Embaixadas não prestam contas. Estará o poder na rua?...
Editorial

Embaixadas não prestam contas. Estará o poder na rua?...

O poder não pode andar na rua. O Tribunal de Contas (TC) é competente para cumprir e fazer cumprir as leis sobre prestação de contas do Estado. E para isso não precisa da “bengala” de nenhum membro do Governo, só das leis. Chega a ser anedótico o fiscalizador pedir apoio ao fiscalizado sobre matéria da sua competência.   

O presidente do Tribunal de Contas (TC), José Carlos Delgado, afirmou este fim-de-semana nas antenas da Rádio Nacional, que as nossas Embaixadas não têm estado a prestar contas dos recursos públicos sob sua gestão. Delgado, que fazia estas declarações à saída de um encontro com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Filipe Tavares, para precisamente “negociar” com este governante uma solução para o problema, admitiu tratar-se de uma situação particularmente grave.

Com efeito, e infelizmente, o excelentíssimo senhor presidente do TC tem razão. A situação é deveras grave.

Como podem instituições com elevada responsabilidade no processo de desenvolvimento do país, como são as representações diplomáticas, violar recorrentemente as leis, não prestando contas dos recursos públicos que lhes são cometidos, e continuarem impunes?

É que nunca se viu e nem se ouviu que algum embaixador ou outra entidade qualquer que dirige as nossas embaixadas no exterior tenham sido chamados à responsabilidade porque não prestaram contas como manda a lei, ou sobre um ou outro acto pouco feliz da sua gestão. Salvo o caso de Eugénio Inocêncio, antigo embaixador de Cabo Verde em Lisboa, mas este foi em 1993, já la vão quase 3 décadas.

De igual modo, não há registo de que algum titular da pasta de Negócios Estrangeiros dos diferentes governos da República, tenha sido de algum modo responsabilizado por hipotéticas negligências em exigir que as representações diplomáticas prestem contas.

Mas mais, também ninguém viu e nem ouviu o TC sendo chamado à pedra pelos demais órgãos de soberania, pelo facto de eventualmente não ter feito o seu trabalho como devia, isto é, mandar os casos de contra-ordenação para o Ministério Público, para o competente processamento criminal, se for caso para tal.

O que se viu e se ouviu até este fim-de-semana é uma entidade instituída de poder para fiscalizar todas as contas do Estado, e que em vez de o fazer, vai “choramingar” aos pés de um político, no caso, o ministro das Relações Exteriores, para o ajudar no cumprimento das suas funções.

Ora, isto é muito mais grave do que as “comedorias” do dinheiro público que eventualmente estejam a acontecer nas nossas embaixadas. Porque, está-se perante uma instituição que gasta anualmente rios de dinheiro de toda a nação, e que não só não esteja a exercer a sua função como manda a lei, como também anda a alimentar a corrupção e a anarquia no seio da administração pública. 

Por outro lado, ao demitir-se do exercício cabal das suas competências, o TC está a contribuir para que a nação seja enganada quanto aos gastos do Estado, na medida em que as contas das nossas embaixadas não têm constado das sucessivas contas públicas. E ninguém diz nada. Nem mesmo o parlamento, que é quem aprova os orçamentos e as contas.

A prestação de contas é um dos maiores activos dos regimes democráticos. No nosso caso, ela resulta de uma determinação constitucional, particularmente o artigo 94 da lei magna, que define os princípios basilares do orçamento do Estado e sua execução.

Todos os anos as contas do Estado devem ser submetidas à análise e parecer do Tribunal de Contas. Este parecer, embora não vinculativo, é, todavia, um julgamento, porque quem avalia julga.

A Constituição da República, no seu artigo 219, define o TC como o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que a lei mandar submeter-lhe.

O diploma que regula a organização, a composição, a competência e o funcionamento do TC, afirma que este é independente e que as suas decisões em matérias sujeitas à sua jurisdição são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades.

Disto resulta que o TC goza de poder bastante para fazer valer as suas competências no quadro da fiscalização das contas do Estado. Explicando, o TC é absolutamente competente para inspeccionar as contas das embaixadas e encaminhar eventuais contra-ordenações apuradas ao Ministério Público para o procedimento criminal que ao caso couber.

Assim sendo, não faz qualquer sentido – e chega a ser anedótico - o seu presidente ir “negociar” com o ministro das Relações Exteriores soluções para o problema.

Porquê? Primeiro, porque estaria a misturar papéis e a conspurcar as suas competências. Segundo, porque estaria a negociar com um “cúmplice” confesso destas instituições, ciente de que o ministério das Relações Exteriores é o primeiro responsável pela situação, sendo consequentemente um prevaricador, um incumpridor das leis, pelo que qualquer “negociação” para além de se configurar uma insensatez institucional é ainda uma violação flagrante aos princípios da independência e da exclusiva obediência às leis, que vinculam os órgãos do poder do Estado.

O poder não pode andar na rua. O TC é competente para cumprir e fazer cumprir as leis sobre as prestações de contas do Estado. E para isso não precisa da “bengala” de nenhum membro do Governo, só das leis. Chega a ser anedótico o fiscalizador pedir apoio ao fiscalizado sobre matéria da sua competência. 

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