Vi ainda debaixo do sol que no lugar da retidão estava a impiedade; e que no lugar da justiça estava a impiedade ainda. Eclesiastes 3-16
É corriqueiro ouvir esta frase satírica – o rei vai nú – quando de repente um assunto de elevada responsabilidade é tratado com vileza e enganação, violando os princípios éticos e as transparências recomendadas pelas leis e regulamentos, em relação aos assuntos oficiais e institucionais, ou no referente também aos hábitos e costumes estabelecidos nas relações interpessoais e sociais de uma determinada comunidade ou país.
No entanto, o caso que esta crónica pretende tratar revela uma situação em que o rei pode não estar nú, mas sim de fato!
Cabo Verde adotou uma linda lei de aquisições públicas. É um diploma que estabelece balizas, cria métodos, define competências e critérios, visando assegurar umas coisas - essas lindíssimas -, que tomam o nome de legalidade, igualdade, transparência, eficiência, eficácia, e por aí vai.
Termos pomposos que fazem pose na cabeça das pessoas e animam os espíritos empreendedores, sobretudo quando a pequenez do mercado tritura os investimentos e o ambiente de negócio é assaltado por assombrações comerciais, financeiras e fiscais.
Pois bem, assim como concebida, a lei de aquisições públicas remarca os princípios da livre concorrência e cimenta as bases definidoras das relações comerciais entre o estado e as empresas e outras instituições sociais.
Verifica-se, todavia, com regularidade, grandes hiatos entre a letra da lei e a sua aplicação prática nas relações entre os dois sujeitos, muitas vezes colocando o rei pelado entre a plebe bestificada.
Enfim, são atos que afrontam a ética, a transparência e a legalidade - conceitos esses caros aos estados de direito -, sobretudo porque conferem primazias aos jogos de influências, ao nepotismo, às impunidades e corrupções atentatórios ao equilíbrio social, à igualdade de tratamento, ao respeito pelos esforços alheios e pelos direitos constitucionalmente consagrados, abrindo espaço para verdadeiros assaltos ao erário público.
São vários os casos de autêntica promiscuidade nas relações entre o público e o privado em Cabo Verde, onde os fundos públicos são sugados por este sob o olhar estoico e impotente da nação.
O caso do serviço NhaBex encomendado por várias entidades pública (Casa do Cidadão, na Praia, Mindelo e Sal, hospitais Agostinho Neto e Batista de Sousa, e com negociações em curso na Electra, Cartórios, DNRE, Hospital Santa Rita Vieira), segundo notícias tornadas públicas, é o exemplo mais recente.
Trata-se de uma solução informática da IT Solutions Corp – Desenvolvimento de Soluções, Lda, uma empresa que é propriedade do atual secretário da mesa da Assembleia Nacional, membro da comissão política e ex-secretário geral do MpD, Miguel Monteiro, e sua esposa, Ana Lina Monteiro. Contam também como sócios: Eloy Mendes, Assis Ferreira e Nelson Varela.
Por ser uma empresa pertencente a um alto dirigente do partido no poder, facilmente se percebe a origem das murmurações, das especulações, de um visível mal-estar entre os demais investidores e prestadores de serviço no setor. Porque, tudo indica que algo não anda claro com esse negócio público.
De facto, não se conhece os procedimentos dessa aquisição pública. A lei estabelece a consulta, por meio de concursos. Prevê, também, a aquisição por ajuste direto em certas situações, devidamente definidas.
E, na ausência dessas informações, torna-se justo e recomendável esclarecimentos sobre, por exemplo, as seguintes questões: que modalidade de aquisição pública foi aplicada na contratação da empresa do ex-secretário geral, membro da comissão política do partido no poder e secretário da mesa da Assembleia Nacional, Miguel Monteiro e esposa? A lei foi observada? Foram dadas a todas as empresas do setor oportunidades de concorrer, como recomenda a lei?
Com efeito, o ambiente de negócios, a livre concorrência e a estabilidade emocional da nação recomendam que respostas sejam dadas a respeito desses questionamentos, que, verdade seja dita, a cada dia que passa ganham mais legitimidade. Caso contrário, a vileza e insensatez desse silêncio terão o mérito de colocar o rei, ao invés de pelado, de fato. Isso mesmo! Sem as respostas, o rei não vai nú, vai de fato!
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