Como se aproxima o dia 1º de Junho
Quero dedicar esta parte do STRIBILIN
A todas as crianças do mundo,
Excecionalmente às vítimas de madrastas
E de inconscientes pais desnaturados.
CENA CLXXVIII
João da Cruz e os seus dois filhos, Dário e Nande, estão morados em casa da Berta. Berta tem uma filha que se chama Isa e que é mais nova 6 meses do que Dário. A Berta refoga uma frigideira de cachupa, com 2 ovos estrelados, põe na mesa para os meninos tomarem o peque-almoço. Como os ovos são apenas dois, ela os dá: um ao Dário e outro ao Nande.
BERTA (enquanto vai pondo o ovo no prato de cada um dos meninos) – Como não são meus filhos, só tenho estes ovos, quem não vou dar é a minha filha.
ISA (reclama, zangada) – Por quê mamã?
BERTA – Eu não sou má parida. Tu és minha filha, se eu não te der ninguém fala mal de mim.
Mas a cachupa no prato da Isa ela põe um pouco mais do que nos pratos dos meninos.
DÁRIO – Nós podemos dividir o nosso com ela.
BERTA – Isso já é lá convosco. É se vocês quiserem. A minha boca não está lá.
NANDE – Eu quero, D. Berta.
BERTA – Então está bem. Se vocês quiserem… como ela é como se fosse a vossa irmã, cada um de vocês dá-lhe uma metade do vosso ovo. Como é que acham? (Cada um divide o seu avo em 2 e põe a metade no prato da Isa) Isso mesmo! Muito obrigado. (Para a Isa) Filha, diz-lhes obrigada.
ISA – Obrigada!
DÁRIO E NANDE – De nada.
BERTA – Quando acabarem de comer, vão lavar as vossas loiças e arrumem na cozinha. Dário, quando voltares de apanhar a palha para alimárias, tu e Nande vão limpar aquele chiqueiro que está atolado de bostas e a cheirar muito fede.
DÁRIO – Sim, senhora! (Para Nande) Ouviste, Nande?
NANDE – Ouvi, sim. (Levanta de um pulo) Vou vestir o meu fato-macaco.
DÁRIO – Não é agora não, Nande! É quando eu voltar da Bianga, de ir buscar a palha.
Nande volta a sentar-se.
BERTA – Mas primeiro, antes de ires buscar a palha, vais bater o bole. Preciso de tirar manteiga do leite e cozinhar ainda neste período de manhã. Tenho 4 garrafas de leite-dormido e uma de manteiga já encomendadas para entregar. A manteiga que vais tirar hoje, mais a que tenho no sal, depois de cozinhadas dão para encher uma garrafa de cuca.
DÁRIO (acaba de comer e faz o sinal da cruz) – Obrigado, Senhor, por mais este pão de cada dia! (Para o pessoal na mesa, antes de se levantar) Com licença!
BERTA – Não sei para quê é que tu benzes! Para enganares a Deus?
Dário sai com o seu prato na mão.
NANDE – Aonde é que tu vais, Dário?
DÁRIO – Vou lavar o meu prato, deixo-o na cozinha e vou à despensa buscar o bole de leite para vir bater e tirar a manteiga.
A Isa, enquanto está a comer vai brincando com uma boneca feita de pano.
BERTA – Come, filha! Come e depois brincas com a boneca!
ISA (com comida na boca, enquanto penteia a boneca) – Não quero mais, mamã.
BERTA – Tu também já acabaste de comer, Nande?
NANDE – Sim. Já acabei.
BERTA – Então leva o teu e o da Isa, vai lavá-los e arrumá-los na cozinha.
Nande levanta-se, arruma os pratos, o Dário volta da despensa como o bole de leite.
DÁRIO – Nande, vai acender o lume no fogão e põe água a ferver para eu vir pôr no bole de leite.
NANDE – Está bem.
BERTA – Então vai lá!
Nande sai com os pratos na mão. Berta vai ao pote buscar uma caneca de água.
BERTA – O pote está quase seco.
DÁRIO – Ontem é que enchemos o pote, eu e o Nande!
BERTA – Então o pote já bebeu a água!
NANDE – Foi a Isa que tirou a água do pote e regou as plantas.
BERTA – Ela regou as plantas! Não foi?
NANDE – Sim.
BERTA – Tu achas que as plantas também não têm direito? Conforme tu comes, e muito, as plantas também têm direito de comer. Dário, tu e Nande vão buscar água ao Mano Prero ou no chafariz em Salina ou atrás do Pelourinho dentro do Porto. A Isa hoje fica para me ajudar a fazer umas coisas cá em casa.
DÁRIO – Sim, senhora!
BERTA – Quando acabares de bater o bole, tu e Nande vão buscar palha para os bichos. Quando voltarem, vão limpar o chiqueiro antes de irem buscar a água. E depois tu vais cochir o milho para a cachupa. Tu vais fazer a cama, Isa.
DÁRIO – A Isa hoje não me vai ajudar a cochir?
ISA (para a mãe) – Eu já te tinha dito desde ontem que hoje vou brincar como a Jéssica, minha amiga!
BERTA – Sim, minha filha. Vais ajudar-me só fazer a cama!
ISA – Mas a Jéssica vai ficar à minha espera, mamã! Eu disse-lhe que ia de manhã… logo depois do pequeno-almoço!
BERTA – Ok. Então podes ir.
A Isa veste-se bonita, despede-se da mãe e sai.
CENA CLXXIX
João da Cruz chega por volta das 10H00 da noite. A Berta e a Isa estão sentadas à mesa. Berta está a ensinar Isa a escrever o seu nome. João da Cruz destampa uma terrina e serve no prato um pouco de caldo-peixe de banana verde, misturado com xerém. Faz careta depois de meter uma colherada na boca.
JOÃO DA CRUZ – Que comida é essa, Berta?
BERTA – Eu não! Se a comida não está a prestar, sabes lá o que fazes com o teu filho!
JOÃO DA CRUZ – A comida não tem uma pedra de sal!
BERTA – Já não estou farto de te dizer que esse menino só nos sabe chatear a cabeça?! (João da Cruz levanta bué zangado) Vais aonde, João da Cruz?
JOÃO DA CRUZ – Vou ao kobon lá atrás da casa.
Ele sai e volta pouco depois, abotoando as calças. A Berta chama-o.
BERTA – Olha como é que a Isa já sabe escrever todos os nossos nomes!
JOÃO DA CRUZ – E o Dário?! Ele ainda não sabe escrever o nome dele?
BERTA – Ele quase que não quer aprender. A Isa não cansa de me chatear com perguntas e pedir-me para lhe ensinar tal coisa. Mas o Dário… ele fica como quem já sabe tudo.
JOÃO DA CRUZ – Fazer atrevimento é o que ele mais quer. Parra isso pode-lhe acordar do sono.
BERTA – Ele quase saiu fututú [igualzinho] a mãe. Porque tu… não és assim.
JOÃO DA CRUZ – Eu não sei ler, nem escrever… mas ninguém me engana. Agora esse menino!… Não sei, de facto, a quem ele saiu!
BERTA (Olha para João da Cruz) – A quem ele saiu?! Tu não gosta que o diga, mas a verdade não se agacha. Ele saiu à mãe que era uma obtusa… uma besta ao quadrado. (Olha no caderno da Isa) E a Isa tem uma caligrafia, louva-a-deus!
João da Cruz sai, vai ao quarto onde o Dário e o Nande estão deitados. Desata o cinto das calças e aplica uma chibatada ao Dário que está a dormir. Este fica a gritar e a enrolar no lençol tentando se defender. Nande também acorda e fica assustado.
JOÃO DA CRUZ – Seu burro! (Vai lhe aplicando) A Isa, mais nova do que tu, já sabe escrever, está aí sentada com a mãe que ela pede para lhe ensinar, tu aqui a roncar sono como um porco! O que tu queres é fazer atrevimento! Hoje vou dormir com fome por tua causa. Seu ordinário! Nem sal sabes pôr na panela. Se fosse atrevimento passavas sempre em primeiro lugar.
BERTA – Já está bom, João da Cruz. Larga o menino da mão e anda ficar aqui. Vou ver se te arranjo alguma coisa… nem se um caldo de ovo para não dormires com o estômago vazio.
JOÃO DA CRUZ – Pirralho! Ainda vou pôr-te na linha! Com sete anos no corpo, não sabes nem pôr sal na comida?!
Sai do quarto e fecha a porta bruscamente.
CENA CLXXX
Dário está no quintal da casa do Faustino Jorge, ao lado do Armandinho, seu colega de escola. Estão à frente de um fogão de três pedras, com panela ao lume a fazer o jantar.
FAUSTINO JORGE (vai da sala para o quintal) – Oi, Dário!
DÁRIO (levanta-se) – Dê-me bênção, Faustino Jorge!
FAUSTINO JORGE – Anjo da Guarda te guie!
DÁRIO – Amém.
FAUSTINO JORGE – Senta-te.
ARMANDINHO – Ontem João da Cruz voltou a bater-lhe outra vez, papá!
FAUSTINO JORGE – É verdade. Ontem ouvi barulho lá em vossa casa.
Dário põe-se a chorar.
ARMANDINHO – Ele disse que logo cedo foi buscar palha à Bianga, para dar aos animais, que depois foi buscar duas latas de água em Mano Prero, coxiu dois litros de milho, fez o almoço e ainda foi para a escola à uma hora.
FAUSTINO JORGE – Eu sei que este miúdo é kruka daquela casa. A mocinha!…
ARMANDINHO (não o deixa concluir) – A Isa?
FAUSTINO JORGE – Ela é uma serpentinha! A mãe não a manda fazer nada. Criança ainda, já anda com unhas e beiços pintados como se fosse adulta. (Para o Dário) E o que foi que aconteceu ontem? Por que o teu pai te bateu?
DÁRIO – Eu estava a dormir quando o papá chegou… (soluços lhe interrompem a fala por uns instantes) Eu só senti o lençol a escorregar de cima de mim e chibatadas de cinto no meu corpo.
FAUSTINO JORGE – Sem quê nem por quê?
DÁRIO – Eu só lhe ouvia a dizer: «Seu burro! A Isa mais nova do que tu, já sabe escrever… o que tu queres é fazer atrevimento!»
FAUSTINO JORGE – Tu não sabes escrever o teu nome?
DÁRIO – Não tenho ninguém que mo ensine!
ARMANDINHO – A Berta tem primeiro-grau, mas ela só ensina a Isa por que é filha dela.
DÁRIO – E quando o papá chega a casa ela diz-lhe que eu não quero estudar.
ARMANDINHO – E lá na escola o Dário sabe muito mais do que a Isa. A Isa não sabe nada.
FAUSTINO JORGE – Vocês ainda estão na Pré-primária. Vem cá todos os dias e juntamente com o Armandinho, vos ensino a escrever o vosso nome.
DÁRIO – Não pode ser já, Faustino?
FAUSTINO JORGE – Pode sim!
Faustino limpa uma porção no chão a frente do Dário, escreve o nome dele e pede-lhe para copiar por baixo. E faz o mesmo para o Armandinho. E eles vão exercitando.
CENA CLXXXI
Dentro de um Hospital, Mendinho está sentado no consultório de um médico.
MÉDICO – Bom dia!
MENDINHO – Bom dia.
MÉDICO – Como é que o acidente aconteceu?
MENDINHO – Não sei explicar.
MÉDICO – O rapaz que vos acompanhava teve ferimentos muito graves e vai ter que ser evacuado com urgência para Portugal.
MENDINHO – Coitado! E o condutor, como é que ele está?
MÉDICO – O condutor bem. Está apenas traumatizado. Mas continua em observações.
MENDINHO – Não sei como foi que ele se distraiu! O carro capotou num sítio simples.
O telefone toca num outro gabinete, uma Empregada vem chama o Médico.
EMPREGADA – Doutor, uma chamada para si.
MÉDICO (para mendinho) – Dê-me licença! (Ele vai atender ao telefone e volta pouco depois) Desculpe lá.
MENDINHO – Não tem de quê.
MÉDICO – E você está a sentir-se bem?
MENDINHO – Estou bem!
MÉDICO – Não tens nenhuma dor… nem nenhum mal-estar?
MENDINHO – Não! So me dói este braço (aponta para o braço esquerdo) mas não muito.
MÉDICO – Então, se calhar tem que tomar uma injeção para evitar que piore.
MENDINHO – Ok. Pode ser.
O Médico aplica-lhe uma injeção e o manda embora.
CENA CLXXXII
Mendinho está sentado no sofá de uma sala confortável, na casa do senhor João Varela. A Empregada acaba de pôr o almoço na mesa.
EMPREGADA – Senhor João Varela, o almoço já está na mesa.
JOÃO VARELA – Obrigado. Bom, Mendinho; anda almoçar antes que o pessoal comece a chegar.
MENDINHO – Depois que o médico me aplicou a injeção fiquei maldisposto.
JOÃO VARELA – Então vens almoçar e vais-te deitar um bocadinho. Vais deitar e descansar. Eu falo com o pessoal quando começar a chegar.
MENDINHO – Se calhar vou dormir um bocadinho e depois venho almoçar.
JOÃO VARELA – É melhor comeres primeiro.
MENDINHO – Vou dormir primeiro.
JOÃO VARELA (levanta-se) – Então vou-te levar no quarto.
Os dois vão para o quarto de hóspedes, Mendinho sobe a cama e deita-se, João Varela volta para a sala e almoça sozinho.
CENA CLXXXIII
João Varela manda a Empregado chamar Mendinho, esta volta em pânico e a gritar. Mendinho está morto.
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