É um livro de memórias, um inequívoco contributo para ajudar a compreender a história da emigração cabo-verdiana em Portugal. a Autora viveu com os pais, naquele Bairro de 1970 até ao princípio dos anos 90, altura em que veio para Londres; no livro, retrata a sua experiência e a de muitos cabo-verdianos, oriundos sobretudo da ilha de Santiago, e seus descendentes, em Portugal. Uma história de amor pela terra que deixaram, de paixão pela cultura, pelas tradições e costumes que vão passando de geração em geração e que não se perdem com a emigração, ao contrário: preservam-se ainda mais os valores da família, o gosto pela gastronomia tradicional, pelas danças, a música, as festas populares… a entreajuda como forma de suavizar o fardo que a emigração acarreta, na luta pela sobrevivência. Por outro lado, foca com objetividade aspetos negativos, presentes na Pedreira dos Húngaros e noutros bairros com as mesmas caraterísticas: a violência, o racismo e a criminalidade. Porém, valorizando sempre, do princípio ao fim do livro, a fé, a coragem, humildade, a solidariedade, tudo o que há de bom no povo cabo-verdiano.
Contextualização (a autora e eu) – como nos conhecemos?
A Manuela Cardoso e eu, conhecemo-nos em Londres, numa festa muito especial: a celebração dos 47 anos de Independência no nosso País, organizado pelo grupo de cultura da Casa de Cabo Verde no Reino Unido. Depois de um grupo de crianças terminarem uma bonita representação de exaltação dos nossos heróis nacionais e do percurso exemplar de Cabo Verde, reconhecido no mundo, seria a minha vez de subir ao palco para declamar um poema, de minha autoria, sobre a Independência. Estava nervoso, achando que iria estragar aquele momento tão terno que acabáramos todos de presenciar. Quando, depois de declamar o poema, desci do palco e passava pela plateia, fui, ali mesmo, abordado pela autora que me saudou dizendo o quanto gostou do poema, do seu desejo em adquirir o livro e de ter uma conversa comigo.
Tal aconteceu logo no final da festa… numa conversa demorada falou-me do seu projeto de dar a conhecer a história do Bairro da Pedreira dos Húngaros, dos nossos compatriotas que lá viveram, das dificuldades por que passaram. Achei o projeto interessante e oportuno; falámos também da emigração e da cabo-verdianidade.
Depois encontramo-nos para comer uma cachupa. Á medida que nos fomos conhecendo melhor, fui-me dando conta do nosso comum interesse pelo nosso país e seu desenvolvimento sustentado, do amor que temos pela nossa cultura e, pela nossa gente… A autora é uma excelente narradora, uma mulher culta e com grande sensibilidade social, o que não me admira, em função da sua formação académica de assistente social., que, exerce.
Manuela Cardoso nasceu em Cabo Verde, na ilha de Santiago, em 1975. Ainda criança, emigrou para Portugal, juntando-se aos seus pais que foram dos primeiros moradores do Bairro da Pedreira dos Húngaros, situado no Alto de Algés, sobranceiro a Miraflores.
Sobre o livro “Pedreira dos Húngaros”.
É um livro de memórias, um inequívoco contributo para ajudar a compreender a história da emigração cabo-verdiana em Portugal. a Autora viveu com os pais, naquele Bairro de 1970 até ao princípio dos anos 90, altura em que veio para Londres; no livro, retrata a sua experiência e a de muitos cabo-verdianos, oriundos sobretudo da ilha de Santiago, e seus descendentes, em Portugal. Uma história de amor pela terra que deixaram, de paixão pela cultura, pelas tradições e costumes que vão passando de geração em geração e que não se perdem com a emigração, ao contrário: preservam-se ainda mais os valores da família, o gosto pela gastronomia tradicional, pelas danças, a música, as festas populares… a entreajuda como forma de suavizar o fardo que a emigração acarreta, na luta pela sobrevivência. Por outro lado, foca com objetividade aspetos negativos, presentes na Pedreira dos Húngaros e noutros bairros com as mesmas caraterísticas: a violência, o racismo e a criminalidade. Porém, valorizando sempre, do princípio ao fim do livro, a fé, a coragem, humildade, a solidariedade, tudo o que há de bom no povo cabo-verdiano.
É a história de um bairro que já não existe fisicamente há de 20 anos, mas que continua tão presente na memória e de quem lá viveu e não só… as histórias que se contavam da Pedreira dos Húngaros permanecem no imaginário de muitos.
Foram muitos anos de convívio e vivência de pelos menos duas gerações de emigrantes cabo-verdianos – a geração que veio e a segunda geração que já nasceu em Portugal. Compatriotas nossos que ousaram tentar uma vida melhor num país que nos colonizou durante séculos e nem sempre olhava com bons olhos aqueles que lutaram contra o colonialismo e os colonizadores. Desde a criação do Bairro, nos finais dos anos 60, início dos anos 70, os seus habitantes que lutavam pela sobrevivência, são uma comunidade rejeitada e discriminada por uma sociedade que os humilha e os rejeita pela sua história, pela sua origem e pela cor da sua pele.
O início do Bairro foi particularmente penoso… os que chegavam construíam as suas “barracas” – assim eram designadas estas rudimentares habitações feitas de maneira, sem acesso à água canalizada, nem a eletricidade, exíguos abrigos onde quem lá habitavam tinham uma vida sub-humana, carecidos de tudo e também de apoios sociais que facilitassem a sua integração social. Caso a construção fosse denunciada e a polícia intervinha, tudo demolia, sendo frequentes os casos de abusos de poder e agressões físicas. Mas nada esmorecia o ânimo destes valentes emigrantes, nem mesmo um incêndio que devorou 15 daquelas habitações ainda nos anos 70.
O Bairro foi crescendo e tornando-se autónomo: Nos anos 80 já havia fornecimento de água e de energia elétrica, e multiplicou-se o pequeno comércio: cabeleireiras, barbeiros, mercearias e cafés, que se tornaram ponto de encontro.
O facto de a população ser católica, facilitava a união e a solidariedade, mas não impedia cenas de violência e agressões… era a luta pela sobrevivência! Uma sobrevivência dramática, marcada pelas frequentes idas às lixeiras dos bairros das redondezas, inclusive das crianças, a fim de recolherem móveis velhos, roupas usadas e comida fora de prazo. As barreiras comunicacionais, nomeadamente a língua, dificultava o acesso a serviços e ao mercado de trabalho.
(Ponto de viragem…)
Ainda nos anos 80 instalou-se no Bairro, numa “barraca” como as outras, uma comunidade de Padres dos Sagrados Congregações, “os padres holandeses” e com eles a mensagem cristã ganhou vigor, bem como o espírito comunitário. Acolhiam e formavam os jovens, que tiveram oportunidade de participar em encontros com outros jovens, incluindo encontros internacionais, promoviam passeios e dias de retiro. Criaram o projeto “Porta Aberta”, uma alternativa à rua para ocupação de tempos livres, a Caserna ou o Centro Social com trabalho voluntário e comunitário com crianças e jovens.
Na capela, inserida entre as outras “barracas”, mas com mais espaço, onde passou a ser celebrada a missa no Bairro, mas que servia também para outras atividades, foram-se multiplicando os espaços de encontro e formação. Passou a ser celebrada anualmente a Festa de Nossa Senhora da Paz. Os “padres holandeses”, para além da sua missão de cariz religioso, tornaram-se também defensores dos direitos humanos desta população marginalizada.
A autora faz também referências a alguns locais, nas vizinhanças do Bairro procurados, sobretudo, pela população mais jovem, para refúgio, diversão e socialização: prédios ainda inacabados da vizinha urbanização de Miraflores, as matas e espaços verdes, a zona das piscinas de Miraflores, então abandonadas. No Bairro, era referência o café do Juliano, especialista em petiscos, bebidas e pratos típicos de Cabo Verde. Aliás, o sr. Juliano Luz ajudava muito os Padre Holandeses na organização da festa de Nossa Senhora da Paz e foi o impulsionador da primeira associação de moradores. Foi ele o último morador a sair da Pedreira dos Húngaros.
Manuela Cardoso, além de referir, entre os moradores, alguns ciganos e portugueses de baixos recursos económicos – os ciganos, durante algum tempo continuaram a ir ao Bairro fazer as suas vendas de porta-a-porta – recorda o treinador Carvalho que muito impulsionou a prática desportiva entre os moradores, Nhó Elio, o primeiro fotógrafo, e José da Nanda que muito ajudou na legalização dos cabo-verdianos.
Houve um recenseamento feito com o objetivo de caracterizar o Bairro e, obviamente, a sua população, mas, lamentavelmente, os dados não foram tornados públicos. Estima-se que, de 1970 a até ao início do realojamento, que começou por volta do ano 2000, a população fixa da Pedreira dos Húngaros andasse pelos 3.000 habitantes. A autora do livro deixou a comunidade no princípio dos anos 90, mas lá voltava de férias, sem nunca perder o contacto com o Bairro e os seus moradores.
Este é, no essencial o meu olhar sobre o livro “Pedreira dos Húngaros”, de escrita simples e fácil leitura. Apelo a que o adquiram e, quem passou por este icónico Bairro, compare a sua vivência com a vivência que a autora nos retrata. Que diferenças? Que semelhanças? Partilhem-nas com autora que, certamente, muito agradece para enriquecimento da sua obra.
Arlindo Andrade
Londres, 29 de outubro de 2022
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