Sequência do projecto Pátria Soletrada à Vista do Harmatão do poeta José Luiz Tavares. Continua ainda por Txonbon, lugar di biku do autor.
TXONBON
4.
[COLONATO]
Aqui, bosque da primeira dor, paraíso da perene alegria, embora dias de tristeza virão à casa sem portas e sem tecto. O vento que passa sabe o teu nome. Sabem-no as pedras e raízes, a poeira desde sempre, pois nela se mistura o espírito dos teus maiores. A brisa da baía traz a sua canção salgada para que te sintas desse mar que, vivo, revoluteia pela noite aleitando a insónia como se guardasse ainda os selos com os desígnios da promessa.
Ó colonato dos verdes de mil matizes, agitam-se agora em indisfarçado sépia as tuas inderrotadas casuarinas. A nós, falece-nos o ânimo que tantas vezes nos sentara na borda dos tanques, com os pés metidos na água turva de espessos limos, dando caça aos sapos, ou desfazendo a gelatinosa linhagem dos girinos. E porque sei da inutilidade dos rogos, que eu não me conte entre as padecentes bocas que agora lamentam as tuas indisfarçáveis feridas.
Onde a banana da pesagem e o leite popota, o feixe das tão temidas, tenras e vibráteis varas, de que tu eras o alegre municiador (embora isso te trouxesse dissabores durante o recreio, quando os sovados procuravam a sua impossível desforra), arrancadas ao viçoso aloendro (flor d’anju), escondidas estrategicamente atrás do armário de mapas ou da caixa de sólidos geométricos, ou mesmo atiradas fora aquando dalguma inspecção ou visita superior? Onde minda di kodje bitxu, agora que derruída é a antiga casa do conhecimento, mas josé ainda menino no mundo? Onde balixi i txoka, amigos-irmãos, dessa grande linhagem dos borges, fraternalmente desavindos se uma bola se interpunha pelo meio?
Impermeável a esse abismo que cresce dentro de ti é essa alegria pueril que te possui quando pensas nas conspirações do tempo, porque amas mesmo na ausência da razão de amar; porque sofres com o grito dos amargurados e a canga dos que de um hemisfério ao outro, atravessando terras e poentes, perseguem apenas os pergaminhos da vida digna. Por isso, de pé, debaixo dessa árvore antiga, limpas-lhes as lágrimas para o cultivo da esperança, mesmo se descrês ou vês perecer a pátria dos homens livres «na santidade do pecado», mergulhando orgulhosos as faces nas trevas que se avizinham.
Mas não julgues com severidade os teus e os seus actos, porque é setembro, tempo de inaugurações, e nas páginas desfolheadas dos livros abraças com determinação as meadas obscuras do destino.
Abraçaste o desígnio da escrita porque não tinhas mão para a enxada ou lombo para o fardo, e noite sobre noite reconstruías o universo ouvindo o grito das cagarras assolando os campos quietos da beira-mar. E assim subiste vida acima tal a estrela viva que nasce da terra escalavrada. E fizeste do amanhã esses sinais que se espalham direcção das nascentes e dos pináculos que acolhem a tua pulsão selvagem, pois provaste do mel do delírio e da água do encanto, e por isso proclamaste que a história é sempre o porvir, não o passado sepultado nos estratos da memória; por isso sabes que a tua paixão fará justiça, pois esta é a razão da tua fé na palavra, mesmo se inúmeros a conspurcam com dolo, para encobrir a mentira, ou a carregam de adornos para disfarçar o vazio.
Não perguntam porque gritas, ou porque segues direcção do fogo com a cólera nos olhos, porquanto sabem que te enternecem o suor e a solidão do homem, o voo das renascidas mariposas nos cerrados de setembro; porque sabem que te aleita o nevoeiro que desce trazendo presságios e assombrações, para te lembrar a tua juventude qual se hoje foras o fugitivo de ti mesmo.
Viveste para distinguir o amor da simples exultação, como a água cantando nas ribeiras a canção da reconciliação; para saberes que a paixão da dignidade é sem quebranto, mesmo se te deparas na presença do abismo, ou no caminho da montanha o nevoeiro impede a clara visão do destino.
Dizes-me que voltas para cheirares o odor a liberdade, para perseguires os instantes em que foste eterno entre as coisas. Eis, assim, a tua vida escrita na pedra, não a do derrotado que rumina em silêncio o sal do desterro, mas desse que partiu com o vento para saciar uma sede antiga, e agora sabe que apenas aqui nestas pedras e nestas leiras brota a potência que o preenche, seu sol de querença fundindo o teu coração a estes montes, a estes precários bosques onde cada perecível partícula é um princípio de ser, mesmo quando dormes no âmago de todas as tribulações e te assedia a sombra alta do perecimento.
5.
Tudo o que não pesava, pesa agora: as casas adormecidas ao golpe paciente da lestada, os galos tresmalhados errando a madrugada nos trilhos por que não voltarás, embora a tara da nacionalidade seja uma conta que te pesa diante dos cometimentos, lá longe, em pátria alheia, onde escreves o teu destino.
Será breve o consolo que te impões, porque a dor concreta regressa sempre, mesmo se pelo caminho da fantasia, embora adivinhes o regaço ou o manto que te não taparão dos pecados da soberba com que proclamaste, ainda na língua dos teus maiores, a excelência duma vida.
Um búzio ressoa na paisagem e a saudade é um barco varado a queimar-te as pupilas, à poeira informe que te recorda que o cósmico tem sempre a patine do que se engendrou no interior do homem. Mas sabes que para o paraíso não basta a beleza que ergues, esgrimindo em radical lance pelos poios onde paira a vertigem e nenhuma mão é a rede que te subtrai à certeza do despenhamento nos abismos onde a verdade é o terror que te impele, tu, guerreiro imemorial de um exército singular, e então abraças-te às tuas dúvidas, porque, do cabo ao horizonte, decerto o que te move é o escalavrado desígnio duma vida, que se não suspende ou alivia pelo rebentar das súplicas, nem pelos sábados de contrição ou pelos domingos de aleluias.
São tristes agora as montanhas guardando as achadas adormecidas. E porque filho do imemorial ribombar das trovoadas, sopras as telúricas cinzas com o teu alarido de homem que peregrina entre o padecimento e a ventura, e pisa, sem dúvida ou dolo, as peias que sempre espreitam o espigar da posteridade.
Embarcas de novo no nevoeiro rumo ao norte, mas tu não te esqueces dos lugares das domésticas aflições, dos pasmos na intermitência da prosternação, das faltas por que não cansarás de demandar perdão, mesmo se nada pesa ao teu espírito, porquanto o teu rosto leva por herança a história homologada nos terreiros de todas as pugnas, e a retribuição é esse pé ou essa mó descendo sobre a garganta na estação do espanto, para te dizer como o espírito ainda se incha de cólera para conjurar o jugo da mofinez que se espalha como um maldito pasto que desafia o orgulho.
(Nós homens da veneração hemos dito que não nos servirá a coroa que não inclina o nosso corpo para esta terra, e se resistimos ao baptismo do mérito é apenas para realçar o condão da fraternidade como um antiquíssimo elo que diz das peripécias nossas e dos distúrbios que a mediocridade planta à ilharga do êxito ou da multiplicação).
6.
Apagaram-se todas as candeias sob os tectos do mundo. Mas não é afã nosso desconvocar a tremenda escuridão que desce à terra, prenhe do que nos atemoriza e verga, e nos revela a nossa natureza de náufragos, mesmo se o mar sereno campeia agora nascituro nas estremas do colonato, ou sobe até aos valados da granja nova através da lagoa rasa, manancial de barbos e tainhas, fugindo da rede mal improvisada pela tua inabilidade piscatória.
Voltarás a falar dos anjos, das corujas e das cagarras, de nha bedja fitisera e de lobu ku xibinhu, para regressares ao desígnio simples de criança, à condição que desconhece a maldição do homem lançado ao mar da vida.
E vós, almas que teimais em não partir, e percorreis a estrada infinda do mundo, rezar-vos-ei um terço quando ninguém me puder escutar entre a poalha da primeira luz, pois não quero que se saiba que, mesmo descrendo, os lábios mergulham na farinha da tradição, e aos nossos mortos devemos, sem relutância, a veneração com o melhor que nos ensina a particularidade.
(Foi um capítulo da minha vida saber que aqueles que descem à terra jamais se erguerão; por isso bebei comigo, sem pressas, esta última taça e deixai que sejam as minhas preces a celebrar os vosso desígnios de naufragados).
Abraçai-me, irmãos, na certeza de que imprevisível é o tempo do homem, e os faustos inaugurais assinalam a vinda das estações insalubres. Não amontoaremos, idos companheiros, o que é parra para além de todo o crédito, mas saudaremos com a mão em concha esse rumor próximo do sortilégio que nos alça com seu ímpeto à benignidade protelada. Porém, dos vestígios dos maus fados não faremos a meada única que coze a nossa peregrinação. Confiaremos, contudo, no tempo como a saliva que sai da boca, ou a língua que diz que o que cresce no silêncio das achadas mantém com o tumulto e a periclitância o mesmo indissolúvel elo.
Tudo é grave, porquanto perdemos as contas da ingenuidade, e o que cresce por detrás do oblívio nada concede à hesitação ou ao nosso gosto pela descrença. Mas escreves aqui que amaste com a mesma tenacidade com que testemunhaste a agrura e o ultraje, essas peias que sonegam o valor e avivam essa duradoura tristeza amadurecendo no vão das casas pardas.
Embora madrugada ainda, desfolheias o longe nos seus estratos de silêncio e cinzas, e, tal numa anunciação benigna, resplandece o pico da primeira saudade. Então partes, porque absorveste o melhor que ensina a tenacidade, para não esqueceres nunca que o valor é a soma de todos os fracassos. Ou como diria Vário, o amado mestre nosso:
Se a dignidade é essa maneira de a alma
mostrar ao espírito o seu caminho sobre a carne, destapando-a,
misturando-o ao corpo,
para ouvirmos da mesma maneira a mortalidade, argila sumptuosa,
não iremos destapar também os nossos figos e os nossos ovos:
deixá-lo-emos amadurecer ou procurar-nos
lá onde a nossa sombra é tão despenhada
como o chão que nos recruta, porque véu dos nossos signos
ou o seu voto inacabado, sua metade
arrastada pelo perigo e a controvérsia.
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