STRIBILIN (22ª Parte)
Cultura

STRIBILIN (22ª Parte)

CXVI CENA

Geraldina e Virgulino estão deitados, enquanto se conversam.

GIRALDINA – Virgulino, acho que devemos fazer um quarto para os meninos no quintal. Eles estão a crescer, já é altura de separarmos os rapazes das raparigas.

VIRGULINO – Tens razão. Por acaso já reparei que o quarto está a ficar pequeno, sim.

GIRALDINA – As meninas ficarão a dormir no quarto onde estão e os rapazes passarão para a despensa que vamos fazer. O que achas?

VIRGULINO – Acho boa a ideia. Seis crianças a dormirem no mesmo quarto… quando faz calor é horrível.

GIRALDINA – E não só. Badoku já tem 16 anos… Tchetcha vai fazer 14, precisam-se de respeitar a intimidade do outro.

VIRGULINO – Ainda se fossem só rapazes ou só raparigas… vá que não vá.

GIRALDINA – É verdade. Mas são 4 raparigas e 2 rapazes.

VIRGULINO – E a Tchétcha precisa mesmo de ficar longe daquele vagabundo do Badoku, mandrião e drogado.

GIRALDINA – Não digas assim. Seja como for, ele é nosso filho! Devemos é rezar e rogar a Deus por ele.

VIRGULINO – Eu não tenho tempo para perder, nem para estragar a minha oração com nenhum bandido.

GIRALDINA – Deus do céu lhe há-de dar juízo um dia.

VIRGULINO – Ok. Mas com esta crise que está… só se vendermos um dos nossos bois!

GIRALDINA – Sim! Podemos vender o Manquelo e ficamos só com o Onça.

VIRGULINO – Vou falar com o Luciano Brazão.

GIRALDINA – Luciano é explorador, mas ele deve dar-te uns trinta e três contos pelo Manquelo.

VIRGULINO – Vou pedir-lhe 35. Se ele me der 33 eu aceito.

GIRALDINA – Trinta e três contos são suficientes para fazer um quarto no quintal.

VIRGULINO – Compramos cimentos e pedimos ao Iveta que nos venha pôr três carradas de areia e duas de brita.

GIRALDINA – Eu vou pedir a minha irmã Giralda para deixar a nossa afilhada vir ajudar Tchetcha a encher água nos bidões. E tu fazes a despensa, eu compro os mobiliários. Vendo um bode, um porco e uma porca, compro uma cama «João da Cruz» e um colchão de «florinha».

VIRGULINO – Se Deus quiser.

GIRALDINA – Tu vais falar com o Luciano, vendes-lhe o Manquelo e trazes-me o dinheiro. Vou comprar cimentos e verguinhas na EMPA. Falo com o meu primo Tiba Lopes e vejo se ele me faz algum desconto. Ele é que é Delegado lá na EMPA!…

VIRGULINO – Pois é. Tibúrcio é teu primo.

GIRALDINA – Primo direito. A mãe dele é irmã legítima do meu pai. São filhos da mesma mãe e do mesmo pai. Morre um, senta-se o outro na esteira durante 9 dias. E veste-se de luto pelo menos 6 meses.

VIRGULINO – Podes ir tentar. Mas família de hoje é como a ferida na cadeira. Basta uma estar numa determinada posição, esquece-se que é família.

GIRALDINA – A minha família não é assim. Nós ajudamo-nos sempre um ao outro quando precisamos. (Ouve-se o galo cantar) Já são já seis horas?! Deixa-me levantar e tirar o milho da água para pilar e fazer cuscuz para quebrares o jejum antes de ires para o trabalho. (Senta-se e faz as suas orações) Tchetcha hoje já deve ter adormecido! Estou farta de lhes dizer para irem pra cama mais cedo, mas já apanharam o vício de todos os dias irem ouvir o Jaiminho de maria de Júlia a contar estórias, vão tarde para a cama e acordam também muito tarde.

VIRGULINO – Hoje saio mais cedo do trabalho e vou falar com o Luciano. Vou trabalhar até ao meio dia. Se ele se interessar em comprar o Manquelo, levanto-me amanhã cedo, mais ou menos às três da madrugada, levo-lho ainda a tempo no matadouro.

GIRALDINA – Em que turno vais estar pela semana?

VIRGULINO – A partir de amanhã até a próxima semana entro às cinco e meia da manhã. É por isso que vou ter que me levantar às três para chegar à padaria às cinco e meia.

GIRALDINA (acaba de se vestir e apaga a luz de um candeeiro a petróleo, assoprando-a) – Dorme mais um bocadinho enquanto preparo o pequeno-almoço.

VIRGULINO – Chama os meninos para irem buscar palha para os bichos.

GIRALDINA – As meninas também. A Tchetcha vem ajudar-me a pilar, Prisca e Remixa vão catar lenha. Ainda é cedo, irão conseguir muita bosta de vaca por aí na achada.

VIRGULINO – O Badoku não tem aparecido?

GIRALDINA – Nem sinal. Apareceu cá há mais de uma semana, com aquele cabelo enrolado que me faz tanto fastio dele… as calças na ponta do , que é uma vergonha!

VIRGULINO – Ele escolheu ser Thug!… Mas espero bem que nas minhas coisas ele nunca se mexe. Porque senão o Estado me vai dar de comer, e até o caixão me irá dar.

GIRALDINA – Aquele rapazinho herdou todo o podre de Punoi. Aquela bandida da Beluca deu cabo desses dois meninos com os ensinamentos que ela os trouxe de América!

Ela sai, Virgulino vira na cama e tapa a cabeça.

CXVII CENA

É de manhãzinha, ainda faz escuro. Giraldina puxa um bode e um porco pela corda e Bia puxa uma porca e debaixo do braço leva duas galinhas.

BIA – Como é que você conseguiu dar volta ao compadre?

GIRALDINA – Desde que Carlitinhos me fez aquele remédio… que me pôs aquela proteção no corpo… que também dei aquele cafezinho com água da tóbia ao seu compadre, ele passou a comer-me na palma das mãos. Carlitinhos amarrou-lhe a coleirinha aos meus pés para eu levá-lo a onde eu quiser.

BIA – Conte-me lá, então.

GIRALDINA – Disse-lhe que precisamos de fazer um quarto no quintal para os meninos, ele vendeu um boi e deu-me dinheiro para ir comprar cimentos, areia, brita e verguinhas. (Levanta a saia e tira uma paca de dinheiro da algibeira) Vou pagar ao Carlitinhos para poder deixar a porta sempre aberta.

BIA – E o que é que a comadre vai dizer ao compadre que fez com o dinheiro? Não vai comprar os materiais!

GIRALDINA – Agora é a comadre que anda a dormir na forma. Eu já abri os olhos. Cheguei à conclusão de que neste mundo, viver não custa. O que custa é saber viver.

BIA – Já reparei que a comadre já abriu os olhos até demais. Mas diga-me: como é que irá justificar-se, perante o compadre, de não ter comprado os materiais que disse que ia comprar?

GIRALDINA – Então para que serve o caço-bode?

BIANINA – Você está a dar-lhe caço-bode?

GIRALDINA – Não! Vou-lhe enganar que me deram a mim o caço-bode. Que fui assaltada, me levaram todo o dinheiro e o cordão de ouro que levava ao pescoço.

BIA – E o bode, os porcos, as galinhas? Como lhe vai justificar?

GIRALDINA – Dir-lhe-ei que um mal nunca vem só. Que quando se está com azar, come-se papa e os dentes caem.

BIA – Meu Deus!… Até já virou profeta a minha comadre! Quando se está com azar, come-se papa e os dentes caem. (Pensa um pouco) Ou é poeta que se diz?

GIRALDINA – Sei lá, se é poeta ou pateta! Veio-me à cabeça, saiu-me pela boca, mas não sei o que isso significa. Aliás, ela não é minha. Ouvi alguém dizê-la, mas já não me lembro quem foi.

BIA – Ok. Agora diga-me como é que vai dizer… ou melhor, o que vai dizer ao compadre que você fez ao bode, aos porcos e às galinhas?

GIRALDINA – Que quando me deram o caço-bode, levaram a carteira onde tinha as chaves. Que quando cheguei à casa, os animais não estavam no curral.

BIA – Para ele pensar que foram os mesmos que lhe deram gravata… oh, desculpe. Agora o que está na moda é caço-bode.

GIRALDINA – Pois. Antigamente dizia-se dar gravata.

BIA – Dar gravata era nos anos 70… 80, em Portugal, em que os rapazes-novos fizeram coisas! Depois que os Thugs começaram a vir repatriados da América, caço-bode tomou o lugar de dar gravata.

GIRALDINA – Esses Thugs! Não são para brincadeiras.

BIA – Vai dizer ao compadre que eles vos roubaram os bichos dentro do quintal?

GIRALDINA – Pois, claro! (Ensaia como vai fazer) Olha, marido: tomaram-me a carteira, roubaram-me todo o dinheiro e aquele cordão de ouro que a minha madrinha me ofereceu no dia do nosso casamento. A chave estava dentro da carteira, e como sabiam que eu estava longe de casa, se calhar, apanharam um táxi e vieram roubar as nossas alimárias.

Desatam-se às gargalhadas.

BIA – Você sabe quando é que eu me ri tanto assim?

GIRALDINA – Quando?

BIA – Quando a comadre me contou que no seu primeiro dia de trabalho, nem chegou a receber o seu cachê no Nhu Branquinho.

Põem-se a rir de novo.

GIRALDINA – Comadre!… Fiquei tão envergonhada… tão sem jeito, que nem tive coragem de pedir-lhe os meus 500$00 da parte do dinheiro que Virgulino lhe pagou.

BIA (depois de um histérico riso) – Então vai enganar ao compadre que os Thugs lhe deram caço-bode?

GIRALDINA – Que remédio, comadre?

BIA – Você é demais! Já não se lembra de pecados?

GIRALDINA – Pecado é não pagar ao Carlitinhos. Eu estou a dever-lhe… não tinha como pagá-lo… já não vou mais à casa de Nhu Branquinho… tenho que me desenrascar. Quem deve ao outro tem de pagar. Senão, é pecado.

BIA – Enganar e mentir para o seu marido também é pecado.

GIRALDINA – Mas é um pecado menor.

BIA – Pecado é sempre pecado.

GIRALDINA – Muito certo. Mas há uns que nos levam diretamente para o inferno, e outros que nos fazem passar primeiro pelo purgatório, quando acabarmos de pagar as nossas culpas voltamos para o céu.

BIA – Passar pelo purgatório é se nós nos arrependermos do pecado que cometemos.

GIRALDINA – Depois vou-me confessar.

BIA – Vai contar tudo ao seu marido?

GIRALDINA – A ele eu não vou contar nada. Acha que teria coragem? Vou-me confessar ao senhor Padre.

BIA – E vai contar tudo ao senhor Padre?

GIRALDINA – Tudo… tudo, não. Vou dizer-lhe que enganei o meu marido que os Thugs deram-me caço-bode.

BIA – E sobre Nhu Branquinho, Carlitinhos, aquelas filhoses com a água da tóbia… nada lhe dirá?

GIRALDINA – Nem pensar! Não estou maluca.

BIA – Então não vale a pena confessar-se. Não irá dizer quase nada!

GIRALDINA – Confessando uma parte do pecado o castigo já será mais leve.

BIA – Será mais leve, como? Não se devem fazer meias confissões.

GIRALDINA – Neste meu caso, a confissão por inteira seria uma imprudência. Confessando uma parte, quando eu morrer, vou passar uns aninhos no purgatório e volto para a glória do pai.

BIA – Ah, se fosse assim!…

GIRALDINA – Agora o que me preocupa é pagar ao Dr. Carlitinhos.

BIA – Até faz muito bem. Quem deve ao Carlitinhos e não lhe paga… arrepender-se-á.

GIRALDINA – E com toda a razão. Pelo que ele faz pela gente, se não lhe pagar, está no seu direito de fazer uma boa feitiçada contra caloteiros.

BIA – A comadre está a ficar mesmo mázinha!

GIRALDINA – Não é ser mázinha. Estou a ser justa. Simplesmente justa. Há muitos caloteiros por aí, que não só pensam que enganam todo o mundo, como também pensam que enganam o mundo todo a vida inteira.

CXVIII CENA

Num beco estreito, às escuras, as comadres são surpreendidas por dois Thugs encarapuçados, de pistola em punho e bem ganzados, falando num timbre estrangeirado.

OS DOIS THUGS – É um assalto e não gritem!

PRIMEIRO THUG (para Giraldina)Cash or body.

Encosta-lhe a pistola debaixo do queixo e retira-lhe os animais.

GIRALDINA – Não me mate por favor, senhor Thug! Pode caçar o bode, cace o porco, mas por favor não me mate.  

Bia assusta-se e não consegue falar. É-lhe retirado os animais.

SEGUNDO THUG (para o primeiro) – Dá-me os animais e vai revista-las nas carteiras, nos bolsos, nos seios, nas calcinhas e nas tranças do cabelo.

Giraldina dá um desesperado grito, leva um murro na cara e cai inanimada. Depois de tudo roubado, o primeiro Thug pega do telemóvel, recua e liga. Um Hilux com as luzes apagadas e sem chapa matrícula para junto deles. O condutor é Badoku.

BIA (vai para Hilux com braços abertos) – SOCORRO!

CONDUTOR (tapa a cara, sai do carro e põe a pistola à cabeça da Bia. Está bem drogado) – Cala a boca, vagabunda.

Dá-lhe dois pontapés no traseiro. Metem os animais no Hilux, arrastam Giraldina que continua desmaiada e metem-na no carro. Bia que já se encontra na carroçaria do Hilux, desmaia também. Os meliantes arrancam o carro e desaparecem.

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