Arquitecto, músico, activista, ex-Conselheiro da República. Frederico Hopffer Almada, muito mais conhecido por Nhonho Hopffer desenha-nos a Praia que adoraria ver e descreve todos os seus pontos fortes e fracos. Ama esta cidade, a ponto de considerar a capital como uma das mais belas do mundo. Convite para uma conversa honesta e transparente, com afirmações incisivas de um arquitecto crítico, lúcido e sabedor do melhor que a Praia precisa para ser ainda mais atraente e apetitosa. Última entrevista exclusiva feita para a agenda Cultural da Praia - Cult, - na sua sua casa, em Terra Branca, publicada aqui, no Santiago Magazine, com devida autorização da JD Editorial em homenagem ao excelso Frederico (Nhonho) Hopffer Almada. RIP, grande cabo-verdiano!
Santiago Magazine – Com décadas de arquitetura, sentes, de certa forma, alguma responsabilidade na nova fisionomia que a cidade da Praia adquiriu ao longo dos anos?
Frederico (Nhonho) Hopffer Almada – Eu não assumo nenhuma responsabilidade sobre as asneiras que fizeram na Praia a nivel arquitectónico. Não aceito. Nesta matéria a responsabilidade maior é dos políticos, que fique claro. Particularmente as câmaras municipais que vivem em função dos terrenos que vendem.
As câmaras são capazes de acabar com praças, áreas verdes, só para lotear e vender aos seus amigos. Se há instituição onde se vê corrupção a nível dos terrenos são as Câmaras municipais. Se precisam de dinheiro não pensam duas vezes antes de arranjar um lote numa área verde ou praça para vender.
- Mas Praia é uma cidade em constante crescimento populacional, de modo que há necessidade de lotes para construções, ou prefere crescimento vertical em vez da sua expansão horizontal?
- Eu acho que existem terrenos à vontade em Santiago e mesmo na Praia para se fazer um crescimento horizontal. Sou daqueles que defende que não precisamos chegar ao céu, mas o céu é o limite. Temos que contar com isso e perceber que há necessidade de termos edifícios mais altos, até por uma questão de economia de escala. Não significa ter arranha-céus ou edifícios com muitos pisos, basta criar-se condições, exigir elevadores, enfim, não me podem limitar aonde quero chegar em altura.
Já agora, devo dizer que sou contra essa de chamar património àquelas casa de uma porta duas janelas. Sou totalmente contra. Que se tire fotografias e vá para o museu, e ser relembrado na nossa memória colectiva. Veja o Plateau, que está descaracterizado, tem-se tomado medidas a tempo, mas deve ser com regras. Não acho correcto uma casa de uma porta e duas janelas com cem ano tem de ser mantido lá.
- Mas a candidatura do Plateau como Património Histórico fica beliscada…
- Está bem, mas escolhe-se um quarteirão ou uma zona e define-se que é histórico e ali não se mexe. Pegar numa zona como Plateau, que para mim é o lugar que mais gosto em Cabo Verde, e mantê-lo descaracterizado assim não dá. Plateau é um caso único no mundo, porque é um palco que temos lá. Tal como o Rio de Janeiro parece ter sido feito à mão, o Plateau também parece ter sido moldado à mão. É uma sorte nossa termos o Plateau, um palco. Fosse bem organizado, Praia seria incomparável com qualquer outra cidade em Cabo Verde. Praia é de longe mais bonita que todos os outros centros urbanos, quer pelas colinas que tem, quer pelos seus planaltos, a baixa…
Veja com calma a orografia da Praia desde a Maria Pia, passando pela Prainha, Quebra-Canela, subir ao Plateau, descer a Fazenda, contemplar os planaltos e planícies… não há nenhum outro lugar em Cabo Verde como a Praia. Não entendo como é que santiaguenses não defendem a Praia com mais vigor. Praia é incomparável.
- A capital está crescer de forma descaracterizada ou é própria do rápido crescimento que tende a ser descontrolado?
- A Praia está a crescer descontroladamente. Praia parece um grande bairro degradado, porquanto, vendo-a a partir do Monte Babosa parece uma zona para onde atirado uma bomba. Se não vires o prédio da Caixa Económica, por exemplo, ou outro edifício sobressaia ficarás sem saber para que bairro estás a olhar. Tudo mal planeado. É tão mal planeado que as construções clandestinas, que para mim é o maior inimigo que tenho dentro da cabeça, está a alastrar-se cada vez mais.
Tudo mal planeado, faz-se casa depois é que se vai adaptar a zona com estradas e outras infra-estruturas básicas. Tanto assim é que hoje Eugénio Lima colou-se a Terra Branca só com as construções clandestinas.
Veja as quatro entradas para a cidade da Praia: o porto Praia, de Santa Catarina, de Cidade Velha e do aeroporto, tudo cheio de construções clandestinas, feias. É uma péssima visão que se tem logo à entrada da capital do país. Horrível, horrível. Não sei como é possível que se tenha permitido que as coisas caminhassem nessa direcção, mesmo com avisos feitos há que tempos. Eu próprio chamei atenção para essa coisa, por isso não assumo responsabilidades nessa matéria enquanto arquitecto.
Eu critico sempre os arquitectos da Câmara, e lhes pergunto se os vereadores mandam neles. Sim, porque o arquitecto está lá para dar pareceres técnicos, não é pago para dizer ao vereador ou ao presidente aquilo que querem ouvir, mas aquilo que é melhor para a cidade, agora, ele depois irá tomar a sua decisão política como bem entender.
- Parece que se está a tirar as áreas verdes da cidade, separando esses espaços das zonas habitacionais, que não só torna cidade feia como nada sustentável do ponto de vista ambiental.
- Devia haver sem dúvida mais zonas verdes na Praia. Veja, o Taiti podia ser tomado perfeitamente como o pulmão da cidade. O Estado devia ficar com essa zona e não permitir construções particulares, mantendo o local como área verde, com piscinas, gelataria, pracinhas para passeio de pais, avós e filhos aos fins-de-semana.
Infelizmente, aquele projecto do brasileiro Oscar Niemeyer, o Memorial Amilcar Cabral, não foi bem sucedido. Aliás, o próprio Niemeyer me disse, numa das duas vezes que com ele falei, que ficou magoado porque o seu projecto não foi adiante. E olha, estamos a falar de um dos maiores arquitectos de todos os tempos e ter obra sua no Taiti era referência mundial.
É como essa obra do português Siza Vieira, a sede do BCV, na Achada Santo António, que é um projecto que qualquer um podia fazer. Eu podia fazer. Foi dado ao siza Vieira. Dou um exemplo, a sede da CECV, projecto do meu Gabinete, recebi 12 mil contos, mediante concurso público. Entretanto, o Siza Vieira recebeu 120 mil contos, sem concurso, para desenhar esse prédio. Imagina se esse projecto do BCV pode ser dez vezes superior ao da CECV, dá para entender?
É claro que muitas pessoas gostariam de ter uma obra do Siza Vieira em cabo Verde, inclusive há seguidores turistas que podem vir só para ver essa construção por causa do nome Siza Vieira.
- A nível de Cultura a Praia está melhor ou a qualidade e oferta vêm decaindo?
- A nível cultural a cidade está bem, embora a comunicação social não ajude. Cabo Verde, em si, tem das melhores músicas do mundo e para mim a música o produto cabo-verdiano que melhor se pode vender mundo afora. Digo com convicção que Cabo Verde deve pensar no turismo e cultura, sobretudo vertente musical – livros podem ser traduzidos, a música vai como foi gravada -, como produto de venda.
Entretanto, ouvimos nas rádios mais músicas que nada têm a ver connosco. Devia-se instituir, como Angola faz, regras em como 80 por cento das músicas que passam nas rádios daquele país terão de ser angolanas. É um critério que se pode adoptar perfeitamente. A CVMA por exemplo é totalmente desvirtuada da nossa realidade.
- Isso talvez se deva à caracteristica universal da própria música, ainda por cima num mundo mais globalizado.
- Sem dúvida não sou contra haver influências de músicas estrangeiras, como, aliás, fizeram os ‘Voz de Cabo Verde’, que antigamente tocavam mais kumbia, etc. Sim, pode haver essas influências mas sem deixar cair a essência da morna ou do funaná.
Por exemplo, o funaná, que o nosso grande Katchás deu outra roupagem, foi trazido à Praia e levado ao Plateau. Há um dia que o funaná subiu ao Plateau. O meu irmão enviou-me uma cassete desse dia quando estudava na Roménia.
- Falta ao praiense certa cultura identidária, de valorização do tradicional…
- Há muito preconceito. Temos um complexo de inferioridade em relação à Europa, muitos preferindo ser europeus de segunda do que cabo-verdiano de primeira.
- É por isso que ainda não se oficializou o crioulo?
- Pois, claro, ia lá chegar. É vergonhoso viver num país que tem apenas uma língua, uma língua, repito, e nove variantes, mas uma língua, entretanto há 50 anos os políticos não conseguem oficializar o crioulo o lobby do Norte não deixa passar. Misturam tudo, propositadamente, com o ALUPEC (que não é lingua, mas sim alfabeto para a escrita do crioulo nas suas diversas variantes), para mim muito mais avançado que o alfabeto português. É de longe mais bonito, mais estético, mais económico que o português. O ALUPEC para mim é Top. Se mostrares outra forma melhor, se não mostrares és contra.
Já ouvi pessoas afirmar que não fal ALUPEC, como ALUPEC fosse uma língua, é um alfabeto altamente avançado. Veja o som ‘s’: todos os sons ‘s’ escreve-se com a letra S.
Praça (prasa), passado (pasadu), máximo (másimu), luz (lus). Portanto, nós estamos muito mais avançados em termos de alfabeto do que o português, muito confuso na hora de definir o som das letras.
No entanto, aparecem ondinas ferreiras e não sei quê, umas complexadas, com português alfacinha a tentar complexar os defensores do crioulo. Felizmente temos um PR que defende o crioulo, porque, convenhamos, o cabo-verdiano quer falar crioulo, na América, em França, em Cabo Verde.
Eu se tivesse que escolher uma segunda língua seria o inglês, apesar de dominar o português, na lingua portugues está bem longe de mim. Tanto é que nos últimos tempos estou a escrever as pessoas em crioulo e admiro como é que perdi tanto tempo a escrever em português. Se eu falo contigo em crioulo e nos entendemos por que escrever em português para comunicarmos?
- Adoptar o crioulo em documentos oficiais não deixa o país isolado em relação ao resto do mundo?
- Claro que não, Portugal na arena internacional a sua segunda língua é o inglês. E então? Não quero, nem pretendo que o crioulo seja imposto à primeira e o português escorraçado. Não, é por fases, mas pelo menos que seja ensinado nas escolas como disciplina comum. Em França, também se estuda francês, como em Portugal se aprende português, a Alemanha tem aulas de alemão… é preciso conhecer as regras gramaticais.
O crioulo é a língua da tua e da tua avó, mais do que isso não há. Sou Hopffer Almada, marimbo na minha veia alemã, prefiro e assumo a minha parte africana.
Nestes tempos que a passei a viver nos EUA, em tratamento, notei uma diferença enorme com a Europa. Nos EUA, até prova em contrário és cidadão americano, enquanto que na Europa, até prova em contrário tu és estrangeiro. Quer dizer tenho que apresentar documentos a confirmar que sou português, apesar da cor escura, porque eles partem já do princípio que não sou dali. Nos EUA isso não acontece, tu é que vais de provar que és de outro país.
- Voltando à música, como vês os novos espaços que estão a ser abertos na Praia quase diariamente?
- Praia está com boa oferta. Os novos espaços na Quebra-Canela, no Palmarejo, etc., e sobretudo o Quintal da Música, que deve ser homenageado. A sua gerente, Ália Santos, é das maiores promotoras de cultura em Cabo Verde. Todos os grandes artistas já passaram por lá.
Eu faço estes elogios porque nós santiaguenses não gostamos de elogiar. Também devo sublinhar que os nossos políticos têm de deixar essas guerras políticas e agir diferente, porque nós não somos um país, somos um projecto de país. Os partidos deviam estar unidos na defesa dos interesses da Nação.
O cabo-verdiano gosta demais da sua terra. É raro encontrar gente de outro país que gosta da sua terra como o cabo-verdiano gosta do seu país, um país sem nada para oferecer, pobre, seco, um povo a viver da esperança.
Ainda não conseguimos encontrar políticos à altura de Amilcar Cabral, para mim número 1 no mundo. Já disse ao PR, José Maria Neves, em como deve fazer cumprir Cabral, através de ensinamentos. Ele foi considerado pela BBC segundo maior líder da história. Isso é demais. E tenho orgulho em dizer que é de Santa Catarina. Se ele fosse do Norte, não um badiu, seria muito mais promovido aqui no país.
Veja, como é possível aceitar que tire Amilcar Cabral das notas de dinheiro? Para já devia haver uma nota maior com a sua imagem e em todas as outras apareceria como marca de água. Acabaram com Cabral nas notas de dinheiro e foram lá meter gafanhotos , mas ninguém reclama.
Outro exemplo, critiquei na altura quando puseram a esfinge do Codé di Dona na nota de 1000$00, isso porque defendo que devia ser Katchás, que trouxe o funaná para a ribalta e para a sua consagração.
Sou a favor do nome Nelson Mandela atribuído ao Aeroporto Internacional da Praia, porque se fosse um branco ninguém levava a mal. Havia Kwame N’Krumah foi substituido para bairro Craveiro Lopes, praça 12 de setembro, homenagem ao dia do nascimento de Cabral, transformaram em praça Alexandre Albuquerque, que nem eu que estudei me lembro quem seja.
Olha, bairros havia tão pouco em Cabo Verde que Bairro ficou definido, ‘a mi n mora na Bairro’. Qual bairro? Se tu és poder colonial e estás aqui não fazes mais do que a tua obrigação construir bairros habitacionais e por causa disso se lhe dá o seu nome (Craveiro Lopes)? Ele fez um bairro que tem o seu nome, e José Maria Neves com todas as suas obras e outros ministros que muito fizeram quantos locais passariam a ter o seu nome? Exactamente se passa com o Prédio, na ASA, que ficou esse nome porque era tão pouco haver prédios na cidade. Hoje faz sentido dizer ‘n mora na prédio’? Qual prédio?
- Se tivesses que atribuir nomes de artistas às diversas ruas, avenidas e bairros em quem pensaria para ajudar a mudar a toponímia da cidade?
- Sou contra essa coisa de se dar nomes a locais a pessoas em vida. Defendo homenagem em vida, mas atribuir nomes de pessoas com vida em escolas públicas, ruas, etc., sou totalmente contra. Agora, confesso que me apanhaste desprevenido com esta pergunta porque sei de tanta gente que merecia ser eternizada com o seu nome aqui e ali… Katchás, Nácia Gomes, Norberto Tavares, Juvenal Cabral… enfim, são tantos que não consigo enunciar todos.
Eu sou a favor que sejam retiradas todas as estátuas que remetem ao periodo colonial. Se se quiser que sejam colocados em museus ou estudados nas escolas. Não posso regressar a Cabo Verde 50 anos depois e deparar com a estátua do Diogo Gomes a encimar a Praia a partir do Plateau. Diogo Gomes, um esclavagista, devia ser apeado.
- Praia é uma cidade vivível?
- Sim, posso até criticar algumas coisas, mas creio que se trata de uma cidade onde se pode viver tranquilamente. É uma cidade capital, com a importância que tem e que tem que ser-lhe dado o Estatuto Especial.
Há dias fiquei espantado com colegas de ilhas do Norte que vivem há largos anos na Praia, com casas e carros melhores que tu, são todos contra o Estatuto Especial da Praia, cidade que escolheram viver. Criaram a Zona Económica Especial Marítima em São Vicente e ninguém reclamou. Na verdade, é porque o badiu não tem dimensão do país, e tão pouco da sua ilha. Por isso fala tão pouco de Santiago e da Praia.
- Tenta projectar a Praia daqui a 10-20 anos. O que vês? A Praia dos seus sonhos?
- A Praia dos meus sonhos é encontrar muitas casas arrombadas, casas velhas, mal construídas, portanto, deitadas abaixo. O meu ânimo é que com o investimento externo muitos edifícios velhos terão de ser vendidos no futuro.
Se reparares, as casas das encostas dos planaltos desta urbe estão, estranhamente, de costas voltadas para o mar. No bairro do Brasil, por exemplo, que tem toda a baia à frente, com uma vista espectacular, o que há do lado que se vê o mar são apenas frestas. Nem varandas, todas as casas foram construídas para rejeitar o mar.
Bem, como é uma zona de pescadores, que passavam dificuldades no mar, à noite, a sua intenção era esquecer o mar, virando-lhe as costas.
Na Achada Grande vê-se a mesma coisa, embora já começa a surgir moradias de cara para a baía e o porto.
- Neste momento estás em estúdio para gravar algum disco?
- Sim, sim. Estou a preparar o lançamento de um EP, em homenagem a Katchás. São seis faixas musicais, mas, devido ao meu estado de saúde, ainda só gravei três músicas. A grande novidade é que desta vez há uma música da minha autoria, ‘Sobreviventi’, que dá nome ao disco, que é a minha primeira letra musical, com melodia de Maruca Tavare
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