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Mundinho Querido. “Quero fazer sempre algo que me dá prazer”
Entrevista

Mundinho Querido. “Quero fazer sempre algo que me dá prazer”

Mundinho Querido ou as aventuras da vida de um duplo de cinema. “Missão Impossível”, protagonizado pelo mundialmente famoso Tom Cruise, foi o último filme ao serviço do qual Mundinho Querido esteve ao serviço. Agora, à beira dos 40 anos, e já com família constituída, o duplo cabo-verdiano busca direccionar a sua carreira para outras áreas onde, acredita, também não faltarão emoções fortes. O futuro dirá. Neste momento, descansa na sua cidade natal, Praia, onde deu-nos esta entrevista em exclusivo em que nos conta as muitas aventuras da vida de duplo de cinema.

 

Santiago Magazine - Mundinho, depois de alguns anos de carreira, como avalia o momento que vive agora profissionalmente?

Mundinho Querido - A minha carreira neste momento está no fim de uma fase e a começar uma outra fase. Estou a pôr fim ao trabalho como stunt/duplo, porque a idade está a avançar, vou chegar aos 40, em breve, e estou a iniciar uma nova fase, a de coordenador de stunt, que me pemitirá fazer menos trabalhos físicos, o que implica muitas vezes lesões, dores musculares, e dedicar-me mais à preparação dos duplos. Isso significa identificar os duplos que servem para cada um dos filmes e/ou eventos para os quais somos contratados, ir para o terreno e verificar se o duplo escolhido serve mesmo para aquele trabalho, ir ao encontro dos produtores, discutir os orçamentos, e também dar assistência aos realizadores que, nos momentos de filmagem das cenas de acção necessitam sempre de alguém que é desse meio para dizer-lhe como filmar melhor uma cena de soco ou de salto, por exemplo, de modo a parecer mais realista.

E esse mercado de duplo é, digamos, fértil em ofertas de trabalho? Ou seja, há muita solicitação de duplos?

Em França, onde moro, faz-se muitos filmes, mas poucos de acção. Quem faz este tipo de filme é sobretudo o Luc Besson, tais como Transporter, Lucy,Valerian,Taken, Taxi, que costuma nos chamar. Já as séries podem ter um saltinho aqui, um mortal ali, um carro que nos atropela, nada mais. O trabalho de duplo é mais requisitado na India, nos Estados Unidos da América e na Inglaterra. Da India recebemos sempre muitos convites de trabalho, dos Estados Unidos e de Inglaterra só de vez em quando recebemos propostas de trabalho, pois têm viveiro próprio, ao qual recorrem primeiro e só em caso de falta vão ao mercado estrangeiro. Ou seja, há trabalho, mas, como em qualquer outra área de trabalho, cada país busca primeiro contratar quem é de lá, e os esses profissionais também fazem lobby para não deixar entrar ninguém, porque sabem que se vem alguém de fora pode trazer um novo estilo. É a concorrência habitual em qualquer sector. Mas não tenho motivos de queixa. Recentemente, depois de iniciar o trabalho de coordenador de duplos, fomos contratados para ir trabalhar no Vietnam, entre outros países.

Criou uma empresa que fornece duplos?

Sim, eu e meus colegas temos uma equipa de duplos, com especialistas em cabos, airbag, mecânica, etc. E em função do que nos pedem, fornecemos o serviço.

Como se chama a vossa equipa/ empresa?

World Stunt

Está a passar de uma carreira activa como duplo para coordenador de duplos, em parte por causa da idade que está a avançar, está perto de chegar aos 40 anos. Isso quer dizer que a carreira de um duplo é curta?

A carreira de duplo pode ser muito curta, mas, nalguns casos, dura muitos anos. Conheço duplos que têm 60 anos. É claro que não pode fazer todos os trabalhos de duplo, mas há trabalho para duplos dessa idade, porque nos filmes há também personagens nessa faixa etária e quem, se não uma pessoa dessa idade, pode ser o seu duplo?

Então, se há duplos de 60 anos, por que motivo Mundinho, à beira dos 40, já decidiu retirar-se?

Porque não quero deixar que o meu corpo se “estrague” todo primeiro para depois decidir retirar. Aí pode ser tarde demais. Sei que os futebolistas retiram-se muitas vezes aos 32 anos, pois já estão “velhos”. Eu também sinto que já não sou igual ao Mundinho de 25 anos. Sinto dores articulares, quando me lesiono demoro mais tempo a recuperar … Por isso, estou a agarrar outras oportunidades dentro dessa área para proteger a mim mesmo e à minha família, pois agora tenho uma esposa e um filho. Além disso, ganho mais e tenho mais conforto. O único senão é que o trabalho de coordenador de duplos traz muita responsabilidade. Tenho de cuidar dos outros duplos para evitar que sofram lesões, tenho que escolher o duplo certo para cada filme, definir os ângulos certos para a filmagem das cenas de acção.

Enquanto duplo, já sofreu alguma lesão ou acidente grave, que quase pôs em causa a sua carreira?

Sim, em 2011/2012 sofri uma lesão num ligamento cruzado. Estava em Hong Kong, trabalhando para a mini (marca de carros) num show, ou seja, tudo seria live (ao vivo), e o palco não foi colocado à mesma altura em que estava durante os ensaios. Eu seria o primeiro a entrar em palco, fazendo um mortal por cima de um carro. Fiz o mortal e, porque o piso estava mais baixo do que estava durante os ensaios, só consegui colocar um pé no chão, e lesionei-me. Meu joelho aumentou de volume, o osso ficou de lado, foi terrível. A empresa que nos contratou queria que eu fosse operado em Hong Kong, mas preferi operar em Paris. Foi uma operação difícil, fui psicologicamente afectado, fiquei cheio de dúvidas, pois já tinha 30 e tal anos, querendo desistir da carreira, mas graças ao amigos e à minha família, que sempre me apoiaram, lutei para voltar a trabalhar. Demorei cerca de seis meses para conseguir andar correctamente outra vez, voltei ao trabalho, mas já não era a mesma coisa. Porque, apesar de ter sido operado com sucesso, o meu joelho nunca mais foi o mesmo. É uma carreira de risco. Há quem me diz: Uhau, estás a trabalhar no cinema, deves estar rico. Mas não é bem assim. Quando fazes um filme, podes receber um dinheiro que parece muito, mas depois podes ficar sem trabalhar durante um ano. Em França, onde tens uma despesa de cerca de 4 mil euros por mês, filhos, não podes gastar tudo de uma vez só. E se não fores convidado a trabalhar num outro filme, como é que ficas?

Independentemente da compensação financeira, como avalias a carreira que conseguiste fazer até este momento? Alcançou o que sonhava alcançar? Está satisfeito?

Não posso sentir-me insatisfeito porque em nenhum dia da minha acordei e disse: quero ser duplo. As coisas foram acontecendo e acabei fazendo carreira nessa área. Comecei por fazer desporto e, graças ao desporto, surgiu a oportunidade de fazer de duplo.

Ou seja, é uma carreira que aconteceu por acaso?

Sim. Descobri aos poucos que tinha capacidade para fazer o trabalho de duplo e sempre que surgiram oportunidades, aproveitei-as. O último fim em que participei foi “Missão Impossível 6”, com Tom Cruise. Às vezes, pensava: Estou aqui ao lado de Tom Cruise, o homem que, quando mais jovem, aqui em Cabo Verde, via em “Top Gun”. Neste momento, estou ao seu lado. Não tenho o papel que ele tinha, mas estou satisfeito com o que consegui. Alguns podem dizer que não sou ambicioso o suficiente, mas sou feliz com o que tenho.

Nunca pensou trocar a carreira de duplo para actor e com papel de protagonista?

Uma vez ou outra isso passou-me pela cabeça, mas não mudar a minha forma de estar na vida. Não sou do tipo “quero mais, e mais”. Quero fazer sempre algo que me dá prazer, que sei fazer bem, que é ser duplo.

Mas há duplos que se tornaram protagonistas de filmes blockbusters. Isso é o sonho da maioria dos duplos, ou é caso raro?

É caso raro! Às vezes, é sorte, porque o teu rosto correspondeu a um certo papel, e o realizador, que andava à busca de alguém como tu, vendo-te no set de filmagem, diz: “Vem cá, consegues fazer isto?”. Fazes, dá certo e começa, assim, uma carreira de actor. Mas, como disse antes, é caso raro. A maioria dos duplos preferem manter-se onde estão para não perderem a sua identidade de especialistas em actividades que exigem força física e destreza. Na verdade, os duplos olham muitas vezes para os actores como flores muito sensíveis, e não querem ser vistos assim!

E por exigir mais força física e destreza e enfrentar perigos, às vezes de morte, como disse, a carreira de duplo é valorizada, quando comparada com a de actor?

Um actor é mais valorizado pelo público porque é o seu rosto que aparece no ecrã, e todo o mérito daquilo que fazemos vai para ele. O nosso problema, digamos, é que o nosso rosto nunca aparece. E depois, quase ninguém lê os nomes que aparecem no fim dos filmes! Não bastasse isso, acumulamos problemas físicos e lesões ao longo dos anos. Por isso digo: a carreira de stunt precisa ser mais valorizada. Felizmente, a federação de duplos de França tem agora um novo presidente, Laurebt Demiannof, que me chamou para trabalhar com ele, e tenho a esperança de que as coisas irão melhorar.

Os créditos podem ir para o actor, mas, pelo menos, o salário compensa?

Paga-se, muitas vezes, 680 euros brutos por dia. Há quem não goste de falar disso, mas não é nenhum segredo. Se fizeres uma coisa que é muito complicada, ou arriscada, como saltar de um prédio de 20 metros, ou fores incendiado ou atropelado, podes entretanto receber um extra, um prémio. Mas é preciso fazer uma boa gestão do que se ganha, porque nem sempre somos chamados para seis meses de filmagem, mas apenas para um dia ou dois dias de trabalho e pagam-te mil euros. Compensa o esforço e os riscos? Penso que não. Nos Estados Unidos e em Inglaterra os duplos têm uma vantagem em relação a nós que trabalhamos em França e outros países: eles ganham mais porque beneficiam dos royalties, ou seja, ganham uma percentagem dos lucros dos filmes em que participam. Há um duplo que foi contratado para levar uma bofetada num filme chamado Hang Over. Foi um dia de trabalho, pagaram-lhe cerca de 800 euros por aquela bofetada. Quando o filme entrou no mercado fez bastante sucesso e ganhou 96 mil euros de royalties. Em França não há nada disso.

Pensou alguma vez em mudar-se para os Estados Unidos para ter a oportunidade de também um dia beneficiar de royalties e de outras regalias?

Sim, isso já me passou pela cabeça, mas eles não são burros. É um mercado bastante concorrido e muito difícil de entrar. A permissão só é dada aos que não são norte-americanos depois de se cumprir uma série de provas e modalidades, quase profissionais, como mergulho, artes marciais com cinturão preto atribuído pela federação dos EUA, com um prazo bastante apertado para ser concluído: três anos. Tens que pagar para fazer essas provas, tens que encontrar um clube que te aceite, tens que viver lá nos EUA e ainda pagar cerca de 4 mil euros para obter autorização de trabalho, pagar advogado, etc, etc. Mas não há nenhum garantia de que vais ser aceite. Não é impossível, mas com certeza muito difícil.

Disse no início da nossa conversa que está a transitar da carreira de stunt para coordenador de stunt. Até concretizar essa mudança, plenamente, que trabalhos pensa fazer ainda como duplo?

Ainda não defini os próximos passos! Estou à espera de novas propostas. O último trabalho que fiz como duplo foi “Missão Impossível 6”. Entretanto, eu e a minha equipa participamos na produção do filme “Hai Phuong”, que teve como protagonista a actriz Veronica Ngo, que também participou no último “Guerra das Estrelas”, e já foi comprado pela Netflix. Convidaram-nos para ir Vietnam para organizar toda a parte de acção do filme, o que implicava criar a coreografia, a prévise (ou seja filmar como imaginamos que vai ser toda a acção) e ainda, nós próprios, sermos os realizadores da parte de acção do filme. Aceitamos, com um pouco de medo, confesso, pois era a primeira vez que assumíamos uma responsabilidade como essa, até de manipular as câmeras. E, devido a certas circunstâncias, acabei como assistente do “action director” do filme.

Gostarias de investir mais nesta carreira?

Sim, claro. É muito interessante, já aprendi muita coisa, mas preciso aprender mais, e permite entender certas coisas que antes, como duplo, ouvia os realizadores pedirem, mas não entendiam bem o motivo. Se surgir uma nova oportunidade de ser action director com certeza vou aproveitá-la.

A carreira de duplo, como disse, foi um acaso, não planeou nada. Por isso pergunto: como imagina a sua carreira daqui a 10 anos? Está definido que vais ser coordenador de duplos e/ou action director?

Eu não planeei as coisas que ao longo destes anos aconteceram na minha vida. Trabalhei numa fábrica de chocolate, num banco, num campo de férias para crianças, já trabalhei em tantas áreas. Queria ser professor de desporto, mas não fui. Entretanto, aconteceram outras coisas boas. Por exemplo, há tempos convidaram para fazer a preparação física de um actor para um filme que tinha luta e parkour. Tenho o meu diploma de preparador físico e aceitei o trabalho. Foi um acaso, não busquei isso. Assim, como já disse antes, se surgir uma oportunidade para ser action director, irei aproveitá-la ao máximo. A única coisa que quero é viver feliz, junto com a minha família, com muita vontade.

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SOBRE O AUTOR

Teresa Fortes