Galgando hoje esses poios, numa faina temperada pelo entusiasmo, voltaremos a habitar o esforço da prosperidade, atentando nas várzeas e encostas regadas, mas reconhecendo a visitação do quebranto, quando os nossos olhos cansados se voltam para essas ruínas plantadas no itinerário da vasculhação, que é a razão dos nossos pés enterrados na terra seca, para reparação do que houvermos destapado com as nossas mãos mansamente imbuídas de mortalidade.
Prelúdio
Aqui começa a viagem. Parto para a invenção e o conhecimento do que há-de ser o meu país.
Subir as colinas do tempo, descer aos mares da memória. Ver nas faces dos seus habitantes, reais e imaginados, a suma sede de tudo. Cartografar a pátria dos homens puros na santidade do pecado. Divisar na escuridão a claridade que consola, e no fulgor da palavra viva a certeza de que sou eternamente livre. E na soberania do tempo o discernível sinal da mortalidade.
Com a palavra viva calar a voz do infortúnio, mas tornando tudo verdadeiro entre os prazos do esquecimento. Assinalar que a tarefa do homem é preservar a liberdade. Que criar a beleza é, assaz, a mais alta possibilidade de dominar o tempo. Que, em verdade, nada do que é essencial prospera longe da palavra. E que a vida só é curta se colocada no patamar ou na balança da eternidade. E que lavar e preservar a alma é tarefa da candura e da cordialidade. Que a terra não exige outra ciência que nos sabermos vivos e libertos, e apostados nessa árdua arte de durar, mesmo se te descobres na amargura do exílio, ou em fuga à fatalidade e suas vetustas meadas.
Aqui começa a viagem. E nosso unívoco desígnio de não cegarmos os olhos para quanto nos interpela, mesmo se repisamos a via dos predecessores ou tudo se torna insuportavelmente inenarrável. E se alguém te pergunta acerca do propósito da viagem, responderás que viajas para viajar, para encontrares o país inexistente, para renovares nas palavras as vidas dos despojados, para saberes se o itinerário te leva para além do cabo onde plantaste o coração.
Dirás da morte que adorna a vida fugitiva, porque sabe-la a mais fiel testemunha do arrojo e da comiseração. Se te perguntam de novo, de novo dirás que marchas com os teus pés leves de peregrino sobre a terra, na escuridão mais loquaz, e saltas como o vento nos penhascos por saberes que um tempo de perecimento virá, e não podes negociar com o tempo o teu destino.
Partes para voltares, porque o futuro é uma querença minuciosa, certamente lembrando a criança enferma na casa do luto e da ternura, por certo o surto da sarna recordando, ou acaso esse desalento que desmerece o dedal que se afinca a costurar as abas do porvir. Deste modo aprenderás o que é a vida para o homem, envelhecendo com fulgor bastante, inclinado para o tumulto ou a pacificação, à porta dos meses em que ronda o fervor profícuo, ou essa lassidão que não desemboca na renúncia, porque clara é a via que te faz remontar aos lugares do susto e da adoração.
Não repelirás os juízos temerários porque também a queixa é uma ferida violenta, e, dos lados ambos, talvez faça da falta o prelúdio à prosperidade. O soluço amargo nós o selamos com a decisão sublime de não entregarmos a alma aos tormentos angustiosos, nem esperarmos da boca de deus o trigo ou o joio da parábola, mas nos vastos campos de milho — ó horizonte das nossas perecíveis preces — sermos elos da renovação, porque fomos anunciados para instaurar a festa, mesmo se a falta for o mais conhecido dos condimentos, e, bem antes de nós, outros perguntaram — que é este alforge de enigmas aos pés das queixas surtas nessa cadência que soa à lentidão com que amiúde os homens narram as épocas de grandes faustos e dos maiores sustos?
Partiremos para indagarmos como se determina uma genealogia, mas não aguardaremos pela aprovação que não melhora o nosso pecúlio, herança ou febre. Repartiremos pelos dias o lume do entusiasmo e da candura, para que nos não visitem a vacilação ou o queixume. Sobre as feridas calcaremos a saliva do tempo como propícia poeira que assegurasse, à conta dos indícios, que o dano não é irreparável.
Partir por tantas veredas e caminhos, sem a desculpa dos padecimentos que nos pesam. E assinalar no início de cada trilho este rumo que escolhemos, e assim escapar ao espantalho da pequenez ou da periclitância. E sentados no degrau mais alto espalhar o pólen mais perene, para a consagração do que houvermos nitidamente visto com o olhar da imaginação, quando a apreensão da realidade nos pede o soberano prumo do mistério.
Não teremos, porém, a certeza se porventura o pasmo nos lavará a névoa dos olhos e a espuma das narinas. Se diante da fraqueza a grandeza encherá a nossa boca e os nossos ouvidos. Não saberemos, porque amiúde, ou sempre, duvidamos, porquanto grande é essa pátria do pânico e do desnorteamento, e não há fácil refúgio nem termo para o que recrudesce a nossa inquietação.
Haveremos de ler os sinais e os vestígios, os pasmos e as reivindicações desse povo que cantando aguarda a chuva que jamais chega. Esse que desfolheia a incerteza com o melhor dos augúrios, porque lhe é grata essa verdade vindoura: que também haverá descanso na tribulação, e para se dessedentar haverá sempre a escuma ou a névoa, que melhor se estendem quando a poeira fatídica palpa os vivos contornos da Pátria Soletrada à Vista do Harmatão.
Que caminhos escolher, se a perícia é essa frágil meada que nos não concede a segurança que pusemos nos vaticínios ou nos propósitos plantados entre as trevas? O que ficar por indagar constará entre as tomos do futuro, porque nesse tempo, pausadamente, palparemos, para melhor assinalar as fendas onde tropeçamos, o ancoradouro da chegada ou os páramos da partida.
Partiremos para sopesar as lendas e as histórias, até ao que remonta à cogitação mais íntima, por razão do nosso pacto, que é como a fome gorda que nos vara até aos ossos.
Partirás ao vento e à chuva que falta aos campos do teu país. Mas corrigirás no poema este descuido dos deuses pregando a bátega benfazeja sempre à cabeceira do teu poema. E, lá onde mais seu estrépito se ouvir, escutarás a voz da mãe chamando-te para dentro de casa, para te benzer com o fumo e a resina que te salvarão do naufrágio e outros padecimentos.
Partiremos peregrinando por essa estrada estreita em busca do melhor de nós, na tradição dos que compreenderam que nada nos manterá ao abrigo da ruína; adiando, porém, o tempo da queda, indo de póvoa em póvoa, acendendo esse fósforo antiquíssimo da fraternidade. Sentaremos como a ave de arribação nos penhascos e nos plainos onde se destila, debalde, a presunção do homem, mas partiremos com a primeira treva, essa promessa de luz concedendo-nos a clarividência que só a morte.
Partirei. Partirás. Partiremos medindo com o cordel que não consente a tergiversação o tamanho da linhagem — dos tavares aos borges, aos ferreiras e garcias — como se acaso a salvação não estivesse nos teus pés e na tua fé de peregrino, mas nesta aderência aos pactos, tão precários que amiúde indagarão as mães: quem sois, donde viestes ou que destino o vosso?
E nós também nos perguntamos: quem somos, que varremos o deserto para a sementeira da fraternidade, mesmo se a fraqueza é o que sobra do nosso fogo? Quem sois, pois, vós que descendeis donde sobra o êxtase e multiplica-se o arrebatamento, e não há decretos que digam que estais em falta na balança da fraternidade?
Partimos conversando com o nosso mestre (que tardiamente elegemos como tal) no quinquagésimo segundo ano depois do teu nascimento (quadragésimo quarto da soberania, quingentésimo quinquagésimo nono da chegada), com a determinação de que obraremos façanhas onde nos cerca o malogro, e repararemos a nossa fraqueza ora reafirmando os juramentos, ou escutando os provérbios e as canções, bebendo a água das cabaças, semeando para a esperança ou a deceção, com os nossos precários pés na vizinhança das tradições, que descobriremos como cura diante dos ludíbrios e das profanações.
No ano de tais efemérides partiremos para a ansiada safra, porque a promessa colhe-se no sopé do espanto, cavada a cova larga onde abunda a angústia, porque não sabemos, não sabemos nunca, sob que auspícios dispor os lastros e os signos, e não há viável socorro para aquele que nos intervalos do aplauso sabe que o seu labor é um contínuo caos, e os favores do tempo essa harpa que aguarda o prefácio desesperado da benevolência.
Traremos tal mundo para dentro dos nossos olhos, cônscios de que a perplexidade guarda sempre o itinerário da grandeza. Esse dom, nós o cultivamos na solidão do nosso cutelo, não aguardando por nenhuma chuva ou senha, mas fazendo-o descer pelos nossos débeis dedos, em arremetidas intermitentes, com a mais doce das determinações.
Partimos pelo ano em que a essoutra língua nossa (mas que outra?) dedicamos o melhor do nosso labor para resgatá-la do descrédito herdado, e vezes, com tumultuada tristeza, vemos amesquinhada por patética incultura, ou simples falta de brio de cidadania ou da identidade moldada entre os favos do vitupério, nos sopés amplos da arbitrariedade. E se tais destemperos nos atiram à cara, logo a nossa determinação nos ergue para o intento que não conhece fronteira ou pátria.
Porque não é pequena perda viver longe do poço e do forno, do carvão e da fuligem, do feijão e da chacina, do toucinho e da salmoura, da matança e da corta, do remo e da forquilha, da pá e da enxada, partiremos para melhorarmos a mitologia e dissecar a debilidade, com um ouvido em cada comarca, e assim entendermos a súplica e o sossego, a renúncia e a soberania.
Seremos hóspedes da cidadania mais exigente, mas forjando nossa própria escala de deveres, e não vendendo por nenhum crédito o que vivifica para além dos cânones, tal é a sua radicação entre as nascentes imemoriais. E porque assim geramos a nossa própria genealogia, arrancando aos signos que se amontoam no sopé da dúvida e da desolação o quinhão atravessado pela propiciação. E com tudo isso misturado nos nossos alforges – o destino e a glória, o pasmo e o arbítrio, a fraqueza e a audácia – partiremos.
Nenhuma tabuleta verás a indicar a pátria prometida, mas saberás sempre que chegaste quando o coração se sobressaltar ao açoite do harmatão ou a tua pele se tingir da tinta turva do sol-pôr. Então, gritarás os nomes todos dos lugares, para concluíres que ansiaste sempre a escuridão porque ela aleita a tua imaginação, que tudo te permitia ver, desde os contrafortes das alongadas serranias, às baías rasas onde sonhaste a beleza que se entreabre na face escondida de nenhures.
Partiremos, não receando a cortante erupção da língua, se ela se nos eriça para o escárnio e o escândalo. Mas bendirás a vida que te deram, o pão duro e a oração esquecida, e, por mais que penses no absurdo sem fim, há uma estrada que te conduz de novo entre altivas montanhas aos pastos onde prosperam a possibilidade e o presságio.
Partiremos ao assalto dos fortes da primitiva solidão, inventando latitudes e longitudes para situarmos o nosso lugar no mundo. E com a veemência da honra treparemos às gargantas, porque tanto nossa é a espessura do passado (com a primazia da honra sobre todas as virtudes), como nossos são os socalcos que nos alcandoram às meadas e às faldas do porvir.
Com a lupa da veemência peregrinaremos do pico à póvoa, atravessando pátios e plainos, detendo-nos pelos poios de névoas, onde a irreal quietude mais não é que um assomo da passada puerilidade. E, aí, nesses socalcos, tempo olharemos para as vertentes, descendo em espírito até às estremas das várzeas, por nos sabermos das covas desse mundo, e porque lá nos aguardam com as achas da fraternidade, a farinha da humildade e o fermento fruste solvendo de novo a carência disseminada.
Sopesaremos o ardor que se apossa da impertinência para dizer que nada devemos ao desalento, mas o que cresce viceja ao contrário dos vitupérios, plantados como uma sementeira funesta, que doravante vasculhamos para saber com que intrepidez acoitar as quimeras irrompendo entre as intermitências da indemnidade e suas vetustas sequelas.
Galgando hoje esses poios, numa faina temperada pelo entusiasmo, voltaremos a habitar o esforço da prosperidade, atentando nas várzeas e encostas regadas, mas reconhecendo a visitação do quebranto, quando os nossos olhos cansados se voltam para essas ruínas plantadas no itinerário da vasculhação, que é a razão dos nossos pés enterrados na terra seca, para reparação do que houvermos destapado com as nossas mãos mansamente imbuídas de mortalidade.
Por isso não nos declararemos impotentes diante da história, porque embora torrão exíguo e barro seco, fio fiado pela mão da falta, mais alta que toda a aflição é a certeza de que tudo o que escavarmos proclamará a nossa ascendência, ou instalará a profunda vertigem que nos atira aos sopés da reconciliação.
E se perguntam porque cantas, respondes que vês um povo debruço sobre o mar, a encender de alento o ramo e a raiz, a panela e a penúria, a poda e a colheita, o porvir e o soçobro, a paciência e o desatino, e porque são obras da cidadania o louvar e o increpar na livre nação dos homens agigantados crescendo como uma aleluia atónita.
Ah, honra, que não entangueces diante dos crimes do passado, mas remexes nas feridas porque nos foi dito que sempre o espírito acrescenta ao espírito, e um tempo há para plantar a grandeza ou semear o alarido com a incontinência da cólera, que bem sabemos da nossa índole, mesmo quando vigiamos a vasilha que se destapa, ou a irritação ganha espessura como farto fermento que embebeda nossa sede de equanimidade.
Eis porque choraremos também, e atiraremos à terra a lança e o punhal, se o abraço quente do sol nos afasta do estupor prematuro ou nos alivia da irritação que nos causam os padecimentos por que passam os filhos e os irmãos, os pais e os esposos, as mães e as madrastas nas periferias da nossa república.
Tais coisas pedem-nos o coração limpo, mesmo se as lágrimas fáceis da tristeza nos inundam o canto onde falamos de genealogia e juramentos, numa linguagem de sofreguidão, porque não faremos da peregrinação nossa um índice de apatia, nem esconderemos a punção da generosidade, inda o cansaço e o calor plantem o seu seixo como cruzes duma recorrente penitência.
Mas partirás escondendo as lágrimas, porque vais ao encontro do que amas, mesmo se na tua boca o teor das invetivas é um chumbo que lastra como as pedras que atiraste em amorosa contenda aos corvos da tua infância, nas vertentes onde rola a lestada sazonando a inclemência.
Falaste disso em tantos poemas que te libertaste do grito de ânsia acumulada nas estações da sede. Em silêncio, na estação em que a vida se afere pelo peso da falta, partes. Para indagares, sob os auspícios da partilha, o que jaz no coração das ilhas. Mesmo se nos avisam da corda da derrota a traçar o rasto à perdição, ou a contínua hesitação, fugidia certeza, entre se aquilo que auscultamos foi gerado antes do tempo, ou tudo é uma pobre aglutinação que não depende da nossa adesão de homem que roda pelas faldas estremecidas afastando em investidas de delírio os suplícios e os maus fados.
Que sabemos nós, ó parcas, da prudência quando sobre as nossas têmporas, pelas empenas da certeza, estala a inquietude, afinal, o nosso dilatado selo de homem?
Poderemos não ser desses adros ou desses montes, dessas charnecas ou dessas eiras que vigiam toda a transcendência, mas procederemos ao inquérito conveniente, com a língua que desconhece o comedimento, porque tudo nos há-de ser gozo, fúria, ou gozosa fúria, diatribe ou pasmo, desilusão ou gáudio, semeada a semente certa e volvidos nós outros ao solícito regaço da inquietude ou aos prodígios que obram a língua e os pés do peregrino.
Parto com as feridas todas abertas e o sal do tempo pingando sobre elas, mas o único consolo é inventar-te PÁTRIA.
Que as parcas nos não invejem o ímpeto e a ousadia com que ansiamos emoldurar nesta estação da nossa vida esta vocação que não hesita nem se detém diante da derrota inexorável.
Comentários