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Coronavírus. A quem assacar responsabilidades?
Editorial

Coronavírus. A quem assacar responsabilidades?

Ulisses Correia e Silva admite que o governo errou, porém não especifica o agravo, não pede desculpas e não se mostra disposto a assacar responsabilidades. A autoridade do Estado saiu beliscada e a tentativa de empurrar a culpa para os funcionários do hotel é ultrajante para um governo que se afirma responsável e democrático.

Cabo Verde conta já com 55 casos positivos de Covid-19, segundo dados oficiais do Governo. De 10 casos, de repente apareceram mais 45, todos estes trabalhadores do hotel Karamboa, na ilha da Boa Vista, cujas recolhas foram realizadas no dia 12 de abril, quando forçaram romper o confinamento, após 23 dias de clausura.

Impedidos pelas forças armadas e policiais, os referidos trabalhadores conseguiram negociar a saída com o governo – os ministros da Saúde e da Administração Interna confirmaram em conferência de imprensa de que foi o Governo a decidir pela libertação dos mesmos – porém, antes tiveram que se submeter à recolha do sangue para o teste na cidade da Praia.

Grande parte desse pessoal reside no Bairro Boa Esperança, na cidade de Sal Rei, um aglomerado populacional que dá guarida a cerca de 8 mil almas, sem energia elétrica, sem água, sem qualquer tipo de saneamento.

Com mais de 23 dias fora de casa, naquele dia houve festa no bairro, porque aqueles que se encontravam presos foram finalmente libertados, com a quase certeza de que estariam ‘limpos’ desse vírus, porquanto não passaria pela cabeça de ninguém que continuando suspeitos de infecção pelo Covid-19 seriam mandados ao encontro dos seus familiares.

Portanto, era natural essa manifestação de alegria no seio de um povo que passa os seus dias sob forte pressão e carência, sobretudo agora que o país está em estado de emergência.

Entretanto, foi sol de pouca dura. Ontem, 15 de abril, sai o teste e 44 desse pessoal está afinal infetado. Que afronta! De um momento para o outro, autoridades policiais, elementos das forças armadas, agentes da proteção civil cercam o bairro e levam todo o pessoal para o confinamento. De novo o calvário.

A partir de agora, ninguém sai ou entra no bairro. Enquanto isso, o Governo organiza uma conferência de imprensa para esclarecer o país sobre o ponto de situação da epidemia.

E é então que o primeiro-ministro entra os cabo-verdianos porta adentro, para reconhecer que houve erros e que o executivo que dirige reconhece os seus erros.

Um mea culpa plausível, sim, analisando todo o processo, mas que não passou de mero truque de comunicação porque Ulisses Correia e Silva não especificou quais os erros cometidos pelo seu governo e como agir para evitar a repetição dos mesmos.

Os cabo-verdianos ficaram sem saber o que é que o chefe do Governo queria dizer com erros – se foi o facto de o governo ter fechado por quase um mês duas centenas de pessoas, grande parte chefes de família, sem realizar os testes e sem explicar fosse o que fosse; ou se foi o facto de o governo ter decidido libertá-los sem primeiro conhecer o verdadeiro estado da arte, ou seja, sem primeiro realizar os testes para assim evitar a disseminação do vírus pelo bairro e pela ilha toda.

Assim de chofre, o primeiro-ministro quis eventualmente limpar o seu capote, tentando humilhar os trabalhadores e a própria administração do hotel. Falou inclusive de tentativas de se colocar os trabalhadores contra o governo, sem se referir como, porquê e por quem…

De igual modo, que não pediu desculpas pelos erros que diz reconhecer, e nem se dignou informar que medidas irá tomar para reparar os erros, quanto mais não seja para se evitar que coisas do género não venham a acontecer no futuro.

Foi e continua a ser preocupante a posição do chefe do governo em relação à gestão dessa epidemia no país. Demorou em fechar a fronteira, deixando a casa escancarada para ser assaltada pela doença.

Com a doença aqui dentro, continuou agindo conforme as reações do vírus e as críticas da sociedade. Fechou Boa Vista. De seguida fechou os voos internacionais. Logo a seguir, anunciou-se favorável ao estado de emergência, uma ideia que foi logo apoiada por todos os partidos, tendo contado com a anuência do presidente da República.

Aprovado que foi o estado de emergência, o primeiro ministro e o seu vice anunciariam ao país uma série de medidas para mitigar os seus efeitos na sociedade, algumas com carácter de urgência, como por exemplo, as cestas básicas para as famílias carenciadas e os subsídios para os trabalhadores informais, os microempresários e demais ‘txapus na mon’ espalhados pelas ilhas.

Duas semanas depois, esse pessoal ainda não viu a cor do dinheiro, as cestas básicas são distribuídas a conta-gotas, em quantidades ínfimas e humilhantes.

Com os materiais essenciais para combater a doença em rotura – máscaras, luvas, álcool gel – o departamento governamental que gere a saúde mostra-se despreparado para lidar com o problema.

De repente, o hospital Batista de Sousa mete água e não se acautela no tratamento de um flagrante caso de suspeição da doença, colocando a vida de centenas de profissionais em causa e o primeiro-ministro não responsabiliza ninguém. O ministro da Saúde, principal responsável e que disse confiar nos técnicos do HBS, aparece a acenar o país com um inquérito, num flagrante exercício de juiz em causa própria.

Sem que nada fosse feito, esta semana acontece o flagrante da Boa Vista e o primeiro ministro fala, fala, mas diz muito pouco. O ministro da Saúde, questionado se se pensa em demitir-se, responde que sendo médico aprendeu a não desistir do doente. Não deu para perceber bem o que queria Arlindo do Rosário dizer com isso, mas certamente que estará a admitir que estando o Governo a que pertence doente, ele não iria desistir de ajudá-lo.

Será? Pode ser. E se assim for, então que seja breve, antes que a enfermidade se alastre para todo o país. Porque até este momento, Arlindo do Rosário tem sido de uma lentidão que cheira a irresponsabilidade e incompetência.

Com efeito, o falhanço total nas medidas preventivas na Boa Vista, no que toca aos trabalhadores do Riu Karamboa é gritante e injustificável. Se o Governo pediu que fosse decretado o Estado de Emergência era precisamente no intuito de fazer cair alguns direitos e liberdades dos cidadãos para obrigar as pessoas, com a força da lei, a se isolarem. No Riu Karamboa está agora mais do que provado que tal não aconteceu nos dias de suposta quarentena, nem tão pouco impedir uma manifestação desses profissionais, que à luz da lei, era proibida.

Sendo assim, não se pode vir passar a responsabilidade do sucedido aos trabalhadores, se as próprias autoridades não estiveram à altura para lhes garantir segurança, impondo-lhes isolamento total.

O grande problema agora é, por causa deste falhanço, o país correr o risco de ver disparar o número de infectados pelo Covid-19. Para já, a grande maioria desses trabalhadores é malta jovem com baixa taxa de letalidade ao coronavírus. E muitos outros vão continuar assintomáticos e, eis o pior cenário, espalhar involuntariamente o vírus por onde já passaram. Isso exige que o Governo reforce as medidas restritivas para conter ao máximo um mal bem maior: a transmissão comunitária descontrolada.

O Governo por diversas vezes, oficial e oficiosamente, vem pedindo colaboração de todos, mas apelando praticamente para que ninguém se intrometa no seu trabalho, como se apenas os que estão a liderar o processo têm opinião ou sabem a receita.

Essa recusa de sugestões, inputs e incapacidade para ouvir outras opiniões confere ao Governo toda e qualquer responsabilidade na gestão do Covid-19. Porque apesar de referir que se trata de uma luta de todos, o Executivo age de forma unilateral para depois, quando as coisas não correrem de feição, vir dividir as culpas com todo o país. Estamos todos juntos nesta empreitada, mas é preciso humildade para tomarmos decisões articuladas, concertadas e as mais consensuais possíveis para vencermos o Covid-19.

A direcção

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