CLIV CENA
Numa sala está uma mesa coberta com um pano preto e, por cima estão: um baralho de cartas, umas cruzes, alguns santos, caveiras e outros ossos, búzios, garrafas com aguardente misturada com ervas e sete velas acesas.
LALA – Estou a gostar de uma mulher, quero que você lhe faça alguma coisa para ela ficar doida por mim.
CURANDEIRO (baralhando lentamente umas cartas) Para isso tens que me trazer duas coisas íntimas dela e uma fotografia.
LALA – Desconfiei que me ia pedir fotografia, trouxe uma que lhe roubei. (Tira uma foto do bolso de casaco) Tome.
CURANDEIRO – Agora vais ter que trazer um pedaço de unha dela, ou um pouco do seu cabelo da cabeça. Mas se conseguires de outros sítios, como do sovaco, por exemplo, ou daquela parte abaixo do umbigo…
LALA – Oh, pá!… Isso já é um bocado difícil. Cabelo da cabeça ainda… posso tentar. Posso espreitar… e tentar quando ela estiver a pentear.
CURANDEIRO – Traz-me o que conseguires e o problema se resolverá.
LALA – Mas não pode ser outra coisa?
CURANDEIRO – Pode. E podem ser muito mais outras coisas ainda. Uma escova de dentes, por exemplo, que ela já tenha usado…
LALA (bastante admirado) – Escova de dentes?! Oh, senhor! Acho que ela nem sabe o que é isso! Ela esfrega os dentes com o dedo e… dja N bai!
CURANDEIRO – Uma calcinha ou um soutien, que sejam dela, também servem.
LALA – Calcinha também trouxe uma. E não está muito nova. Está furada no fundilho. Roubei-lha do estendal. (Retira do bolso uma calcinha grande feita de saco de farinha-trigo e entrega ao curandeiro) Está aqui.
CURANDEIRO (deita as cartas e vai mexendo os beiços em sinal de que está a rezar) – Há quanto tempo vocês se conhecem?
LALA – Há bastante tempo!
CURANDEIRO – Gostas dela há já quanto tempo?
LALA – Depois da morte do meu compadre. Quando ela afrouxou o luto.
CURANDEIRO – Depois da morte do teu compadre?! Que compadre?
LALA – O marido dela.
CURANDEIRO – O marido dela batizou-te um filho?
LALA – Eu é que lhes batizei um filho… o José.
CURANDEIRO – Então… vocês também são compadre e comadre?!
LALA – Sim. Mas estou xonado que vou pra cama e não consigo pregar os ohos.
CURANDEIRO – Costumas declarar-lhe esta paixão? Já lhe disseste que gostas dela?
LALA – Credo! Não tenho essa coragem. Ela é muito séria e gostava tanto do seu marido! Por isso que vim ter consigo para ver se há alguma coisa que se possa fazer para ela ficar xonada por mim.
CURANDEIRO – Ela vai à missa?
LALA – Todos os domingos. Às vezes vai ao sábado e ao domingo.
CURANDEIRO – Usa alguma coisa ao pescoço que leve cruz?
LALA – Acho que nem quando vai para cama ela os tira. O seu rosário de osso e a sua cruz de vime… estão-lhe sempre pendurados ao pescoço. Quem não a conhece, pode pensar que ela e Rebelada.
CURANDEIRO – Então já não podemos fazer nada. Contra as viúvas nada se pode fazer. Principalmente as que cumprem a lei do mandamento divino, que não faltam a missa e que nunca andam sem uma cruz ou um rosário de osso ao pescoço!
LALA – Então não há nada mesmo a fazer?
CURANDEIRO – O rosário que ela não tira do pescoço, livra-lhe de todo o malfeito do mundo. E essas viúvas rezam o terço todos os dias, às vezes mais do que uma vez.
LALA – E se eu lhe arrebentar o rosário do pescoço?
CURANDEIRO – Consegues?
LALA – Vou tentar. Passo por ela, finjo que estou moku, que me tropeço e arranco-lhe o rosário.
CURANDEIRO – Há outra coisa que lhe protege. Ela vai à missa, confessa, comunga e cumpre as leis de Deus. Ela anda sempre com Deus na boca e Jesus no coração. Malfeito só pega nas pessoas que acreditam que ele existe, nas pessoas que acreditam em bruxarias… que vão à missa para se darem nas vistas, mas que já ao regressarem da igreja pensam em próximas maldades.
LALA – Bom… a minha comadre por acaso!…
CURANDEIRO – Muitos só se lembram de Deus quando precisam Dele para pedir-Lhe que castigue quem eles odeiam. (Para um pouco) Entretanto, há um truque que tu podes tentar fazer.
LALA – Qual?
CURANDEIRO – Tu lembras ainda bem do teu compadre?
LALA – Como se ele estivesse aqui e agora à minha frente.
CURANDEIRO – Lembras como ele falava?
LALA – O meu compadre?! Desde quando ele era vivo, eu imitava a voz dele e ninguém descobria que não era ele.
CURANDEIRO – Perguntei-te, por que vi aqui nas cartas. E já pode resultar.
LALA (muito ansioso) – Como?
CURANDEIRO – Como disseste que a sua comadre gostava muito do seu marido…
LALA – Não há nada que ela não seja capaz de fazer por ele. Não há nada neste mundo que a minha comadre não seja capaz de fazer pelo meu compadre.
CURANDEIRO – Então isso já é bom.
LALA – Quem a quiser ver zangada, ou não quer mais a sua amizade, fala-lhe de duas coisas: mal do defunto, ou que Deus não existe!
CURANDEIRO – Boa! Então quando for meia-noite, tu vais ficar debaixo de sua janela e imitas a voz do teu compadre. Finges que estás a gemer e falas com ela como se fosses o teu compadre. Diz-lhe que ainda não viste a face de Deus porque a deixaste desamparada. Que Deus mandou-te pedir-lhe para ela juntar com o vosso compadre, o único homem capaz de… (pergunta-lhe) quantos filhos eles têm?
LALA – O José e a Luisinha.
CURANDEIRO – O único homem capaz de tomar conta dela e dos vossos filhos: José e Luisinha.
LALA – Vou lá já esta noite. Muito obrigado mesmo. E quanto lhe devo?
CURANDEIRO – Pelas cartas que deitei pagas vinte escudos. Pela consulta pagas trinta. E se conseguires… se tudo der certo, vens pagar-me mais setenta escudos e trazes-me um bode capado e duas galinhas. Uma fenhi e outra cacho-nu.
LALA (abre a carteira, tira o dinheiro e conta) – Tome. (Guarda a carteira novamente) Tenho a certeza de que brevemente arrastarei um bode capado e trago-lho juntamente com os setenta escudos e as duas galinhas. E como kunbidu ofereço-lhe ainda um pé-de-mandioca caianinha para vir cozinhar com carne de galinha.
Despedem-se com um aperto de mãos. Sai o Lala e entra João da Cruz acompanhado da Ponxita. Cumprimentam-se, o Curandeiro baralha as cartas e expõe-nas sobre uma prancha enquanto olha para João da Cruz.
CURANDEIRO - Como é o seu nome?
JOÃO DA CRUZ - João da Cruz.
CURANDEIRO - Onde mora?
JOÃO DA CRUZ - Porto Santiago.
CURANDEIRO (olha nas cartas) - O senhor João da Cruz é muito disputado pelas mulheres! (Ponxita olha para João da Cruz e ele abana a cabeça acompanhado de um leve sorriso) Há uma que, neste momento, está zangada consigo…
JOÃO DA CRUZ - É verdade.
CURANDEIRO - Mas, no fundo, ela gosta muito de si!
PONXITA - O senhor não consegue fazer a que ela tire os olhos dele?
CURANDEIRO - Poder… posso. Queres que faça alguma coisa?
PONXITA - Quero. E quanto é que o senhor cobra?
CURANDEIRO - Já vamos falar disso. Primeiro tratamos do caso do teu marido. (Volta a deitar cartas) João da Cruz tem um familiar que gosta muito de si…
JOÃO DA CRUZ - É o titio. Deu-me uma horta grande para trabalhar.
CURANDEIRO – Mas João da Cruz tem um irmão que lhe está a querer sacanear…
PONXITA - É verdade. É mesmo verdade! (Para João da Cruz) Ouviste? É obra de Txoné.
CURANDEIRO – João da Cruz costuma ter problema com autoridades?
PONXITA (impulsiva) - Estás a ver, João da Cruz? Estás a ver?
CURANDEIRO – Está a ver o quê?
JOÃO DA CRUZ - É por causa disso que vim cá.
CURANDEIRO – E fez muitíssimo bem. Porque se o João da Cruz não se tratar, vai morar uns tempos longe do sol.
PONXITA – Meu Deus!… E dizem que os mestres só sabem mentir?!
JOÃO DA CRUZ – Deixa-me acabar de ouvir.
PONXITA - João da Cruz, se não meteres aquela xulebra no seu lugar… estás tramado. Ela e o Txoné teu irmão!
CURANDEIRO (mostra-lhe uma dama de espadas) – Por que é que ela te quer meter na cadeia?
JOÃO DA CRUZ - Ela foi queixar-se de mim, o Tribunal Popular julgou-me e condenou-me a 6 meses de cadeia.
CURANDEIRO (faz um sorriso) - Estão a ver que nas cartas não se enganam? Que elas não mentem? (Aponta o dedo para dama de espadas) Está tudo aqui.
PONXITA - Eu já vi! Vi com esses meus olhos!
CURANDEIRO - E se o João da Cruz for à cadeia, sai de lá paralisado ou dentro de um caixão.
Ponxita respira fundo.
JOÃO DA CRUZ - Vim ter consigo para me retirar todos os males e arranjar-me uma proteção…
PONXITA - Proteção para que ninguém o prenda.
CURANDEIRO (mostra o valete de espadas ao lado de uma dama de paus) - Há uma rapariga que gosta muito de si, os pais dela também. Mas você não sabe. A mãe dela foi pôr um laço à sua porta para você pisar e ficar paralisado…
JOÃO DA CRUZ (boquiaberto) - Quem será?…
PONXITA - Pensa bem e verás!
CURANDEIRO - Ela disse que, como não serves para a filha dela, não servirás para mais ninguém.
JOÃO DA CRUZ - Jesus!…
PONXITA - Você não nos pode dizer quem é essa mulher?
CURANDEIRO - Isso eu não posso. A gente pode fazer tratamento e evitar que o mal atinja as pessoas.
JOÃO DA CRUZ - Ai se eu soubesse quem é essa nanprésta!
CURANDEIRO – Você tem um irmão muito perigoso. Muito cínico. Finge ser seu amigo, mas tem inveja de si.
JOÃO DA CRUZ - Qual deles? Eu tenho mais do que um irmão!
PONXITA - É o Txoné. Tenho a certeza que é ele.
CURANDEIRO - Nós não podemos dizer o nome de quem vos fez mal. Esse seu irmão faz você entrar sempre em sarilhos…
JOÃO DA CRUZ -Se calhar é o próprio Txoné. Ele é que me aconselhou a violar Helena.
PONXITA – Aaaaahn! Já estás a acreditar?
CURANDEIRO - Ele está com ciúmes porque você é o mais querido de um vosso familiar. Quer que você vá preso ou que morra para ele tomar o seu lugar na família.
JOÃO DA CRUZ - Meu Deus!…
PONXITA - Ainda bem que vieste à tempo.
CURANDEIRO - Agora vocês podem sair e esperem que vos chame novamente.
CLV CENA
Telefone toca sobre a secretária do Bodona, responsável partidário da zona.
BODONA (ao telefone, muito empolgado) - Fala do gabinete do Comissário, Camarada Combatente e Comandante BODONA. Bom dia!
CURANDEIRO (V. O.) - MEU SOBRINHO!
BODONA - Oi, tio! Como está?
CURANDEIRO (V. O.) - Sempre a andar, meu sobrinho. Estou a precisar de um favorzinho teu.
BODONA - Não há problema. O tio já sabe que não há nada que o seu sobrinho não faça por si.
CURANDEIRO (V. O.) - Então eu não sei?! Olha: temos um parente que teve uma guerrinha com mãe de filho… os milicianos estão atrás dele para o prender.
BODONA - Como é o nome dele?
CURANDEIRO (V. O.) - João da Cruz. Vê lá se fazes um jeitinho para o ajudar. O coitado tem filhos pequenos e mais uma mulher para dar à luz…
BODONA - Ok. Vou comunicar ao Chefe de Milícia e ao Comandante de Polícia para não mexerem com ele.
CURANDEIRO (V. O.) - Muito obrigado, meu sobrinho. Quando é que passas cá?
BODONA - Talvez este fim-de-semana… ou o outro.
CURANDEIRO (V. O.) - Quando quiseres passar, avisa-me de véspera, para eu mandar matar um capado. Traz aquele amigo… aquele senhor Juiz.
BODONA - Ah! É o Pedro Sabininha. Eu digo-lhe e vamos.
CURANDEIRO (V. O.) - Ok. Então fica bem e dá os meus cumprimentos à minha sobrinha.
BODONA - Eu dou. Diz à tia que lhe mandei muitos cumprimentos.
CURANDEIRO (V. O.) - E não te esqueças de ajudar o nosso rapaz.
BODONA - Fique descansado, tio. Não há problema.
CURANDEIRO (V. O.) - Muito obrigado. Tchau.
CENA CLVI
Curandeiro levanta-se e vai chamar João da Cruz e Ponxita. Na presença deles, ele deixa cair sete lágrimas de vela sobre uma folha de papel, depois de fazer sete cruzes sobre a folha. Junta sete pedaços de unha, sete fios de cabelo, um pouco de água benta e forra-os num pano preto, cosido com linha preta. Preso a um cordão preto João da Cruz amarra o amuleto à cintura.
CURANDEIRO - Não deve abdicar desta proteção nem quando vais para a cama. Só deves tirá-la quando tomas o banho, mas logo que acabares ponha-o de novo.
PONXITA - Ouviste bem? Só deves tirá-lo quando tomas o banho.
JOÃO DA CRUZ - Nem precisas me avisar.
CURANDEIRO - Não há nenhuma autoridade que mexe contigo.
PONXITA - Muito obrigada.
CURANDEIRO – Se se atreverem a mexer contigo, se arrependerão.
Ponxita e João da Cruz levantam-se.
JOÃO DA CRUZ - Quanto é o preço?
Há um Santo em cima de uma mesinha, entre garrafas e cruzes. Curandeiro tem uma corda presa ao dedão do pé, que vem escondida por baixo da mesa, desde o Santo onde está atada.
CURANDEIRO - Quem vai dizer o preço é aquele Santo ali. (Aponta o dedo) Chama-se Santo Pimpim. Vocês vão-lhe perguntar, a partir dos vinte escudos, e continuam de dez em dez. Enquanto ele não concordar, não faz nada. Quando achar que o preço é justo, cai de costas.
PONXITA - Pergunta-lhe, João da Cruz! (Para o Bruxo) Ele pode começar?
CURANDEIRO - De vinte escudos para cima.
JOÃO DA CRUZ (com olhos no Santo) - Vinte escudos… trinta escudos… quarenta escudos… cinquenta escudos… sessenta escudos… setenta escudos… oitenta escudos… cem…
CURANDEIRO (interrompe-o) - Hoje ele está zangado! A proteção que te fez será muito boa. Quando ele demorar em responder é porque a proteção é contra o ferro e contra o fogo.
PONXITA - Isto mesmo é que queremos.
CURANDEIRO - Agora pergunta-lhe de vinte em vinte.
JOÃO DA CRUZ - Cento e vinte… cento e quarenta… cento e sessenta…
Curandeiro puxa a corda sorrateiramente e o Santo cai de costas. Ponxita mete a mão no seio, tira a carteira, conta cento e sessenta escudos, dá ao Bruxo e despedem-se.
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