobre não deve pagar imposto.

Mas a verdade é que a maioria dos terrenos não está na posse dos mais pobres. Os pobres ou já construiram a sua casa ou venderam o terreno. A maioria dos terrenos estão nas mãos de especuladores imobiliários. A CM fez alguns calcetamentos em zonas onde os terrenos estão abandonados, portanto vai investir e depois não tem retorno . Nesse caso fica sem dinheiro para fazer obras noutras zonas ou localidades, por isso até agora o que foi feito foi com recurso a crédito bancário. Aprovámos um crédito de 350 mil contos em Dezembro de 2021, e a venda do cineteatro por 80 mil contos. Agora não há mais empréstimos a contrair, nem cineteatro para vender.

 

- Apresentou no mês de Junho uma queixa na procuradoria a exigir indemnização pelos prejuízos causados aos comerciantes e moradores por causa dos trabalhos na praça Santa Isabel que impediu os negócios nessa zona.

- Sim, a praça foi demolida em Agosto de 2020. A promessa foi que em 10 meses ficaria pronta. Portanto, as pessoas envolvidas com a sua actividade económica nesta zona ficam à espera. Passaram-se três anos esses comerciantes e moradores já não acreditam em nada, porque o  pouco que se fez se fez muito mal e sem sentido. Portanto, todas essas pessoas, um total de 27, foram entregar ao procurador da República, no dia 22 de Junho, um histórico como decorreu o processo, e um pedido de reembolso a nível económico pela perda da qualidade de vida, do comércio, de valor imobiliário.

 

- E a SDTIBM, que fazer, já que, segundo o presidente da CM, não tem dinheiro nem para pagar salários?

- Há mais de cinco anos que a SDTIBM não vende terrenos, mas a culpa não é da Covid-19 (risos) como disse o presidente. A culpa é que ninguém mais acredita nesta ilha. Mesmo que começasse a vender terrenos amanhã, há uma dívida com os bancos que o valor arrecadado não cobrirá 5%. A dívida com os bancos aumenta todos os meses. A SDTIBM não conseguiu trazer para a Boa Vista um único investidor, os que estão aqui chegaram antes da SDTIBM. Chegou-se a falar na sua extinção, mas ninguém quer isso, porque não há interesse. Aqui tudo é interligado por interesses familiares, lobbies dos bancos, enfim...

 

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine