Casa Cabo Verde, em Londres. Encontro /Convívio – “A minha escrita”   
Cultura

Casa Cabo Verde, em Londres. Encontro /Convívio – “A minha escrita”  

Desde muito cedo, passei a escrever as minhas reflexões sobre a vida e o decurso do quotidiano. Considero que escrever é a minha missão. Escrevo como contributo para deixar o mundo um pouco melhor do que aquele que encontrei e no qual vivo. Donde me vem a força para realizar esta missão? A força que tenho vem do canto, das lágrimas, da oração, da escuta e do silêncio. Sempre foi assim. Hoje em dia já não consigo chorar… Mas carrego comigo a coragem e o entusiasmo para enfrentar a vida e seguir em frente.

Permitam-me que, antes de falar da minha escrita, fale um pouco de mim.

Sou do interior de Santiago, carrego comigo a marca de solidariedade

A minha infância em Boa Entrada, passei-a aprendendo com o Poilão, a imponente árvore que domina a paisagem da região, de certo modo, símbolo do povo da ilha de Santiago que, apesar das contrariedades e vicissitudes porque tem passado, permanece de pé, firme e hirto em cada uma das suas mulheres e dos seus homens.

Uma das características das gentes do interior de Santiago, é a solidariedade. Muita gente passaria muito mal, não fora a cultura do “djunta món”.  Mesmo não falando em situações extremas, a hospitalidade é cultivada com naturalidade na relação das pessoas umas com as outras. Com que alegria se abre a porta da casa, se oferece dormida ou se partilha a refeição, mesmo com pessoas que não são da família. Este espírito solidário reforça-se nas festas, como é o caso dos casamentos e batizados, e nos momentos de dor, no luto e nos funerais. Somos um povo a quem a vida ensinou a solidariedade e a hospitalidade como forma de suavizar as próprias circunstâncias de uma vida difícil. Aquilo que aprendeu, não esquece… continua a ser solidário quando emigra… são muitas as provas dadas!!!

A minha formação académica

Tinha 6 anos quando ingressei na Escola, em Gil Bispo, uma aldeia perto de Boa Entrada. O secundário e o Liceu, fi-los nos Liceus Amílcar Cabral, da Assomada, e Pedro Gomes, na Cidade da Praia.

No Secundário, as disciplinas em que tirei as melhores notas foram Filosofia, Direito e Psicologia. A paixão pela Filosofia ganhei-a com Platão, Aristóteles, Nietzsche e Kant personagens cujas teorias me fascinavam.

Na Universidade Lusófona, já em Lisboa, licenciei-me em Ciências da Comunicação e da Cultura, variante jornalismo. Deixei-me levar pelo coração…teria gostado ser padre, mas como isso não se proporcionou, escolhi o jornalismo com o objetivo de vir a ser pivot. Se tivesse de escolher agora, teria enveredado pela área do Direito, já que se tem afincado muito em mim o sentido da justiça:  dar a cada um o que lhe é devido por direito, sem descriminações… acredito que daria um bom juiz! Tenho uma natural propensão para ajudar e defender a causa dos que mais necessitam.

Não se pense que estou arrependido do curso que tirei… aliás, no Mestrado, em ciência política, que fiz também na Universidade Lusófona, tudo se conjugou: o jornalismo deu-me capacidade interpretativa; a ciência política estruturou-me o pensamento, deu-me a capacidade crítica, ensinou-me a pensar, proporcionando-me uma visão aprofundada e aprimorada das situações e dos acontecimentos.

É assim: com esta simplicidade com que falei de mim, assim escrevo…

A escrita relaciona-se, as mais das vezes, com as vivências de quem escreve. Por isso ela é singular, caracteriza o autor, o define na sua interioridade e na sua relação com os outros e com o mundo, enquanto pessoa. A minha escrita reflete a minha mundividência e as minhas vivências. A minha mundividência foi ganhando mundo, reconheço, mas o meu olhar sobre o mundo e sobre as coisas é ainda, no essencial, aquele que trouxe de cabo Verde. As vivências, cada vivência é única, na sua perceção e no sentir, tanto na forma como se sente como na intensidade daquilo que se sente.

A maior parte das vezes, quando escrevo, em verso ou em prosa, procuro transportar nas palavras escritas o que vi e vivenciei em Cabo Verde desde a minha infância.  A minha escrita carrega a cultura de um povo que faz parte da minha identidade. Reflete a esperança de um país em desenvolvimento, é a voz da urgência de ter uma maior visibilidade, de ser mais falado e conhecido, do protagonismo das suas vivências, dos seus anseios. Uma voz com pouca ressonância e por isso pouco ouvida, mas a voz que tem a autoridade de quem ama e procura a verdade.

Para se ser poeta, costumo dizer, basta ter sensibilidade, um coração que ama e uns olhos que contemplam na profundidade. A riqueza reside na singularidade da vida, na ousadia, nas causas que nos movem e que levam alguns a acusar-nos de ser diferentes. Reconhecendo que sou uma pessoa calorosa e cheia de emoção, considero que a minha escrita transmite uma atitude positiva perante a vida, é como que um apelo à transformação do mundo que nos rodeia. Parto das vivências, das tradições, da realidade quotidiana, tenho a pretensão de, na minha escrita, fazer memória das vivências, valorizar aquilo que nelas há de positivo e apelar à mudança daquilo que deve ser mudado.

Já escrevi muitos textos e muitos poemas, alguns publicados aqui ou ali. Mas livros publicados tenho dois, ambos de poesia. Convites como este da Casa de Cabo Verde em Londres, honram-me muito pois são sinal de que há pessoas que reconhecem algumas qualidades em mim e alguma qualidade na minha escrita. São também um incentivo a escrever, embora para escrever, não precise de grandes incentivos… a minha escrita é a minha vida!

Voltemos ao “fio condutor” daquilo que escrevo… Para escrever – como certamente todos os que fazem a extraordinária experiência da escrita – preciso de um ambiente que seja inspirador. Cabo Verde é, sem dúvida, a minha inspiração. O livro “Firme e Hirto como o Poilão” é uma reflexão poética sobre Cabo Verde desde a independência até aos dias de hoje.

A escrita é uma forma nobre de intervenção que só será coerente quando agarramos com ambas as mãos o nosso destino e tomamos uma decisão sobre o caminho que queremos trilhar. O contrário é o marasmo, a pasmaceira… como no tempo da dominação colonial: quanta degradação, quanta miséria, anos e anos de atraso que urge continuar a recuperar.  

Intervir é ter voz para nos fazermos ouvir sobre as nossas coisas, a nossa cultura, os nossos sentimentos, a nossa idiossincrasia pessoal e comunitária.

Há muita gente com a pretensão de falar de nós e por nós, porém devemos ser nós os protagonistas… será que alguém nos conhece melhor que nós próprios nos conhecemos? Será que alguém, melhor do que nos, conhece os nossos anseios?

Um pouco à semelhança do que aconteceu no “Para além do Mar”, o meu primeiro livro, também no livro mais recente, “Firme e Hirto como o Poilão”, discorro sobre importância da chuva para sobrevivência tanto espiritual, como material, de Cabo Verde. Outros temas: a seca, a morna, o mar, a nossa bandeira – símbolo da nação - as cidades da Praia e da Assomada, a ilha do Sal, o monte Pico de Antónia, a emigração, a poesia e os poetas, o batuque, Cesária Évora, o desaparecimento de crianças, a Cidade Velha e Boa Entrada, onde nasci, com o seu imponente e majestoso poilão, inspiração e título do segundo livro.

Gosto da caminhada ao ar livre, nos prados verdes ou na montanha, para sentir o cheiro da terra e apreciar a beleza e a harmonia da mãe natureza. Porém, mais ainda, me deleita estar parado, perto ou de longe, a olhar o mar. O mar desperta em mim atitudes de prostração, adoração, leva-me à oração. É fascinante todo o mistério que as suas ondas ocultam. O meu primeiro livro de poesia - “Para além do Mar”, diz bem quanto o mar é para mim fonte de inspiração.

A minha relação com a leitura

A minha relação com os livros começou em casa. Embora a minha mãe não saiba ler nem escrever, o meu pai estudou na Escola até à quarta classe, mas é um autodidata. Tinha uma quase veneração pelos livros que conservava como obras de arte, numa vitrine. Mas não eram objeto de decoração… ele lia-os e, quando tinha paciência, lia para nós trechos vários. Ainda muito pequeno, gostava da sua entoação, e, sobretudo, das gravuras coloridas… eram o meu encanto! Naquele dia, por qualquer razão, o meu pai se esqueceu de fechar a vitrine e eu tive acesso ao livro das gravuras coloridas… peguei numa tesoura e recortei as gravuras que considerava mais interessantes para colar no meu caderno de escola e mostrar para aos meus colegas. Quando me dei conta que tinha estragado o livro, coloquei-o cuidadosamente no seu lugar e fugi. Curiosamente, o meu pai que nos educava com uma certa rispidez, nunca tocou no assunto e eu fiz o mesmo.

Penso que este contacto com os livros do meu pai e o modo exigente como nos obrigava a cuidar dos livros da Escola, despertou em mim o gosto pela leitura e o desejo de vir a ter uma biblioteca. Logo quando entrei para a Escola Primária, o meu pai comprou-nos uma gramática da língua portuguesa o que foi também uma boa ajuda na iniciação à escrita. Assim como tinha de decorar a tabuada, o mesmo acontecia em relação á conjugação dos verbos.

Os vizinhos pediam-me para a escrever cartas aos familiares emigrados…

Alguns dos meus vizinhos começaram a pedir-me que escrevesse as cartas que queriam enviar para filhos e afilhados emigrados em França. Ditavam aquilo que queriam dizer por carta aos seus familiares; depois era eu quem lhes lia alto aquilo que tinha escrito para que cada um visse se correspondia ao que me haviam ditado. Hoje considero que todos esses pequenos trabalhos, voluntários e gratuitos, me fizeram crescer como pessoa e me iniciaram no serviço aos outros e no exercício da cidadania.

Ouvir contar estórias ter-me-á influenciado?

Como era hábito no interior de Santiago, naqueles tempos em que não havia ainda luz elétrica, nem televisão e, menos ainda, internet e telemóvel, tínhamos os serões de família, nos quais, muitas vezes também participavam os vizinhos. Fazia-se a própria festa contando estórias. O que, naturalmente, contribuía para a aguçar a capacidade narrativa dos mais novos.

A minha mãe era uma boa contadora de estórias, bem como a minha avó paterna. À noite, sentados ao luar no terraço da casa, elas, mas também quem queria, ouvia e contava estórias, cada um por sua vez.

O gosto pela poesia…

Embora os livros do meu pai e os serões passados a ouvir contar estórias fossem importantes, o gosto pela poesia só terá despertado em mim mais tarde. Sei quando e onde foi: a contemplar o mar de Prainha e Quebra-Canela, na Cidade da Praia. Ali descobri-me poeta, tinha 16 anos. Porém, em criança já escrevia letras e compunha pequenas canções infantis. Sempre tive uma sensibilidade apurada e uma fértil imaginação, o que favorecia esta apetência para a poesia. Desde muito cedo, passei a escrever as minhas reflexões sobre a vida e o decurso do quotidiano. Considero que escrever é a minha missão. Escrevo como contributo para deixar o mundo um pouco melhor do que aquele que encontrei e no qual vivo. Donde me vem a força para realizar esta missão? A força que tenho vem do canto, das lágrimas, da oração, da escuta e do silêncio. Sempre foi assim. Hoje em dia já não consigo chorar… Mas carrego comigo a coragem e o entusiasmo para enfrentar a vida e seguir em frente.

Arlindo Andrade

Londres, Casa de Cabo Verde, 7 de Maio de 2022

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