Num sistema democrático de governo também o poder judiciário, ainda que não eleito, como faz a justiça em nome do povo, não pode estar de costas voltadas ao detentor da soberania que é o povo, sob pena de sujeitar a sociedade aos riscos políticos próprios que ameaçam as democracias contemporâneas e os estados de direito democrático.
Na semana passada ocorreu o tradicional debate parlamentar sobre o estado da justiça e como era de se esperar os diagnósticos e as conclusões voltaram a serem repetidos: falta de meios humanos e materiais e a consequente morosidade e pendências processuais.
1. No meu ponto de vista, além de sérios problemas administrativos de falta de resultados e de concepção política no que diz respeito à clarividência da relevância da justiça na edificação da democracia existe um problema mais grave que é a progressiva perda de confiança na realização da justiça pelos tribunais judiciais e que coloca em cheque a sustentabilidade do estado de direito democrático.
2. Segundo o afrobarometer, na sua avaliação periódica sobre a confiança dos cidadãos em relação às diferentes instituições e outras questões políticas, de 2002 a 2022, o percentual de indivíduos com 18 anos ou mais que responderam que não acreditam nada na justiça feita pelos tribunais saltou de 15%, em 2002, para 25,5%, em 2022.
3. Nesse período de 20 anos, a desconfiança na justiça cresceu contínua e progressivamente até se chegar a esse patamar de um em cada quatro caboverdeanos a declararem não acreditar nada na justiça.
4. Os dados mostram que a falta de confiança é maior para os homens (26%) do que para as mulheres (24%), é maior no meio rural do que no meio urbano, é maior no grupo de pessoas com menos escolaridade comparado àqueles que têm mais anos de estudos, e quanto à preferência política é de 15% para os que dizem votar no MpD, 25% para aqueles que dizem preferir votar no PAICV e 38% no grupo daqueles que afirmam não preferir votar em nenhum dos partidos políticos oficializados.
5. Sociologicamente, se um eleitor ou um grupo de eleitores demonstrar preferência ou antipatia por uma determinada política social, económica ou cultural e um partido político ou candidato oferecer uma proposta que ajuste a essa preferência manifestada ter-se-à uma segmentação política coerente com essa fragmentação sociológica.
6. Os sistemas eleitorais são concebidos justamente para transformarem as preferências eleitorais em representações políticas e assim se constitui e se operam os sistemas políticos em estados de direito democrático, no pressuposto de que as preferências eleitorais também são democráticas.
7. Porém, a situação ganha uma outra dimensão quando há preferências eleitorais que não são previstas para estados democráticos de direito.
8. O processo civilizatório levou à institucionalização do estado democrático de direito e a realização de justiça pelos tribunais judiciais como uma das vias para resolução de conflitos.
9. Quando há aumento expressivo de indivíduos que não acreditam na justiça feita pelos tribunais, se abre, implicitamente, uma verdadeira avenida para indivíduos e grupos políticos explorarem essa preferência eleitoral e transformá-la em votos e representação política sem que haja, formalmente, nada, absolutamente, nada, que os impeça nesse intento.
10. O percentual de indivíduos que afirmam não acreditarem nada na justiça corresponde a uma população superior a de várias ilhas juntas, é, sensivelmente, o tamanho da população do Município da capital – Praia, isto é, não é pouca gente e na democracia vale cada homem um voto igual ao outro.
11. Atingimos um patamar de não confiança na justiça preocupante por que esse percentual tem potencial para gerar representação política não democrática e desmontar o estado democrático de direito vigente sem necessidade de colocar tanques nas ruas nem apontar baionetas para cabeça de ninguém, só via canetada!!!
12. Para que um número tão grande de pessoas passasse a desacreditar na justiça, não obstante, o aumento de investimentos e recrutamentos nesse setor ao longo desse período, creio que há que se pensar além do aspeto quantitativo mas, principalmente, no aspeto qualitativo e na efetividade da justiça.
Num sistema democrático de governo também o poder judiciário, ainda que não eleito, como faz a justiça em nome do povo, não pode estar de costas voltadas ao detentor da soberania que é o povo, sob pena de sujeitar a sociedade aos riscos políticos próprios que ameaçam as democracias contemporâneas e os estados de direito democrático.
Comentários
Fogo, 5 de Nov de 2024
Grande analysts obrigado
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