Nos próximos dias, o Parlamento estará reunido para analisar o Estado da Justiça em Cabo Verde. Esta reunião está institucionalizada e todos os anos acontece por esta altura. Porém, nada de novo acontece. Cumpre-se uma disposição constitucional para tudo continuar na mesma. A mesma justiça, lenta, corrupta, preguiçosa e falsa. Uma justiça mergulhada numa luta titânica entre a realidade e a utopia, entre um discurso falacioso e uma prática peregrina, ociosa, mentirosa e cega!
Em Cabo Verde está sendo proibido falar a verdade. Amadeu Oliveira, advogado de papel passado, lança graves acusações sobre a justiça, afirma que no Supremo Tribunal da Justiça (STJ) acontece casos de violação de processos, para incriminar inocentes, e tudo fica na mesma.
O cidadão reclama, quer saber das coisas. Afinal, o dinheiro que as instituições públicas gastam é suor do seu trabalho! Entretanto, os discursos oficiais dão uma no cravo, outra na ferradura. Ninguém confia em ninguém, e o rosário de cinismo e hipocrisia se alastra entre palácios e palacetes, assumindo muitas vezes identidades diversas como contas pagas, dinheiro no banco, férias de luxo.
Tudo na barba cara de grandes e pequenos. É uma realidade que tem tanto de exótico, quando de místico ou utópico. Enquanto as instituições desperdiçam o tempo a discutir o sexo dos anjos, o criminoso faz a festa. Porque aqui, de facto, o crime compensa!
Todo o mundo engana todo o mundo. E assim vai. E a confiança se perde neste jogo de esconde-esconde, onde enterrar a cabeça na areia deixou de ser novidade.
E isto em todos os sectores públicos, praticamente! Agora, falando da justiça especificamente, temos que o país está perante instituições judiciais não confiáveis. O cidadão não pode confiar nas instituições judiciárias, porque estas não inspiram confiança.
O Ministério da Justiça não confia na Ordem dos Advogados de Cabo Verde (OACV), a OACV não confia no Ministério da Justiça, os tribunais não confiam nos advogados, os advogados não confiam nos tribunais, a OACV não confia nos advogados e os advogados não confiam na OACV. E todos mentem a todos.
Factos 1. Amadeu Oliveira acusa o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e todo o sistema judicial sobre actos de corrupção, laxismo, incompetência, preguiça e adulteração de provas para incriminar inocentes. O STJ remete-se ao silêncio. O Conselho Superior de Magistratura Judicial (CSMJ), por sua vez, aparece a confirmar que efectivamente sabe de um caso de adulteração de provas e que vai abrir um inquérito para esclarecer as acusações do advogado Oliveira.
Perguntas. Porque é que o STJ não fala sobre este assunto à nação, remetendo-se a um silêncio cúmplice, irresponsável e incómodo? Se o CSMJ já sabia da existência de ao menos um caso de corrupção, então porque é que não abriu o inquérito logo? Porque é que só agora, depois de Amadeu Oliveira ter colocado a boca no trombone é que este importante órgão de administração da justiça resolve abrir inquérito?
Factos 2. Logo após as acusações de Amadeu Oliveira, a bastonária da Ordem dos Advogados, Sofia Oliveira Lima, aparece a acusar este causídico de estar a exercer ilegalmente a profissão, chamando o homem de criminoso. Ou seja, em menos de 24 horas, um homem que é manchete em todos os órgãos de comunicação nacionais, por causa das suas afirmações sobre as podridões da nossa justiça, virou criminoso, ao ponto de esta semana, ter sido impedido de trabalhar por um juiz em Mindelo, por alegadamente estar suspenso da ordem profissional a que pertence e que o habilita a exercer a profissão.
Perguntas. Se Amadeu Oliveira não tivesse feito as acusações que fez sobre a justiça, estaria hoje a ser chamado de criminoso pela bastonária da ordem dos Advogados? Estaria ele hoje sendo impedido de trabalhar por um juiz, porque supostamente ele se encontra suspenso da ordem profissional a que pertence? Não serão estas posições uma forma de condicionar a verdade e promover a mentira e a cumplicidade criminosa no seio do sector da justiça?
Factos 3. O Ministério da Justiça recusou pagar as facturas de assistência judiciária apresentadas pela OACV, no valor de 22 mil contos. O Ministério alega, pela boca do director da Política da Justiça, Benvindo Oliveira, que estas facturas não acusam o nome dos beneficiários, facto bastante para não se assumir o pagamento das referidas facturas. Ademais, parte dos justificativos também se referem às despesas efectuadas com um Gabinete Jurídico de Assistência Judiciária, gabinete esse que o Ministério diz não reconhecer, conforme nota nº 214/DGP/2017, remetida à OACV.
Perguntas. Se o Ministério da Justiça não assumir as despesas de assistência judiciária aos pobres deste país, conforme consta do programa do governo, quem o fará?
Factos 4. Segundo a nota de imprensa da OACV chegada à redacção de Santiago Magazine, “são os tribunais e a OACV as únicas instituições com competências para fazer a avaliação financeira dos beneficiados da assistência judiciária”, e assim sendo, “não faz sentido a suspensão do pagamento por parte do Ministério da Justiça por alegadamente o nome dos beneficiados não constar das facturas”. Outrossim, a referida nota regista ainda que “o não enquadramento do Gabinete Jurídico de Assistência Judiciária, que tem 16 anos de existência e de experiência, ditará o encerramento imediato desse gabinete, ficando a sociedade cabo-verdiana carenciada totalmente desamparada de protecção jurídica e de protecção judiciária, sem acesso à justiça”, concluindo que “desde o encerramento das Casas de Direito a OACV tem sido a única tábua de salvação nesta matéria”.
Perguntas. Porque é que o pobre do cabo-verdiano tem que pagar pelas birras existentes entre as instituições da justiça? Se o Ministério da Justiça não tem competências para avaliar quem deve ou não beneficiar da assistência judiciária, então porque recusa pagar pelas assistências já realizadas pelos advogados e que foram superiormente autorizadas pelos juízes e pela bastonária da OACV? Porque é que o Ministério não confia na OACV e a OACV não confia no Ministério da Justiça? O que é feito do diploma que regula o funcionamento da administração pública nacional?
Factos 5. Os processos acumulam-se nas secretarias judiciais. As pendências aumentam de ano para ano. Neste ano judicial 2016/2017, a produção dos juizes não atingiu 50%, ou seja, nem a metade do que deveriam fazer. Entretanto, a entrada de queixas diminuiu no Ministério Público, porque a falta de confiança na justiça é cada vez mais acentuada. E ninguém é responsabilizado. Os majestrados parecem entidades acima das leis!
Considerações. É necessário e imprescindível a credibilização das instituições democráticas. A saúde física, emocional, pessoal e colectiva da sociedade está umbilicalmente ligada à saúde política, administrativa e organizacional do Estado e das suas instituições representativas.
A justiça é seguramente o pilar mais importante de um Estado de Direito Democrático. Somos um país pobre, de parcos recursos naturais e marcado pelos custos da insularidade. Estas características vincam a nossa particularidade no mundo, e nos interpela a outras formas de interpretação de conceitos e de princípios globalmente aceites como intocáveis, como verdades absolutas.
Aqui o Estado Social deve envergar uma indumentária muito própria, local, individual.
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