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PARÊNTESE APOSTO A PROPÓSITO DO PENSAMENTO MARXISTA DE AMÍLCAR CABRAL E DE OUTRAS QUESTÕES COLATERAIS
Colunista

PARÊNTESE APOSTO A PROPÓSITO DO PENSAMENTO MARXISTA DE AMÍLCAR CABRAL E DE OUTRAS QUESTÕES COLATERAIS

"Estamos em crer que o PAIGC gozava de toda a legitimidade, quer a histórica, quer a internacional, para ser o único interlocutor do Governo Português nas negociações conducentes à independência política e à soberania nacional e internacional do nosso país"

(...Continuação da Primeira Parte - link aqui)

SEGUNDA PARTE

             II

Aliás, e de todo o modo, a sociedade desejavelmente de matriz socialista e feições humanistas consagrada pela revisão constitucional, de 29 de Setembro de 1990, da Constituição Política caboverdiana, de 5 de Setembro de 1980, nas suas redacções de 14 de Fevereiro de 1981 e de 27 de Dezembro de 1988, afigurava-se como plenamente conforme com o pensamento progressista de matriz marxista e teor revolucionário e socializante de Amílcar Cabral, visível na sua célebre comunicação à Conferência Tricontinental de Havana, de 1966, e intitulada "A Luta de Libertação Nacional com Relação aos seus Fundamentos e aos seus Objectivos", mundialmente celebrizada como a "A Arma da Teoria".

É nesse denso,  extenso e profundo texto/ensaio que Amílcar Cabral se apresenta como importante teórico africano renovador do pensamento marxista, com várias teses e concepções assaz inovadoras e, até,  surpreendentes, expondo ademais a sua teleologia histórica do desenvolvimento  da Humanidade com as suas sequenciais fases de evolução finalista, iniciando-se na sociedade comunitária primitiva (ou comunismo primitivo, na terminologia marxista clássica) passando pelas sociedades baseadas na exploração do homem pelo homem, quais sejam as sociedades agrárias e/ou urbanas escravocratas, feudais, tributárias e aparentadas (por vezes designadas por alguns teóricos e estudiosos de matriz marxista como modo de produção asiático) e as sociedades agro-industriais e urbanas capitalistas e culminando nas sociedades socialistas enquanto primeira fase das sociedades sem exploração do homerm pelo homem e sem luta antagónica de classes sociais e, por iso, necessária antecâmara das sociedades de novo e totalmente desprovidas de classes sociais, isto é, das sociedades comunistas. Atente-se que a teleologia e o desenvolvimento finalista da Historia Humanidadee, a que acima se referiu, não significa de modo nenhum o fim da História da Humanidade, pois que, segundo Amílcar Cabral, o ser humano continuará, enquanto existir, refém do seu cérebro, das suas mãos e das suas necessidades, os quais sempre o determinarão ao desenvolvimento das forças produtivas, a verdadeira força motriz da História, e ao aperfeiçoamento das relações sociais emergentes do nível de desenvolvimento dessas mesmas forças produtivas.

Por outro lado, as sociedades comunistas vindouras, recorrentemente referidas e antecipadas pelos marxistas e pelas suas muitas variantes reformistas e revolucionárias, permanecem revestidas, desde sempre e até à actualidade, mas sobretudo depois do desmoronamento das suas variantes doutrinárias revolucionárias de feições burocrático-administrativas (incluindo a autogestionária de proveniência jugoslava), todas vituperadas, vilipendiadas e renegadas, sem excepção alguma, como política, económica, social e culturalmente legitimadoras de formas totalitárias e/ou autoritárias de existência de regimes políticos ideológica, formal e nominalmente situados à esquerda, nas suas várias versões e variantes de socialismo de Estado e que teriam representado meras e/ou lamentáveis degenerescências  da verdadeira e autêntica sociedade socialista e do seu rosto humano e plenamente democrático, que na verdade nunca teria existido e permaneceria ainda por edificar, pois que tendo sido estranguladas no ovo todas as experiências políticas mundiais que realmente almejavam concretizá-la e/ou tendo essas mesmas experiências sido usurpadas pelas nomenclaturas que, nas sociedades edificadas nos antigos países do chamado socialismo real, lograram substituir as antigas classes exploradoras, abertamente possidentes dos meios de produção e dos instrumentos de coerção política e de coacção ideológica e cultural, e que, no seu intuito de preservar, a todo o custo, os seus os interesses, os seus privilégios e as suas regalias de categoria social político-burocrática dominante, tudo fizeram por alimentar, aliás, com inusitados fervor, afinco e afã, as características míticas e místicas de ilusórios paraísos, consabidamente imaginados como celestiais pelos mais diferentes credos, mitologias e crenças religiosos e transfigurados em terrestres por diversas doutrinas políticas fundadas em várias  correntes políticas progressista e revolucionárias e,  a final, transfiguradas em diferentes variantes do socialismo utópico.

Paraísos terrestres que, tal como concebidos pelo marxismo, estariam temporalmente localizados num futuro assaz incerto, indeterminado, indefinido  e ainda por concretizar, mas que se antevia/se antevê e se imaginava/se antevê dotados de um desenvolvimento técnico e científico nunca dantes visto, nisso residindo o motivo da sua designação como comunismo científico contraposto ao comunismo primitivo dos  primórdios da humanidade, na actualidade largamente comprovados como tendo realmente existido e continuando a existir ainda hoje em zonas restritas, recônditas e geograficamente isoladas, mas povoados de e alavancados por criaturas humanas integrantes de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem, isenta da sujeição da pessoa humana a interesses egoístas e degradantes de indivíduos, de grupos e de categorias sociais e inundada do espírito solidário e fraternitário de um vindouro homem novo, finalmente humanista na plenitude do seu ser e na inteireza das suas diferentes e diversas expressões de vida, por isso mesmo, totalmente desalienado e cabalmente capacitado para prescindir da necessidade da existência do Estado, enquanto organização política da classe social economicamente dominante e cultural e moralmente hegemónica e, por isso, detentora do monopólio do uso da violência e de outras formas de coacção expressas em forma de lei e válidas e obrigatórias para todos os seus destinatários.

É nessa antevista e vindoura sociedade desconhecedora de classes sociais e, por isso mesmo, de interesses sociais de classe e de luta de classes sociais, a radicar na nossa Terra ou em qualquer outro sítio situado algures na nossa galáxida ou em galáxidas alheias, mais próximas ou mais longínquas, mas sempre habitadas por criaturas humanas e/ou criaturas outras com elas aparentadas e ainda mais avançadas, do ponto de vista do nível da  sua inteligência, da  alta tecnologia à sua disposição e proporcionada pelo elevadíssimo nível de desenvolvimento das suas forças produtivas  e/ou da sua História, que finalmente deverá germinar e eclodir entre os seres humanos concretos e de carne e osso a chamada sociedade comunista para finalmente possibilitar que os mesmos seres humanos possam substituir o Reino da Necessidade pelo Reino da Liberdade, consabidamente marcado pela aplicação prática da consigna comunista “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades" e em que a liberdade e a dignidade de cada um, enquanto pessoa humana inconfundível e infungível considerada individualmente, é a condição da liberdade e da dignidade de todos, considerados colectivamente como igualmente inconfundiveis e infungíveis. Obviamente que num mundo  ecologicamente sustentável e imensamente rico na sua diversidade biológica e na equidade das suas relações  humanas.

É por isso mesmo, isto é, em razão da sua natureza utópica que a vindoura e até hoje nunca concretizada sociedade comunista avançada, almejada e antecipada alegadamente de forma científica pela ideologia marxista (por isso também, e, quiçá, arrogante e pretensiosamente, denominada socialismo científico, e confessa e indubitavelmente professada por Amílcar Cabral) teria provavelmente permanecido como uma mera e longínqua profecia laica para o pragmático nacionalista pan-africanista, patriota e revolucionário  cabo-verdiano/bissau-guineense e humanista africano e universalista que, outrossim, do marxismo preferiu valorizar sobretudo a vertente científica, sociológica e histórica consubstanciada no materialismo dialéctico, no materialismo histórico e na economia política. Neste sentido, estamos em crer que tanto para Amílcar Cabral como também para os adeptos da sua singular compreensão da ideologia marxista e da sua praxis progressista nela inspirada, a sociedade comunista permanece como um ideal a atingir e uma utopia por concretizar nas suas contemporâneas vestes e repercussões advindas da premente necessidade de radical transformação, em modos mais ou menos revolucionários e/ou mais ou menos reformistas, das sociedades presentes inelutavelmente fundadas na exploração do homem pelo homem, na sujeição da pessoa humana a interesses egoístas e degradantes de indivíduos, de grupos e de categorias e classes sociais bem como na dominação político-social e na hegemonia político-cultural das categorias e classes sociais exploradoras privilegiadas sobre as categoriass e classes sociais  exploradas e subjugadas.  

É essa concepção marxista do mundo, intrínseca ao pensamento político-ideológico de Amílcar Cabral e fundada na metodologia de análise científica da história, da sociedade e da natureza propiciadas pelo seu materialismo dialéctico, pelo seu materialismo histórico e pela sua economia política, que foi sendo adaptada pelo grande teórico africano às diferentes etapas da luta de libertação bi-nacional e de emancipação política, económica, social e cultural dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e concretizada nos diferentes Programas Mínimos e Maiores do PAIGC, certamente elaborados com a mão e sob a orientação do seu líder carismático e teórico maior ou, com a sua irreparável, mas não insubstituível ausência física, à luz do seu pensamento político-ideológico ou, erroneamente ou não, inspirado nesse mesmo pensamento político-ideológico, tanto o primeiro aprovado na Reunião de Dacar de 1960 e reiterado no Congresso de Cassacá, de 1964, como o segundo, aprovado já depois da morte do grande líder caboverdiano e bissau-guineense e icónico pensador africano pelo Segundo Congresso do PAIGC, de Julho de 1973, e, já no período pós-colonial, nas Resoluções do seu III Congresso, de Novembro de 1977, e, reconfirmado, depois da falência pós-colonial do projecto de associação política e de união orgânica entre as Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, em resultado de golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, na Guiné-Bissau, pelo Congresso constitutivo do PAICV e pelos seus posteriores conclaves partidários, em especial daqueles precedentes da sua estrondosa derrota nas eleições legislativas, presidenciais e autárquicas de 1991.

Foi essa mesma démarche marxista, consabidamente avessa a radicalismos, aventureirismos e voluntarismos político-ideológicos, inerme e imune a posturas dogmáticas e incólume a apressadas, inconsequentes e gratuitas rotulações revolucionaristas, ademais muito marcada pelo realismo e pelo pragmatismo políticos, que permitiu a Amílcar Cabral conceber e pôr em prática a sua doutrina de teor ético-político humanista de "melhores filhos dos nossos povos e das nossas terras africanas da Guiné e de Cabo Verde" e inseri-la no húmus histórico da sua dinâmica teoria de "partido-movimento" e dos seus dialécticos conceitos de "povo-população" e de "democracia revolucionária", entendida como "poder do povo, pelo povo, para o povo" resultante da " luta do povo, pelo povo e para o povo", e, assim, lhe permitiu forjar as alianças políticas e as unidades necessárias, suficientes e imprescindíveis com diferentes correntes nacionalistas, patrióticas, progressistas e revolucionárias dos dois países irmãos para a vitoriosa consecução da luta bi-nacional para a realização e a concretização prática do direito à auto-determinação e independência política dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e, se tivesse sido possível, para a sua associação política e a sua união orgânica no seio de uma "pátria africana una, forte, progressiva e solidária" rumo à gradual unidade - a nível continental, regional e sub-regional- de todos os povos africanos e em profícua e mutuamente vantajosa cooperação com todos os países do mundo para a construção de um mundo de paz, liberdade, democracia, progresso e prosperidade material e espiritual para toda a Humanidade.

Certamente que quem era dotado desses realismo e  pragmatismo políticos e se sustentava na identidade cultural dos seus dois povos amados, na civilização do universal, na ciência e no profundo conhecimento do mundo, fazendo-se iluminar pelo pensamento marxista e alimentando-se de uma visão profundamente humanista do mundo e respeitadora do outro, seu semelhante, saberia adaptar-se a todas e quaisquer contingências e vicissitudes da História contemporânea da África e da Humanidade e a todas as mudanças do mundo dos seus e dos nossos tempos, aliás, para ele, Amílcar Abel Djassi Cabral, sempre inspiradoras e desafiadoras, mormente quando têm por base e fundamento a defesa da inviolável, imprescritível e inalienável dignidade dos seres humanos e dos povos da sua pátria africana, a constituir-se bi-nacionalmente das Repúblicas irmãs livres, independentes e soberanas e das duas nacionalidades gêmeas que resultaram da colossal e imprescritível pertinência da sua luta e,  afinal, a razão mais profunda e permanente da sua pugna emancipatória em prol da autodeterminação e independência política, da liberdade e da prosperidade colectivas dos povos da Guiné e de Cabo Verde e do progresso e da felicidade individuais dos seus filhos, luta fraternitária e pugna emancipatória essas que por sua vez foram sempre por ele entendidas como o seu específico contributo pessoal enquanto parte integrante da ingente contribuição colectiva dos dois pequenos povos oeste-africanos, afro-lusófonos e crioulófonos  que o geraram e no seio dos quais se forjou e amadureceu como criatura humana para a incomensurável saga e a nunca acabada odisseia a favor da obtenção e da conquista da paz, da democracia, da justiça social, do bem-estar e da felicidade para todos os africanos e para todos os seres humanos do mundo.

Tanto mais que foram os seus discípulos e sucessores que lideraram as mudanças que, no pós-25 de Abril de 1974, propiciaram a conquista da independência política do arquipélago saheliano, a construção do Estado independente e soberano caboverdiano e, chegado o momento considerado propício, tendo certamente em conta a imprevisível aceleração dos acontecimentos políticos na União Soviética despoletados pelas políticas da Perestroika e da Glasnost de Mikhail Gorbachov e inelutável e rapidamente conducentes à Queda, a 9 de Novembro de 1989, do Muro de Berlim e a céleres alterações de teor democrático-pluralista em alguns países do Leste da Europa, declararam a Abertura Política Democrática que inaugurou a transição política e as mudanças político-sociais, institucionais, jurídico-legais e político-constitucionais que, num relativamente curtíssimo espaço de tempo e com relevante contributo da oposição política emergente, fizeram eclodir e germinar no escalavrado chão do povo das ilha e diásporas um novo regime político de democracia plena e uma nova República (a Segunda da curta História pós-colonial caboverdiana) fundados no estrito e amplo  respeito da dignidade da pessoa humana e plenamente consolidado no quadro de um Estado de Direito Democrático e Social lavrado, patenteado, garantido e consolidado de forma coerente, extensa, desenvolvida e exemplar pela Constituição Política caboverdiana, de 25 de Setembro de 1992, que, ademais, dotou a República de Cabo Verde, se bem que de forma assaz controversa, de novos símbolos nacionais, e pelas suas várias e cada vez mais consensualizadas revisões constitucionais, consensos político-sociais esses particularmente visíveis nas revisões constitucionais de 1999 e de 2010. República de Cabo Verde, de cujo exemplar percurso pós-colonial e de cujo Estado de Direito Democrático e Social Amílcar Cabral certamente se sentiria orgulhoso, caso fosse vivo, ainda segundo explanado por Carlos Veiga na sua intervenção proferida no Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, realizado na cidade da Praia, em 2004.

Na feliz e muito pertinente expressão de Carlos Veiga (relembre-se que também ele, aliás, integrante do Panteão das Grandes Personalidades Históricas Caboverdianas em razão de ser o líder histórico do MpD por ter sido sucessivamente o primeiro Coordenador Provisório e o primeiro Presidente eleito do mesmo partido/movimento político; antigo Primeiro-Ministro de Cabo Verde por dois mandatos consecutivos conquistados com maioria qualificada e derrotando, primeiramente, o histórico Pedro Pires e, depois, Aristides Lima, candidatos a Primeiro-Ministro escolhidos pelo PAICV; antigo candidato presidencial apoiado pelo MpD derrotado por duas vezes por Pedro Pires, apoiado pelo PAICV; antigo candidato a Primeiro-Ministro escolhido pelo MpD e derrotado por José Maria Neves, Presidente do PAICV; antigo líder da oposição parlamentar do MpD e antigo candidato presidencial apoiado pelo MpD e derotado por José Maria Neves, apoiado pelo PAICV), Amílcar Cabral é “o maior dos nossos Heróis, o mais Grande/o Maior dos Grandes de Cabo Verde" em razão do seu papel ímpar na enunciação da “independência política como a úinica solução da nação cabo-verdiana colonizada”, na concepção dos caminhos e das vias e na liderança político-militar exemplar da luta para a conquista e a obtenção da independência de Cabo Verde e, ademais, da sua teorização em bases marxistas dos caminhos pós-coloniais do povo caboverdiano, mantendo-se ainda actuais muitos dos seus ensinamentos, mesmo aqueles incidentes sobre temas e matérias mais problemáticosb e controversos como "o suicídio de classe da pequena-burguesia", "a opção e a via socialistas de desenvolvimento", "a democracia revolucionária” e os correlativos “princípios do centralismo democrático, da crítica e autocrítica e da direcção colectiva”.

Considera Carlos Veiga que é a "democracia revolucionária", enquanto princípio fundante do sistema político de Partido-Estado implantado, primeiramente, nas zonas libertadas da Guiné-Bissau e, depois, tornado extensivo e constitucionalmente impregnante dos Estados soberanos e independentes da Guiné-Bissau e de Cabo Verde modelados como regimes políticos de democracia nacional revolucionária, nos quais o PAIGC foi unilateralmente erigido como partido único, isto é, como “o único partido autorizado” e qualificado, ademais, como "força, luz e guia do nosso povo", "expressão suprema da vontade soberana do povo", "força política dirigente da sociedade e do Estado", entre outros atributos, epítetos e características supra-constitucionais que teriam propiciado a concepção do Estado independente e soberano de Cabo Verde como mero instrumento para a aplicação do "programa político, económico, social, cultural, de defesa e segurança" definido por esse mesmo “partido de vanguarda”, cujos dirigentes, responsáveis e militantes alegadamente se consideravam e se fizeram alcandoraram-se a um privilegiado estatuto político de "melhores filhos do nossso povo".

Em razão disso tudo, defende Carlos Veiga que, apesar das suas  actuais virtualidades e potencialidades enquanto potenciador de uma democracia participativa complementar da moderna democracia representativa de feição democrático-liberal e matriz ocidental consagrada na Constituição Política caboverdiana de 1992, o conceito de democracia revolucionária foi sujeito nos últimos anos a severas e demolidoras críticas porque, tal como os “Estados da legalidade socialista ", também desqualificados como "Estados da deriva totalitária socialista", o regime político de partido único socializante de Cabo Verde, comum e oficialmente designado de regime de democracia nacional revolucionária, pode ser inserido na categoria de Estado de não Direito e/ou de Estado contra o Direito, diametralmente oposto ao Estado de Direito, do ponto de vista conceptual, e ao Estado de Direito Democrático plasmado na Constituição Política caboverdiana de 1992. Todavia, opina Carlos Veiga que, devido à sua morte prematura em razão do seu “traiçoeiro e bárbaro assassinato”, Amílcar Cabral não pôde, partindo do princípio “Partir da realidade da nossa terra. Ser realista” que era o fio condutor das sua praxis e da sua démarche teórica, adaptar ao período pós-colonial e, sobretudo, às especificidades culturais e identitárias caboverdianas a sua concepção de Estado engendrada e forjada a partir do conceito de democracia revolucionária para ser primacialmente aplicada às condições especificas da luta político-armada e visando prioritariamente a administração das zonas libertadas da Guiné-Bissau, onde o PAIGC vinha actuando e agindo desde há muito tempo como um verdadeiro Partido-Estado. Por isso, segundo Carlos Veiga, a grandeza teórica e a grande envergadura política e intelectual de Amílcar Cabral não teriam ficado beliscados por essa mesma circunstância histórica.

Vale todavia relembrar que, em Dezembro de 1960, Amílcar Cabral tinha apresentado ao Governo português em nome do PAIGC um Memorando no qual propunha uma solução pacífica e negociada para a obtenção da independência política da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde com instauração das liberdades democráticas fundamentais de expressão do pensamento, de reunião, de manifestação, de associação, de greve e de criação de partidos políticos e de organizações sindicais com vista à realização de eleições gerais e livres por sufrágio universal, directo, igual e secreto da Câmara de Representantes do Povo da Guiné Portuguesa na proporção de um representante para trinta mil habitantes e da Câmara de Representantes do Povo de Cabo Verde na proporção de um representante para dez mil habitantes, ambas dotados de poderes soberanos legislativos e de designação dos respectivos poderes executivos, ficando abertas as possibilidades alternativas da união entre os dois territórios ou da sua independência separada, conforme decidissem as duas Câmaras de Representantes em reunião conjunta.

Esse facto foi, aliás, expressamente referido por Carlos Veiga na sua comunicação apresentada ao Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, considerando todavia (e erroneamente, na minha opinião), que com o início e o crescente sucesso da luta político-armada de libertação binacional dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde  e, ademais, influenciado pelas correntes políticas revolucionárias em voga nos anos sessenta do século XX e pelos países socialistas de onde provinham os apoios à luta conduzida pelo PAIGC, Amílcar Cabral teria renunciado, de forma definitiva e irreversível, à possibilidade de implantação nos nossos países do modelo liberal-democrático de Estado, optando, em sua substituição e como uma sua alternativa, por um modelo de Estado fundado no conceito de democracia revolucionária.

Sendo certo que, desde a apresentação da por demais surpreendente proposta constante do Memorando apresentado, em 1960, ao Governo português, o PAIGC pôde encetar, desenvolver  econsolidar, com muito e inegável sucesso, uma luta político-armada de longa duração que lhe granjeou imenso prestígio político na arena diplomática mundial e o reconhecimento internacional como único e legítimo representante dos povos da Guiné e de Cabo Verde, primeiramente, em 1965, junto da OUA (Organização da Unidade Africana), depois, em 1972, junto da ONU (Organização das Nações Unidas), que, depois de ter enviado uma sua Missão Especial às zonas libertadas da Guiné-Bissau, reconheceu o PAIGC como membro observador da ONU, seguindo-se o reconhecimento pela OUA, em Novembro de 1973, do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau, proclamado unilateralmente, a 24 de Setembro de 1973, por uma Assembleia Nacional Popular, eleita indirectamente por deputados integrantes dos Conselhos Regionais  eleitos directamente por sufrágio universal, directo, igual e secreto pelas populações das zonas libertadas e radicadas nos países vizinhos e amigos, e dotada de poderes soberanos e constituintes e de poderes de designação de um poder executivo constituído por uma Chefia de Estado colectiva denominada Conselho de Estado e por um Governo denominado Conselho dos Comissários do Estado. Ademais, a Assembleia-Geral da ONU reiterou o seu reconhecimento do PAIGC como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde em princípios de Abril de 1974, depois da apresentação, em  fins de Março de 1974,  de um Relatório sobre a Situação em Cabo Verde por uma Delegação do PAIGC chefiada por Abílio Duarte, membro do Comité Executivo da Luta do mesmo movimento de libertação bi-nacional.

Se é verdade que seria difícil para Amílcar Cabral retomar para a Guiné-Bissau o plano constante do Memorando apresentado ao Governo Português em Dezembro de 1960, pois que para a Guiné-Bissau a questão passou a reduzir-se ao reconhecimento de jure pelo Governo português da República da Guiné-Bissau, na altura já gozando de amplo e sólido reconhecimento internacional, para Cabo Verde a situação era completamente diferente. Apesar de nos Acordos de Argel celebrado entre o Governo Provisório Português e o PAIGC, a 25 de Agosto de 1974, para o reconhecimento de jure, a 10 de Setembro de 1974, pelas autoridades políticas portuguesas da independência política da República da Guiné-Bissau, o Governo português ter também reconhecido o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência política, as mesmas autoridades políticas portuguesas mantinham alguma relutância em reconhecer o PAIGC como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, tal como tinha ocorrido com a OUA e a ONU e, nesse contexto, mormente quando ainda estavam em cena os apoiantes das teses spinolistas, insistiam na realização em Cabo Verde de um referendo de autodeterminação política com a participação dos três partidos políticos presentes no cenário político caboverdiano, designadamente o PAIGC, a UPICV e a UDC, ao que se opunha o PAIGC, aliás, com inusitada firmeza, alegando e contrapondo com o seu reconhecimento internacional como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, considerando ademais que os outros dois partidos caboverdianos eram partidos fantoches e pouco representativos.

Os representantes do MFA (Movimento das Forças Armadas) presentes em Cabo Verde comungavam do mesmo posicionamento político defendido pelo PAIGC, tendo, ademais, apresentado um ultimato ao Governo Provisório de Lisboa, ameaçando-o com a entrega imediata e a correlativa transferência ao PAIGC dos poderes soberanos que Portugal detinha sobre Cabo Verde. Neste contexto, o Governo Provisório Português não teve outro remédio senão iniciar as conversações com o PAIGC, as quais culminaram na celebração dos chamados Acordos de Lisboa, de Dezembro de 1974, e que, como é sabido, instituíram um Governo de Transição para a Independência Política de Cabo Verde, nomeado pelo Presidente da República Portuguesa, integrado por sete Ministérrios, constituido por três Ministros designados pelo PAIGC, dois Ministros designados pelo Governo Provisório Português e chefiado por um Alto-Comissário português, marcaram a data deste evento histórico maior para 5 de Julho de 1975, devendo a independência política e a soberania nacional e internacional da nova República ser proclamada por uma Assembleia Representativa do Povo Caboverdiano, a ser eleita, a 30 de Junho de 1975, por sufrágio pluralista, universal, directo, igual e secreto e por voto maioritário em cada um dos círculos eleitorais em listas plurinominais e solidárias apresentadas por grupos independentes de cidadãos. Estamos em crer que o PAIGC gozava de toda a legitimidade, quer a histórica, quer a  internacional, para ser o único interlocutor do Governo Português nas negociações conducentes à independência política e à soberania nacional e internacional do nosso país, mas também estamos em crer que o cenário político prevalecente em Cabo Verde em inícios de Dezembro de 1974 corresponde exactamente àquele desenhado por Amílcar Cabral no seu já muito referido Memorando ao Governo Português, de Dezembro de 1960.

Por isso, acreditamos que teria sido possível realizar eleições livres e democráticas para a Assembleia Representativa do Povo Caboverdiano e prevista no Acordo de Lisboa, de 19 de Dezembro de 1974, com a participação de todos os partidos políticos presentes na altura no cenário político caboverdiano e não, ou não só, unicamente com a participação de grupos independentes de cidadãos, depois de terem sido interditadas as actividades da UPICV e da UDC e de alguns dos seus membros terem sido encarcerados no presídio político do Tarrafal. Não estando de maneira nenhuma em causa a concretização efectiva da independência política de Cabo Verde na data e nos moldes em que realmente veio a ocorrer, com previsível vitória esmagadora do PAIGC, as eleições de 30 de Junho de 1975 não teriam todavia sido um mero referendo/plebiscito às listas de grupos de cidadãos, afinal completamente dominados e controlados pelo PAIGC, mas eleições verdadeiramente livres e democráticas, mesmo que com a participação exclusiva de grupos independentes de cidadãos, mas influenciados e/ou determinados na sua composição por todos os três partidos políticos, presentes em inícios do mês de Dezembro de 1974, no cenário político caboverdiano.

Contra esse cenário alta e efectivamente democrático posicionaram-se consabidamente todas as correntes político-ideológicas presentes no ramo caboverdiano do PAIGC, designadamente a nacionalista revolucionária e a democrático-revolucionária, de feição cabralista, vindas das duas Guinés e emergentes da clandestinidade política e da luta legal de massas em Cabo Verde, em Portugal e em outros países, tal como, aliás, as correntes trotskista, maoista,  luxemburguista, estalinista, marxista-leninista, nacionalista moderada e outras similares inominadas, também emergentes da luta política clandestina, semilegal e legal conduzida pelo PAIGC nos países acima referidos, esquecendo e ignorando (e/ou, talvez, até desconhecendo) completamente o plano constante do Memorando do PAIGC apresentado ao Governo português em Dezembro de 1960 e que, afinal, se aplicou em vários casos similares ao da ambiência democrática existente em Cabo Verde do período imediatamente posterior ao 25 de Abril de 1974 até aos inícios do mês de Dezembro de 1974. Perdeu Cabo Verde, sobretudo em ganhos históricos de exercitação política de experiências em democracia pluralista. Não por causa de Amílcar Cabral, mas apesar de Amílcar Cabral e do seu plano de transição plenamente democrática para a nossa independência política, de matriz indubitavelmente democrático-liberal, hoje tão justamente incensada e festejada!  

emocrático-liberal, hoje tão justamente incensada e festejada!                                    

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