“A inspiração vem como se fosse uma voz, que chega não sei de onde e que comunica comigo”
Cultura

“A inspiração vem como se fosse uma voz, que chega não sei de onde e que comunica comigo”

A frase é de Paulo Veríssimo, poeta, cronista, investigador, sociólogo e político. Um jovem naturalmente crítico, para  quem o ambiente político é "deprimente e agressivo, afirma que a “arte é liberdade de pensar e criar e, se calhar, a única forma de podermos contemplar o mundo metafísico”. Enfim, o escritor cuja poesia é também influenciada pela sociologia do quotidiano, pessoas, momentos e lugares que deram, e ainda dão, sentido à sua vida, ou são partes da sua memória, lança o seu primeiro livro “NA Kurason di Puéta/No Coração do Poeta”, esta quinta-feira, 20 de abril, no Salão de Banquetes da Assembeia Nacional, pelas 17 horas.

Santiago Magazine - Paulo estreia agora com um livro de poesia. O que é que te levou à literatura? À poesia?

Paulo Veríssimo - Comecei a interessar-me pela leitura ainda antes de ir ao liceu, até porque passava todo o tempo em casa quando não estava em aulas ou explicação. Passei a ler tudo o que encontrava pela frente e não havia muita coisa a ler na altura. Como o meu pai lia jornais, inicialmente Terra Nova e depois A Semana, comecei a ler de forma escondida esses jornais. Sim, porque os jornais eram para ele ler e depois a minha mãe guardar dentro de um cesto na sala. Meu pai começou a aperceber-se disso e a libertar um pouco mais os jornais para eu poder ler mais. A pouco e pouco, passei a ser um assíduo leitor de jornais.

A pouco e pouco, como ele também lia alguns romances, passei também a lê-los. E ele foi-me arranjando mais livros para que eu pudesse ler, de entre os quais alguns números de revistas com poemas de poetas cabo-verdianos. Assim, comecei a gostar cada vez mais de ler e passei a desenvolver alguma aptidão para a escrita, sobretudo quando passei a estudar a literatura portuguesa e cabo-verdiana, no liceu (a partir do ex-quinto ano, porque estudei no sistema antigo).

Por volta dos meus 15/16 anos, comecei a viver as primeiras experiências de amor – se calhar, mais platónicas do que reais – e a escrever os primeiros versos e cartas de amor. E, partir daí, comecei a sonhar em publicar um livro de poesia. No entanto, este sonho ficou na gaveta esses anos todos, devido, essencialmente, ao medo que advinha da incerteza se aquilo que escrevia (e escrevo) seria reconhecido como poesia. É neste contexto que surge o meu livro “NA Kurason di Puéta/No Coração do Poeta”, que será lançado no dia 20 de Abril, às 17 horas, no Salão de Banquetes da Assembleia Nacional.

Escreves apenas poesia?

Não! Como tinha (e tenho) essa ideia dúvida Shakespeariana em relação à minha condição de poeta, a partir de 2001 em diante, não sei se por descrença ou não, parei de ter inspiração para a poesia. E com os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, comecei a ter inspiração e a interessar-me pela escrita de crónicas. Se calhar, sou mais conhecido como cronista do que poeta. Tenho artigos de opinião publicados em vários jornais do país (Asemana, Horizonte, Avoz e Santiago Magazine), reflectindo sobre vários temas da sociedade cabo-verdiana. Tenho em mente lançar, no próximo ano, uma colectânea com as crónicas já publicadas e outras que poderei vir a publicar. Não parei de escrever crónicas, apenas parei de publicá-las (a escrita tem um carácter viciante), para me dedicar exclusivamente ao projecto de publicação do livro de poesia.

Em virtude do meu percurso académico (licenciatura em Sociologia, mestrado e doutoramento em Ciências Sociais, ainda por concluir), tenho participado também em algumas publicações científicas.

Cabo Verde não é tido como um país de leitores e nem um país de livros. É fácil publicar em Cabo Verde?

É extremamente difícil, sobretudo quando se trata do primeiro livro, quando você não é conhecido. Várias são as razões que explicam isso. Em primeiro lugar, em muitas das nossas instituições, públicas ou privadas, as pessoas que decidem, não têm sensibilidade para a arte, no seu todo. E isso faz com que não vejam o patrocínio como uma questão importante ou nobre. Em segundo lugar, existem as relações de redes. Há escritores ou pessoas que publicam, que tem ligações (rede) dentro das instituições, sejam elas públicas ou privadas. Quando precisam, accionam e conseguem o patrocínio. Aqueles que não têm essa rede, muitas vezes, os seus pedidos não são sequer respondidos ou não há acusação de recepção sequer. É uma espécie de subalternização e de silenciamento também.

Outro factor está ligado à sobrevalorização dos eventos de massa, corporizados nos festivais de música. Enquanto isso, as outras dimensões da cultura ou outros fazedores da cultura não tem palco e nem oportunidades de se exprimirem. A sobrevalorização dos festivais de música é um dos maiores cancros deste país (são recursos públicos que deveriam estar a ser canalizados para a resolução de problemas básicos da população e não são, porque há uma inversão daquilo que são as necessidades primordiais na cabeça das pessoas), aliena os jovens e os impede tomarem consciência e terem um papel mais activo na sociedade cabo-verdiana, pugnando por políticas públicas que, de facto, dêem anseio aos seus projectos de vida. Aqueles que estão mais cientes, procuram os caminhos da emigração. Vivemos ainda o dilema do antes e do pós-independência do país, nos seus primeiros anos.

Formado em sociologia, funcionário público, investigador, cronista e escritor. Como defines a arte?

Aquilo que é belo, sublinhe, harmónico, melódico, que é capaz de nos fazer contemplar, admirar e amar o que de mais bonito existe no ser humano e na natureza; aquilo que é capaz de nos fazer transcender, enquanto pessoas, e sair da rotina do quotidiano, que nos escraviza, dando-nos leveza e equilíbrio. É exactamente isso que procuro quando leio um livro de poesia ou ouço a música. É para me transcender e alimentar a minha alma. Arte é também liberdade de pensar e criar e, se calhar, a única forma de podermos contemplar o mundo metafísico.

És um artista?

Julgo que sim, e é em duplo aspecto. Contemplo e admiro que os outros fazem e estou a procurar que com façam o mesmo em relação àquilo que produzo. Isso traz à tona a questão da valorização. Como sabe, a balança tem dois pratos e a virtude está no meio, mas, em não podendo equilibrá-la, todos os pesos estão colocados naquilo que me dá prazer e satisfação, ou seja, naquilo que faço. Quero sentir e estar bem comigo mesmo para poder abraçar a humanidade, algo que estamos a perder todos os dias.

Como é que concilias sociologia com literatura? Há alguma ligação entre essas duas áreas?

Há sim. Para eu puder escrever, tenho de ler outros livros, ler e sentir a realidade. Aliás, ninguém pode aspirar a ser escritor, se não lê. Leitura e escrita se alimentam mutuamente. O que a Sociologia, e as Ciências Sociais, de modo geral, vieram dar-me são ferramentas teóricas (olhares e perspectivas) e metodológicas para compreender e explicar a realidade como enquanto construção social. Isso tudo implica pensar e pensar, além dos seus custos, em sentido lacto, implica investimentos na procura e produção do conhecimento, daí que proximamente pretendo fechar o meu doutoramento, que já está atrasadíssimo. Penso que as minhas crónicas espelham o meu olhar de aprendiz do ofício de sociólogo, mas também as vivências e memórias de Vila Nova (Praia), meu eterno berço. A minha poesia é também influenciada pela sociologia do quotidiano, pessoas, momentos e lugares que deram, e ainda dão, sentido à minha vida, ou são partes da minha memória.

Também és político. O que te levou à política?

Todo homem o é. Fui um pouco influenciado pelo meu pai, que era militante de um partido e, depois, no liceu, por convite de um colega, entrei numa organização juvenil partidária. Em 2006, cheguei a ser candidato a deputado nacional pelo círculo eleitoral da Praia, numa posição subalterna na lista (essa era a posição mais relegada aos jovens e as mulheres na altura, entretanto, no caso delas, com a aprovação da lei da paridade, as coisas mudaram um pouco) e, de 2012 a 2016, fui deputado municipal na Praia.  Durante alguns anos, vivi o dilema “Ciência e Políticas, duas vocações”. Mas, como sabe, as pessoas amadurecem e começam a compreender o funcionamento do campus político, numa perspectiva interna e externa, e começam a fazer opções mais com o “pé finkadu na tera” e a destinar o tempo mais para aquilo em que são e se sentem realmente valorizados, até porque não vivemos eternamente. A vida tem um prazo e não podemos esquecer disso ou viver como se isso não fosse verdade, aliás, “a verdade”. Entretanto, não sei que capítulos me reservam a história deste país, até porque tenho apenas quarenta e dois anos. Sou funcionário público há vinte anos e o meu propósito é de continuar a servir o meu país, aqui ou fora, só o tempo e as oportunidades dirão.

Já agora, como é que avalias o desenvolvimento e o ambiente político em Cabo Verde?

Extremamente agressivo e deprimente. Não há debate de ideias, aliás, não há debate para ser mais preciso. O que se discute é quem mais lesou o país, ou quem não tem moral para apontar o dedo ao outro. É o carácter e a vida pessoal que se coloca sobre a mesa, infelizmente, e não obstante toda a avaliação negativa que a população faz disso e a situação difícil em que se encontra. A música deste ano do grupo carnavalesco, Monte Sossego (DJÔNDJÔN CA TA VERGÁ), diz tudo. Entretanto, o grande drama do subalterno não é que ele não pode falar, ele fala, mas não é ouvido. É um processo de invisibilidade e silenciamento.

A democracia não deve ser “demokratura”, deve ser um espaço de expressão da pluralidade e da diferença de ideias. Mas, isso, acima de tudo, exige aceitar o outro como sujeito da história e membro de pleno direito da Nação. Exige também preparo, porque as ideias não nascem do nada e isso nos remete para uma questão central: qual o perfil dos quadros recrutados pelos partidos para a ocupação dos diferentes cargos dentro da esfera do governo e das autarquias locais? Que preparos têm? Que investimento pessoal fazem para estar à altura dos desafios? Que tipo de avaliação e seguimento estão sujeitos? Outro aspecto tem a ver com a colonização do país. O que fizemos foi substituir o colonizador. Não sei como vamos sair disso, mas é necessário libertar o país, libertar as pessoas, as capacidades e energias e colocá-las ao serviço de um projecto colectivo, que é outra questão, mas não vou aflorar aqui. Apenas referir que estou a falar de “pensar com as nossas próprias cabeças” e definirmos a nossa própria agenda, as nossas prioridades, a partir da “nossa própria realidade”. Cabral já dizia isto. Não estou a inventar nada.

E a política cultural. Se fosses ministro da Cultura o que é que farias diferente daquilo que tem sido feito até aqui?

Para responder com objectividade, teria de conhecer todas as políticas implementadas até aqui, os relatórios de avaliação e os impactos dessas políticas. Estou a chamar atenção para esses aspectos, porque é urgente neste país que se crie uma cultura de avaliação que vá além dos milhões aplicados, mas com foco nos resultados. Quando falo aqui de resultados, não estou a falar do número de pessoas abrangidas, mas nas transformações provocadas na vida das pessoas.

De todo modo, penso que a Cultura deveria ser uma pasta autónoma para que o ministro, seja ele quem for, possa dedicar-se de forma exclusiva; e que se deva dar mais atenção às actividades que têm a ver com a iniciação cultural. Temos de trabalhar aspecto, aproveitando todo potencial da cultura para a integração das pessoas na sociedade, criando o gosto e formando fazedores de cultura, para mais tarde termos pessoas que vivem da cultura, se lhes foram criadas oportunidades. O governo tem maior responsabilidade em tudo isso, mas as câmaras municipais (até porque são vinte e duas), as empresas públicas e privadas podem fazer mais, sobretudo em termos de disponibilização de recursos para as actividades culturais no seu todo.

Na kurason di puéta/No Coração do Poeta. Porquê este título?

Inicialmente, queria dar o título “A poesia em mim”, que é também o título de um poema e de uma crónica que estão no livro. Decidi incluir essa crónica (na verdade, um texto poético), que publiquei a 10 de Novembro de 2001, no então jornal Horizonte, porque fala da minha relação com a poesia. No entanto, quando publiquei o poema “Na kurason di puéta”, partilhei-a com uma amiga e ela sublinhou muito esse título e isso chamou-me atenção. Vi que o título, que inconscientemente me estava a ser sugerido para livro, era mais chamativo e corporificava melhor aquilo que era o conteúdo do livro. E assim ficou. Só que depois vim a publicar um outro poema, desta feita em português, com o título “Coração de um poeta”, e decidi que o título do meu livro seria “NA Kurason di Puéta/No Coração do Poeta”. Acho que fui muito feliz nessa escolha pelos retornos que tenho recebido.

Trata-se de uma obra bilingue. Porquê?

Porque foi assim que os poemas me saíram. A inspiração vem como se fosse uma voz, que vem não sei onde e que comunica comigo. Registo apenas no papel o que oiço e sai de dentro de mim. Depois, é o trabalho de melhorar o poema. Parafraseando o músico português, Pedro Abrunhosa, só a inspiração não basta. É preciso trabalho. Do livro, constam vinte e oito poemas e uma crónica, de que já fiz referência. Dos vinte e oito poemas, dezanove estão escritos na nossa língua materna, com recurso ao ALUPEC. Podia ser o contrário e nem por isso deixaria de ser aquilo que me aí na alma no momento da escrita.

Como vê a não oficialização do crioulo?

Já se faz necessário e é um passo que já devíamos ter dado. É oficializar e sermos consequentes, criarmos as condições para que todos os cabo-verdianos aprendam escrever na nossa língua materna, podendo usá-la, por escolha e em igualdade de circunstâncias, com o português. A fixação da grafia, seja ela qual, não é e nem vai uma questão consensual, mas terá de ser feita. O debate tem sido muito desfocado daquilo que é o essencial, o potencial que é as pessoas poderem se exprimir e serem socializadas e educadas na sua própria língua materna, para além da questão da identidade. Em vez disso, temos verificado um grande desconhecimento do ALUPEC, discursos bairristas e racistas. E aí está mais um tema tabu que não discutimos abertamente, sob a capa da morabeza. Morabeza, a existir, não deve rimar com “democratura”, colonização do colonizado pelo próprio, bairrismo e racismo. Outra coisa que não tem permitido o avanço dessa questão são os debates fulanizados entre os próprios linguistas. Temos de deixar de ter pessoas-marcos, para discutirmos, efectivamente, as contribuições com a única intenção apenas de ver essa questão resolvida, a bem da Nação.

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