SEGUNDA PARTE
Levantado da ressaca
no junino e festivo umbral
de novas as-águas
pressagia a criatura
ainda aridamente cintilante:
Quando
se soerguer
da apatia da letargia e da prostração
e despido das vestes antropofágicas
de seu heterónimo, Lúcifer
(também denominado Diabo, Demónio,
Satanás ou, simplesmente, O Sujo)
Deus se erguer
como um arco-íris
entre o cieiro e a bruma seca
e
as plantas e as pedras
se inundarem de insónia
e
da memória dos tempos
da angústia e da solidão
da desolação e da secura
que incendiaram as almas
e
sob o frio olhar do pelourinho
transformaram
os ossos das gentes
em Sahel e Sul-Abaixo
- nomes recentes do Inferno -
e
transmutaram
em enxada da penúria
o insuportável e antiquíssimo
destino do corpo
sob
a miragem da cruz
e
gravaram
com o nome de Gessua e Gervásio
o silente chicote do martírio
Reencontrar-nos-emos
e
às efígies ancestrais de Adão e Eva
e à ousada tenacidade de Caim
reconciliando-se
com a alma limpa e solidária de Abel
em Cristo transfigurando-se
no olhar penetrante
do Homem da Achada Falcão
Amílcar chamado
pelos que lavravam árduos os dias
e
comungavam a suculenta hóstia das madrugadas
entre as brumas da Serra Malagueta
Reencontrar-nos-emos
e
às raízes
do sangue e do suor
dos séculos de dor e esperança
no ritmo do pilão
e
no poilão da sabedoria
em Txororó vivificando-se
tais corações de Lázaro e dos Valentes de Julangue
pelas mãos latas
fraternitárias
do Homem de Ponta Belém
em Cabeça de Carreira e na Assomada
como Mika abraçado e acarinhado
na Praia e no Mindelo
como Amílcar interpelado e seguido
na confidencialidade das cartas e de outras missivas
para os camaradas rebeldes
de Lisboa Luanda Paris e Frankfurt
como Abel Silva reclamado
em Bissau Londres e Conacry
no vasto mundo clandestino em luta
como Abel Djassi conclamado
em Madina de Boé
proclamado Herói do Povo
lume de ouro
festejado
entre
as flores defumadas
em fumo sagrado
consagrado
Pai da Nação Africana Forjada na Luta
O Mais Grande dos Grandes das Ilhas
entre
os risos orvalhados
perfumados
no mistério livre
da floresta e da noite, oh mãe!
Reencontrar-nos-emos
num tempo outro
sabido
sabendo-se nosso
inundando-se
das palavras da profecia
desferindo-se
sobre a carne agrilhoada
da terra e da desgraça
Reencontrar-nos-emos
Abel de Adão e Maria de Magdala
Adão de Deus e Judas de Cristo
Abel de Iva e Caim de Eva
Jesus de Maria Eva da Serpente e Maria de José
redimidos no regaço da Pietá
e no seu rosto
desenhando-se
escuro
na fisionomia islenha
da mãe idolatrada
da mão companheira
presentes em cada manhã
sobrevivente ao umbigo inicial
para sempre enterrado
na comunhão da terra com o nunca mais
ausentes da morte
lacrimejante esculpindo-se
no derradeiro sorriso germinando
na interpelação aos traidores
no rosto clamoroso da mulher
a um tempo Eva e Iva
no rosto choroso da mulher
Mater dolorosa Maria inconsolada
longe da noite de Conacry
no rosto amoroso da mulher
a um tempo Ana e espanto
na noite pressaga de Conacry
no rosto doloroso da mulher
a um tempo Ana e pranto
na noite liquefeita de Conacry
no rosto poroso da mulher
a um tempo Ana e Maria
na noite varada de Conacry
no rosto desfeito fulminado da mulher
a um único e duradouro tempo
incandescente perdição do olhar
na irremediável noite de Conacry
nos rostos resolutos nos rostos crepitantes
das Awas de todas as lutas
a um tempo certos e leais
odiados e alvejados
nos rostos comatosos nos rostos enlutados
das Munanas das ilhas
a um tempo precoce
desespero e saudade
nos rostos indagadores nos rostos divagantes
das Donanas das ilhas
a um tempo inextinguível
orfandande e viuvez
nos rostos espantados nos rostos interrogativos
das Munturas das ilhas
a um tempo compacto e infindo
desafortunada desventura
nos rostos perplexos nos rostos firmes
das mulheres do mundo
a um tempo cicatrizado
miraculosa germinação
da semente da fraternidade
fecundação e procriação
das flores da liberdade
Reencontrar-nos-emos
e
à nossa obsessão do verde
- nome edénico da paz -
e
à nossa saudade
da Atlântida
das Hespérides
da savana e do baobab
do zion train
e
dos vários imaginários
do sonho e da viagem
em torno do paraíso das águas
ou
simplesmente
de um cabo de um lugar verde
onde
descansar possamos
das atribulações da escassez e da carestia
da esquizofrenia de Deus
da tentação de Satã
da possessão do Demo
e
pensarmo-nos
e
assumirmo-nos
como criaturas decentes e dignas
sob o olhar finalmente compadecido
da lonjura fraterna da terra prometida
da distância próxima e tacteável
de uma outra terra dentro da nossa terra
da Ilha de todos os Poemas
Pasárgada
de carne e espírito saciados
Reencontrar-nos-emos
pardos e castanhos
estonteantes e incrédulos
e
limpos dos antigos alaridos
regressados
à verde e líquida memória do ébano
ao antigo lugar do exílio e do desterro
situado entre o Rincão e o Monte Negro
ou algures
onde nos seja possível
perscrutar Adão e Eva
e partilhar dos frutos
do seu éden pétreo
do Pico de António
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