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“Penso que sou uma guerreira, uma mulher que viveu o seu tempo”
Entrevista

“Penso que sou uma guerreira, uma mulher que viveu o seu tempo”

Assim fala Josefina Chantre. Nome de “guerra”, Zezinha Chantre. Heroína Nacional. Combatente da Liberdade da Pátria. Presidente da RAMAO-CV. Activista Social. Militante de Causas. Guerreira por Cabo Verde. Neste exclusivo ao Santiago Magazine, a propósito do 20 de Janeiro, ela observa, num misto de acusação e desabafo, que “lá fora, estuda-se mais Cabral do que cá dentro”.

Santiago Magazine – Zezinha Chantre é uma das Combatentes da Liberdade da Pátria. Comemora-se a 20 de Janeiro o “Dia dos Heróis Nacionais”. Que significado esta data tem para si?

Zezinha Chantre – É um dia de muita reflexão e de muitas lembranças. Lembrar primeiro o assassinato do camarada Amílcar Cabral. Foi sentido como qualquer outro camarada, e como Chefe de Guerra e Secretário-Geral do PAIGC, na altura, foi um grande desaire. Tínhamos a esperança até o último momento que ele tinha sido atingido, foram-nos enganando que ele foi atingido mas estava bem, que os soviéticos vão cuidar dele. Na Guiné Conacri havia uma cultura de passar um tipo de música na rádio sempre que ia-se anunciar uma notícia trágica ou triste. Até que o Presidente da Guiné Conacri anunciou essa tragédia que abalou o PAIGC.

Cabral extravasou as fronteiras de Guiné e Cabo Verde, foi um grande estratega da luta política e foi um grande chefe de guerra como ele gostava de ser chamado. Portanto, passados 45 anos, relembrar esse dia 20 de Janeiro é relembrar esse conjunto de emoções que se apoderou nós que estávamos em Conacri e, principalmente, para aqueles que estavam em diferentes frentes de luta. Cabral teve o mérito de ter feito um grande trabalho que não começou com “os tiros”, mas sim com o diálogo com as autoridades portuguesas e não só.

Um dos grandes combates que fez por Cabo Verde foi ter participado, na Guiné Bissau, na luta pela independência nacional. O que a motivou a suspender projectos pessoais e familiares para integrar a luta?

Estive em Angola a trabalhar durante quase 4 anos, e durante a minha vivência em Cabo Verde nunca me tinha percebido que haviam essas diferenças sociais. Trabalhando em Angola como assistente social, trabalhei sempre nos musseques à volta de Luanda e aí eu tive um contacto directo com as desigualdades sociais. Isso foi-me motivando e consciencializando que havia uma grande injustiça social. E não quis ficar mais naquele ambiente, e como havia a possibilidade de se gozar as ditas “graciosas” (depois de se estar em África durante 3 anos tinha-se o direito de tomar licença), regressei a Portugal. E fui matricular-me na Escola Superior de Serviço Social, e do convívio com esses colegas, fui-me percebendo dessa realidade desigual nas colónias e percebi que alguma coisa deveria ser feita. Nesse tempo, fui mobilizada por um camarada para a luta e dei o “salto” e fui dar a minha modesta contribuição para a luta pela independência.

Quando foi para a luta, o que é que fazia? Foi para as frentes de guerra?

Não fui para as frentes de guerra, fiquei no staff de Cabral. Quando cheguei a Conacri, Cabral que era uma pessoa extremamente terra-a-terra e enquanto um verdadeiro líder, punha-te à vontade, perguntou-me o que queria fazer, e disse-lhe qualquer tarefa. Perguntou: “queres dar aula”, disse-lhe “tudo, menos dar aulas”. Nunca gostei de dar aulas. Fiquei no Secretariado com a responsabilidade de pôr em dia o “Jornal Libertação”.

“Cabral defendia a preparação militar das mulheres, mas também defendia que tendo em conta a nossa condição específica – de mãe – se fosse preciso avançar para as frentes as mulheres iam. Ele tinha um carinho muito especial e um respeito pelas mulheres, ele entendia e defendia o que hoje chamamos de igualdade de género. Ele já defendia a igualdade de oportunidades entre os homens e as mulheres. Havia já nessa altura uma preocupação de Cabral com a mudança de mentalidade em relação à classe feminina.”

Numa das suas várias entrevistas, afirmou que Amílcar Cabral lhe havia dito que “a emancipação da mulher tem de ser obra e fruto das próprias mulheres”. Essa visão era compartilhada pelos outros homens combatentes pela causa da independência?

Cabral, como líder, estava muito mais avançado do que os outros. Ele conseguia transmitir os seus ideais aos outros. Mas, a nossa luta não foi fácil. Os outros homens foram à reboque de Cabral. Não foi fácil. Ainda quando regressamos a Cabo verde sofri na pele, tivemos problemas graves com os nossos dirigentes do partido por causa disso. Cabo Verde já avançou bastante, de 75 para cá muita coisa mudou, mas ainda falta pôr o dedo na educação, desde o jardim infantil para que possamos reverter essa situação, porque a mudança de mentalidade não é fácil de se conseguir. E através também da história. É preciso que os Combatentes da Liberdade da Pátria escrevam as suas memórias para que as gerações vindouras tenham referências. Nós inspiramos na luta de libertação de vários países africanos, da mesma forma os jovens devem ter referências para se inspirarem e receber o facho para darem continuidade, porque nós iniciamos, ou se quiser, concluímos. Não podemos ter a pretensão de sermos os donos da libertação, porque o povo de Cabo Verde tem uma história. O povo cabo-verdiano vem sempre reivindicando, desde os primórdios, e talvez nós tivemos o privilégio de ter culminado todas essas reivindicações através dessa luta armada de libertação que durou 11 anos e que culminou com a independência. Mas como dizia Cabral, ter a independência não é ter somente símbolos e bandeiras, e alertava-nos que a independência política nem sempre era a mais difícil, mas sim a independência económica.

“Encontramos um país sem nada. Não havia manuais de como governar um pais sem recursos. E nem éramos gestores. Éramos homens e mulheres que aderiram ao projecto de luta de Cabral para libertar a Guiné e Cabo Verde. E a construção do país como é que é. Não foi fácil. Fomos tateando, fomos construindo a par e passo. É evidente que houve erros no percurso, porque só não erra quem não trabalha.”

Com a independência, a Zezinha regressou a Cabo Verde. Aqui o contexto já não era o de guerra mas sim o desafio de trabalhar num país recém-independente, pobre e sem recursos. Que desafios encontrou e teve de superar enquanto mulher e profissional?

Tive de superar todos os tipos de desafios. Eu voltei em 1980. Viemos em 1975 para apoiar nas festas da independência e não foi fácil. Durante o período do partido único que durou 15 anos, houve coisas muito boas, porque nós pusemos de pé os alicerces para hoje termos um país de rendimento médio. Há aspectos positivos, há aspectos negativos mas não podemos perder de vista que foi uma missão louvável. Fomos fazendo, fomos desbravando, fomos construindo, e hoje eu acho que valeu a pena, ganhamos bastante. Os desafios continuam, principalmente em relação à mulher que foi duplamente explorada no passado e ainda precisa de ter uma a discriminação positiva para combatermos a feminização da pobreza, a VBG, para termos um pais mais inclusivo e mais igualitário.

Defendeu, desde muito jovem, as questões de igualdade e emancipação das mulheres. Como tem sido esta experiência numa sociedade “machista” como a nossa?

A experiência tem sido muito gratificante. No início, quando chegamos e íamos reunir com as mulheres, elas nem sequer abriam a boca. Passados alguns anos, vimos uma diferença grande, nas reuniões as mulheres punham-se de pé e defendiam os seus interesses. Quando voltamos da luta, fizemos um diagnóstico da situação da mulher nos vários sectores e insistimos com o partido para que nos deixasse pôr de pé a primeira organização de mulheres de Cabo Verde. Foi uma grande luta. São desafios de uma luta permanente e constante. Não atingimos o patamar de igualdade que nós desejaríamos mas nós conquistamos muitas coisas. Colocamos de pé o programa de proteção materno-infantil e planeamento familiar conhecida como PMI-PF, implementamos toda a rede de jardins infantins em Cabo Verde. Infelizmente, não tivemos representação no governo. Nenhuma mulher ocupou cargos no executivo. Apenas fazíamos recomendações de políticas e mandavamos "recados" ao governo. Actualmente, persistem ainda muitos desafios, principalmente em relação às mulheres do meio rural. Daí a minha intervenção, neste momento, e penso que elas precisam de uma discriminação positiva para alavancá-las e para terem uma intervenção sobretudo económico no desenvolvimento do país.

Neste momento, desempenha as funções de presidente da RAMOA-CV[1]. Tem dedicado, trabalhando com e para mulheres em Cabo Verde? Qual é o balanço que faz dessa trajetória?

É preciso trabalhar sobretudo com as mulheres rurais. Há uma percentagem muito elevada de mulheres chefes de família, e constatamos que nas zonas costeiras de Cabo Verde, as mulheres resolveram passar para a apanha da areia para sobreviverem e colocar os filhos na escola. Nós desenvolvemos um projecto para a sensibilização dessas mulheres por razões ambientais e de saúde. É preciso projectos sustentáveis para dar resposta às actividades geradoras de rendimento.

“Eu vivi entre dois séculos, eu conheci líderes desses dois séculos, tive o privilégio de participar numa luta armada de libertação nacional, de trabalhar ao lado de Cabral, de conhecer o mundo, de ter vivenciado o 5 de Julho de 1975. Penso que é um privilégio poder socializar tudo aquilo que aprendi. Penso que sou uma guerreira, uma mulher que viveu o seu tempo, com muita dignidade, com muita garra e muita fé e estou nesta luta do dia-a-dia.”

Sabemos que tem 73 anos e continua a lutar por Cabo Verde. O que move a Zezinha Chantre a continuar este combate?

É o meu amor por esses dez grãozinhos de terra. É ser interveniente, é ser cidadã de pleno direito, é ter um olhar de querer ajudar, de querer partilhar, de querer socializar tudo aquilo que tive o privilégio de acumular ao longo dessas 7 décadas de existência.

“Ouvi nas reportagens na comunicação social, estudantes que disseram nunca terem ouvido falar de Cabral e dos companheiros de Cabral. Há um défice de conhecimento sobre Cabral e seus companheiros, porque Cabral não trabalhou sozinho. Mas os culpados somos nós. Com a independência, havia tudo por fazer e não houve tempo para escrever a nossa história. Alguém há de escrever. Muitos já morreram sem escrever as suas memórias. Priorizamos a construção do país. A história deve ser escrita e os jovens devem ter referências.”

Quase 43 anos após a independência e 45 sobre a morte de Cabral, acha que o legado de Amílcar Cabral continua actual? Cabo Verde reconhece devidamente o legado de Cabral e o vosso trabalho enquanto Combatentes da Liberdade da Pátria por tudo o que fizeram pela nação?

É um pouco subjectivo. Lá fora, estuda-se mais Cabral do que cá dentro. Não podemos ficar aqui só a refletir Cabral nessas datas - 20 de Janeiro e 5 de Julho. E acho, à semelhança dos outros países, que os combatentes devem ter um pouco mais de destaque. Na Guiné-Bissau  tenho um tratamento como combatente que se surpreende.

[1] Renascença Africana – Associação das Mulheres da África Ocidental.

Fotos: crédito Revista Nôs Guenti

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