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Estórias e comportamentos dos bichos 5
Cultura

Estórias e comportamentos dos bichos 5

CAPÍTULO SEGUNDO

CHINÊS VERSUS SANPADJUDU

(Segunda parte)

Sentindo-se cortejada, a Macaca abriu a boca e exibiu a sua amarelada dentuça, antes de aguçar os negros beiços e trocar um telepático beijo com o marido, em gesto de agradecimento. Não suportou ficar indiferente e não coadjuvar o marido na enumeração dos atributos e imperfeições que os diferenciavam dos Homens-Bichos.

– Conforme disse o nosso Rei, a nossa casa fica nas côncavas lapas das íngremes e sorumbáticas rochas, sem portas nem janelas. Não temos rádio nem televisão, nem luz elétrica nem água canalizada. Não aquecemos a comida em microondas e as sobras não vão para o frigorífico. Aliás, nunca há sobras.

Sem pedir licença e muito revoltado, o deputado Macaco retomou a explanação para concluir o raciocínio e reiterar as teses da querida esposa e mãe dos seus belos macaquinhos:

– Não temos telemóvel, nem computador, nem Internet. Não vamos ao teatro, nem ao cinema, nem aos estádios assistir aos jogos de futebol; os nossos filhos não podem ir à escola porque seriam chacoteados pelos alunos que julgam serem melhores do que eles; seriam perseguidos, agredidos e vítimas de bowling pelos patifes Cachorros que, contra nós, nutrem uma implacável antipatia; não teríamos dinheiro para lhes pagarmos as propinas que custam os olhos da cara; nas Universidades estrangeiras não conseguem estudar porque, não só, não lhes concedem vistos, como nunca lhes irão dar bolsa do estudo como dão aos filhos dos Ministros, Deputados, Diretores e Chefes de Serviços, Professores, eleitos Autárquicos e PCAs das Empresas ditas mistas como as TACV em que o Estado cobre os prejuízos com milhões no final de cada ano; nem aqui na UNICV, na Jean Piaget, na UNICA, na Lusófona, na ISCEE, na Santiago ou na FaED, eles conseguem estudar porque as propinas são avultadas e a nós não arranjam trabalho nem nas Frentes da Alta Intensidade de Mãos-de-obra a que chamam FAIMO. E o valor da propina é superior a um mês do salário que o Chinês paga às suas empregadas.

O Chinês levantou o dedo para Leão, mas este estava tão enlevado a ouvir o deputado Macaco, não se apercebeu do chamamento do asiático de olho rachado. Então o Chinesa quebrou as regras. Levantou-se furioso e colocou numa posição como se iria executar uma katá-em-cruz e replicou:

China paga balato, mas paga xemple. E tem muita gente no tlabalho.

Leão olhou para ele com um esfuziante olhar, meditou-se e em seguida virou para o deputado Macaco e ordenou:

– Podes continuar.

Mas quem prosseguiu foi a deputada Macaca:

– Os seus filhos já têm emprego reservado mesmo antes de terminarem o curso.

– Mal se matriculam nos cursos, os pais ou parentes próximos dos políticos lhes fazem encomenda e reserva do emprego – reforçou deputado Macaco.

– À escolha e com salário de bradar aos céus – concluiu deputada Macaca.

– E em pouco tempo já têm casa própria, com vista para a Praça e jardins circundando; carros topo de gama, moto-quatro e, para o mundo inteiro viajam sempre e «na kakusta» [à borla].

– Conforme cantou Legemia: «Es ta bira finu» [Tornam-se finos, soberbos, importantes] – rematou Macaca.

– E os nossos filhos, mesmo terminando o curso com boa média, o destino condena-os a continuarem a morar connosco lá pelas lapas da Cumba ou do Porto Mosquito, sem condições para adquirirem nem uma simples bicicleta, um triciclo ou trotineta – lamentou Macaco.

Perante essas inconvenientes verdades, o deputado Macaco e a sua prestimosa esposa não podiam ficar entuchados, mesmo que os acusassem de chatos e de monopolizadores das intervenções. Seriam extremamente sádicos se ficassem calados perante tantas acusações malévolas e malfadadas que contra eles estavam sendo desferidas. Então o eleito Macaco continuou:

– Nem um Vicente, os nossos filhos conseguiriam comprar. E sabem porque é que nós não temos essas mordomias? Que não temos um carro, nem um Starlet, por exemplo?

– Porque os Macacos não sabem conduzir – respondeu uma Borboleta de asas coloridas, eleita para representar as restantes.

– Cala-te – ordenou deputado Macaco um pouco abezerrado. – Não temos nada disso porque não somos ladrões. Não roubamos para depois nos virmos armar em importantes.

– Então por que é que roubam? – questionou a eleita de asas de várias cores.

– Malha a tua língua e modera o teu atrevimento, indolente. Nós não somos aldrabãozecos. Só quando estamos com fome, isto é, com muita fome, é que observamos bem se nenhum patife do Cachorro está por perto e que nos possa apanhar em flagrante, com muita cautela, entramos rapidinhos, subtraímos com prudência e o necessário para comermos na hora.

A maioria dos bichos presentes deu razão ao deputado Simão e, por sua vez, o Leão corroborou. Ele também havia sido perseguido e, na perceção dele, injustamente. Pois, a Organização Internacional Para os Direitos dos Bichos e a Amnistia Internacional tinham posto a circular nas redes sociais como: Facebook, Viber, Twitter, WhatsApp, Messenger, Instagram e Youtube, um abaixo-dedo-na-tinta, solicitando ao TPIB – Tribunal Penal Internacional dos Bichos – que o prendesse e procedesse ao seu julgamento pelo crime de lenocínio. Estava acusado de matar e comer Cabra-Gazela e, até o Búfalo que é muito maior e mais forte do que ele. A Interpol tinha em sua posse um mandado de captura para o deter e fechá-lo no calabouço onde quer que o encontrasse. O mundo inteiro tinha decretado sanções contra ele, interditando sua presença nas cidades. O único lugar onde ele podia permanecer e, inclusive, mandar, era nas matas, mas de olhos bem arregalados. Para viajar a Cabo Verde utilizou um passaporte com nome falso, depois de se ter submetido a uma cirurgia plástica, adulterando a fisionomia. Mesmo assim, ofertou uma grande quantia de dinheiro aos Polícias nos Aeroportos que nem chegaram a abrir o seu passaporte misto: de Serviço e Diplomático.

– Tens razão – disse Leão. – Enquanto vos chamam “Macacos” e arrastam esse enorme rabo por trás, nenhum Bicho confiará em vocês. Por onde passarem vos soltarão seus Cães.

– Felizmente ainda não disseram que somos bruxos. Que temos lume no traseiro ou que voamos numa vassoura. Apodam-nos de rabo comprido, mas por bruxo ainda não nos tratam.

Questionou Macaca, pelo que leva a eleita Borboleta a opinar de novo:

– Na vossa cara podem não dizer nada. Mas pelas costas, sabe-se lá o que não dizem?

– Nas nossas costas podem dizer o que quiserem. Costumo ouvir que «Olho que não vê, coração que não chora». As nossas costas são largas e mais abaixo temos um tanque bem fundo.

A deputada Balambuta, detentora de uns olhos disformes, cuja órbita lhe ocupa quase toda a cara, como se fosse parente chegado do Sapo, Crocodilo ou Jacaré, aconselhou-o:

– Se puderem evitar… convém fazê-lo. Os Macacos devem evitar certas bocas.

– Fazem isso por abuso! – respondeu Macaco, nitidamente aborrecido. – Os Homens-Bichos roubam que nem ratos, ninguém lhes diz nada. Nós desenrascamo-nos para não morrermos à fome, todos nos apontam o dedo, e nos chamam ladrões! Isto é injusto!

O deputado Rato, que estava metido num buraco, completamente acantoado, deixando apenas os olhos de fora para mirar uma fatia de queijo que se pousava à beira do deputado Gato, contradisse, um pouco arreliado, o deputado Macaco:

– O que é que queres dizer com esta frase? «Os Homens-Bichos roubam que nem ratos». Quando é que os Ratos te roubaram? Seria melhor se fosses cuidar da tua vida e deixasses o nosso nome em paz!

– Perdoa-me, deputado Rato. O que eu disse foi apenas um ndemo, comparação de conversa [um exemplo da comparação de conversa]. Na verdade, não vos chamei ladrões propositadamente. Longe de ser essa a minha intenção – o deputado Rato quitou-o e ele prosseguiu. – Os Homens-Bichos roubam até a si próprios. A momice lhes estão embrenhada no cerne.

Aí já o Leão não foi muito comedido com o deputado Macaco. Pois, Nada é o que era. Pode ser, sim, o que já foi. Mas o que era… nunca. Portanto, as conjeturas do deputado Macaco constituíam uma ofensa grave e lesiva ao bom nome dos Homens-Bichos que, desde há muito se reconverteram em não-macacos. Tanto que até ficaram desprovidos da enorme cauda que arrastavam por trás.

– Os Homens-Bichos já não são mais macacos. Foram-no, num passado bem longínquo. Mas agora se evoluíram e respondem-se pelo nome de Homens-Bichos. Deixaram-se de andar à macaquinha e passaram a andar sobre dois robustos membros inferiores.

– Evoluíram sim. De não sei o quê para Macacos! Agora é que são macacos.

Como se a intrusão sem autorização se tornasse num cliché, a deputadinha Abelha inferiu:

– Acho que o colega deputado Macaco tem razão. Os Homens-Bichos são atrevidos, apáticos e parasitas. Atacam-se uns aos outros com armas e surripiam o que lhes não pertencem. Nós somos reiteradamente vítimas das suas pérfidas sevícias.

– Com que arma é que eles vos costumam atacar? Arma branca ou outro tipo?

– Com arma vermelha.

– Arma vermelha? Isso existe, deputada Abelha?

– Existe, sim. Ateiam fogo nas nossas colmeias e matam-nos a todos. A mim, aos meus filhos, até ao meu marido Zangão, que por acaso é preguiçoso.

O deputado Fonfom estava na cumeeira, ao lado da Abelha, metido no buraco de uma cana, bem caladinho, com o queixo encostado ao peito. Conhecia Zangão muito bem e sabia o quão preguiçoso ele era. Olhou para o lado e segredou ao ouvido da deputada Abelha:

– Pra Zangão está bem feito. Devia morrer sozinho. Molengão, só sabe comer e dormir!

– Cala a boca, seu burlão e falsificador de mel. Mesmo sendo ele um mandrião e preguiçoso, jamais lhe desejaria uma morte daquela forma. Afinal, ele é meu marido!

– Tens razão – disse Leão. – O deputado Fonfom está a ser muito extremista… muito radical.

– Também acho – aquiesceu Abelha.

– Vê-se que se converteu àquela religião. Naquela que promete aos jovens, quando irem ao Céu, sete virgens para desflorarem, quanto maior número de Homens-Bichos conseguirem sacrificar numa ação suicida.

Todos se riram, inclusive o deputado Fonfom.

– Camarada Leão – retomou a deputada Abelha o fio à meada – os Homens-Bichos ateiam fogo nas nossas colmeias, roubam o mel que produzimos e vão vendê-lo a um preço astronómico.

– Também, Deus vos pague – disse deputado Fonfom. – Dão-lhes cada ferroada!

– A nossa mãe pariu-nos cegos – aquiesceu e concluiu a deputada Abelha. – Então não ficaram com medo de nós?! Desgraçados foram inventar trapiches e fornalhas, agora fazem mel por conta própria. Mas o mel deles não se compara, nem de perto nem de longe com o nosso. O nosso dá saúde e faz-se crescer. Eles estão armados em espertos. Fazem-nos lembrar Fonfom.

– Lembrar Fonfom… como? – Quis perceber o Leão.

– Fonfom pediu-nos que lhe ensinássemos a fazer mel, mal começou a cagar doce, disse que já sabia e que não precisava da nossa ajuda. Deixamo-la e ficou só com a caca doce.

Até aí, o deputado Fonfom que estava cooperante e do lado das Abelhas, acabou por perder a confiança e chamou a atenção à deputada fazedora de mel:

– A que propósito vens dizer isso aqui? Perguntaram-te? Gente burra pá! Vives ainda no tempo em que se falava sem olhar para o lado, que se roía [Falar mal de outrem nas suas costas] a carne em cima dos ossos.

– Então é mentira?

– Mesmo que não fosse! É aqui no parlamento que vens colocar um assunto destes? Um assunto meramente pessoal, comercial e de caráter sigiloso?

A deputada Abelha deu a mão a torcer e teve a hombridade de pedir desculpas ao colega, jurando-lhe que nunca foi sua intenção humilhá-lo. E o eleito Fonfom acabou por aceitar o pedido de desculpas, pese embora, ter-lhe dito que o mal já havia sido feito e que as consequências eram irreversíveis. Que já nem se quisessem vender o mel que produziam, ninguém o comprava porque a colega havia dito para todo o mundo que o seu mel não era genuíno, mas sim, uma réplica da caca melificada. Que a rival estava a fazer publicidade difamatória contra o seu produto para poder vender os dela. E que aquele ato se configuraria numa infração denominada de concorrência desleal, punível pelas leis reguladoras das atividades económicas, ou seja, ARE – Agência de Regulação Económica. A eleita Abelha, entretanto, assumiu meia culpa e pediu meia desculpa.

– Posso até admitir que errei, pela forma e no local em que fiz a denúncia. Mas qual é que o colega preferiria? Publicidade que considera difamatória sobre o vosso mel-caca que coloca em perigo a saúde pública e viola de forma drástica e flagrante as diretrizes da OMS – Organização Mundial da Saúde –, ou publicidade enganosa, como querias fazer, vendendo caca dulcificada por mel aromático e nutritivo como o nosso?

– Não é da tua conta. Tu não o ias comprar de certeza!

– Mas isso é gatunagem, seu aldrabãozeco, falsificador de mel – refutou Pitbull Norte-americano.

– Aqueles então que vendem gato por lebre? Que vendem sebo por banha de Cobra? Que traficam drogas, raptam crianças e sequestram mulheres? Os que planeiam assaltar Parlamento e sequestrar deputados? Que vendem o país ao desbarato e cobram taxas aos nacionais para entrarem no próprio país, enquanto aos brancos não carecem de Vistos porque legalmente as portas lhes estão escancaradas? Que protegem criminosos e muitas vezes a eles se aliam para que ganhem as eleições? Porque ninguém os persegue?

Perante essas incriminações, o Pitbull Norte-Americano apresentou e exigiu a introdução de mais uma adenda à Ordem-do-Dia, exigindo a que fosse introduzido uma proposta de lei denominada «SOFA», onde, sob a jurisdição penal dos Estados Unidos, os gatunos, aldrabãozecos, falsificadores e incompetentes para exercício de certos cargos, pudessem ser recambiados para os Estados Unidos e serem aí julgados, com consequências de levarem uma injeção nas veias e dizerem Adeus a aldrabices, gatunagem e falcatrua na inserção de falsidade nos processos, evitando a prescrição deliberada dos mesmos.

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