"Tendo um grande número de membros dos CCPD regressado a Cabo Verde depois da conclusão dos seus estudos universitáris e ocupado posições e cargos de relevo nos sectores administrativo e empresarial do Estado bem como no sector privado e nas organizações da sociedade civil caboverdiana, como, por exemplo, o IPAJ (Instituto de Patrocínio e Assistência Judiciários), esses mesmos membros dos CCPD viriam a desempenhar um papel decisivo e preponderante na fundação, na organização, na promoção, na disseminação e na credibilização do MpD como alternativa governamental para uma eventual primeira alternância política, ademais democrática, no Cabo Verde pós-colonial."
ALGUMAS NOTAS POLÍTICAS E HISTÓRICAS AVULSAS, QUIÇÁ DESAFIANTES E PROVOCATÓRIAS, A PROPÓSITO DA MUDANÇA POLÍTICA CABOVERDIANA DOS INÍCIOS DOS ANOS NOVENTA DO SÉCULO XX, PROPOSITADAMENTE EVOCADA E INVOCADA POR OCASIÃO DA CELEBRAÇÃO DO CENTENÁRIO NATALÍCIO DE AMÍLCAR CABRAL E CONSTANTES DO MEU LIVRO EM PROCESSO DE EDIÇÃO E INTITULADO "AMÍLCAR CABRAL-O MAIOR MORTO IMORTAL DOS POVOS DE CABO VERDE E DA GUINÉ-BISSAU DO PONTO DE VISTA HISTÓRICO-POLÍTICO"
PRIMEIRA PARTE
I
CONSIDERAÇOES SOBRE O PERÍODO DE TRANSIÇÃO POLÍTICA DEMOCRÁTICA, OS TEMPOS E OS MODOS DA MUDANÇA DO REGIME POLÍTICO CABOVERDIANO DE PARTIDO ÚNICO SOCIALIZANTE E DA SEQUENTE E CORRELATIVA EMERGÊNCIA DA SEGUNDA REPÚBLICA CABOVERDIANA E DA PRIMEIRA VARIANTE DE UM ESTADO CABOVERDIANO DE DIREITO DEMOCRÁTICO
A Abertura Política, decidida pelo Conselho Nacional do PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde) como o mais importante resultado da sua reunião, realizada de 12 a 19 de Fevereiro de 1990, na sequência de uma sua anterior reunião, realizada em Dezembro de 1989, para a discussão, o debate e a deliberação sobre o aperfeiçoamento do sistema político caboverdiano, e anunciada, a 19 de Fevereiro de 1990, por Pedro Pires, Secretário-Geral Adjunto do mesmo partido, apanhou de surpresa a generalidade dos observadores políticos da sociedade caboverdiana, tendo despoletado imensa ansiedade e criado diversas apreensões e justificadas expectativas em relação a uma eventual mudança política, quer entre a massa militante do partido único socializante, quer ainda no seio da sociedade civil das ilhas e diásporas, tanto nos seus tradicionais círculos políticos oposicionistas do tegime de partido único socializante, como também naqueles círculos intelectuais, burocrático-administrativos e empresariais a ele afectos, mas por vezes dele simultaneamente assaz críticos enquanto colaboracionistas rebeldes do sistema político-económico vigente no arquipélago saheliano e cidadãos activos que faziam por manter profícuos e não despiciendos laços comestíveis com o mesmo sistema político-económico.
Por isso, e mesmo se desprovida, desacompanhada e/ou não seguida de manifestações de júbilo popular e de outras típicas expressões de geral regozijo por mor da libertação de presos políticos, que não havia, do regresso de exilados políticos, sendo que quase todos abandonaram de forma voluntária o seu amado país natal, ou de outras expressões públicas de sentida indignação e/ou de irreprimível cólera ante alegadas, presumidas, (re)conhecidas e/ou comprovadas atrocidades e iniquidades cometidas por uma execrada e odiada polícia política, como anteriormente ocorrido na sequência da eclosão das liberdades democráticas em resultado e na sequência do golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 na antiga Metrópole colonial e cujas réplicas de alegria chegaram finalmente a um Cabo Verde em patente e entusiástica euforia, efusivamente demonstrada na libertação, a 1 de Maio de 1974, dos prisioneiros políticos caboverdianos, angolanos e bissau-guineenses encarcerado no temido e famigerado Campo de Concentração do Tarrafal, bem como dos eventos recentemente ocorridos na sequência das mudanças políticas promovidas pelas oposições políticas emergentes e pelas novas elites políticas dirigentes de alguns países do Leste Europeu, com destaque para a Queda do Muro de Berlim, a 9 de Novembro de 1989, a Abertura Política caboverdiana, anunciada a 19 de Fevereiro de 1990 pelo Conselho Nacional do PAICV, teve imediatas repercussões e muito relevantes consequências na configuração do panorama político e jurídico-legal até então prevalecente nas ilhas e diásporas caboverdianas.
De entre essas repercussões e consequências destacamos as seguintes:
i. A publicação/apresentação para subscrição pública, a 14 de Março de 1990, da Declaração Política do MpD (Movimento para a Democracia), a qual marcou o nascimento de um novo movimento político, e na qual foi exposta a primeira e essencial ossatura do seu futuro Programa Político, a apresentar quando tivesse a oportunidade de se transformar em partido político plenamente legal, e trouxe a público as suas primeiras e impactantes reivindicações, nomeadamente a eleição do Presidente da República por sufrágio universal, directo, igual e secreto e a limitação do seu respectivo mandato; a alteração do artº 1º, nº 2, da vigente Lei das Associações, por forma a nela acolher e incluir as associações políticas e, assim, propiciar a emergência de diferentes correntes de opinião e plataformas políticas para a competitiva participação, em relativa igualdade com o partido único governante e com as suas organizações sociais de massas, nas eleições legislativas programadas para serem realizadas em Dezembro desse mesmo ano de 1990; a consagração do direito de greve e a garantia da liberdade e do pluralismo sindicais com concomitante fim da obrigatotiedade legal da unicidade sindical; a dissolução da polícia política; a despartidarização das Forças Armadas; a garantia da independência dos jornalistas e da isenção da comunicação social do Estado, etc..
Ademais, propunha-se o MpD a colaborar com todas as forças políticas, tanto as já existentes enquanto partido único governante e enquanto forças políticas oposicionistas, obrigadas, até agora, a actuar somente na clandestinidade, como também aquelas que viessem a emergir no novo cenário político das ilhas, para a implantação de um sistema político democrático e pluralista no país, considerando outrossim que, por nunca ter existido em Cabo Verde, a democracia tinha de ser construída ex novo e de raiz no nosso país, mantido sob um regime político autoritário e não democrático desde a proclamação da sua independência política a 5 de Julho de 1975, assim, e deste modo, opondo-se e contrapondo-se o MpD radical e diametralmente aos dirigentes e aos ideólogos do PAICV, os quais persistiriam, segundo o MpD, em defender que, no caso caboverdiano, a mudança política visaria a reforma do regime político vigente mediante a transformação de um regime político democrático unipartidário num regime político democrático multipartidário.
Neste contexto, o MpD afirmou adoptar os princípios da liberdade, da democracia e da justiça social, assentes no maior marco político da história do povo de Cabo Verde que teria sido a conquista da sua independência política, e com base em políticas visando prioritariamente a diminuição do fosso social entre ricos e pobres e a diminuição dos desequilíbrios regionais, o combate à pobreza, ao nepotismo, à corrupção e ao desperdício e à má utilização dos dinheiros públicos, o MpD declarou propor-se a mudança radical do rosto político, económico, social e cultural de Cabo Verde, mudança essa que seria plasmada no seu Programa Político a ser oportunamente apresentada e se reflecteria numa proposta de profunda revisão constitucional, a ser apresentada no ano de 1991 (presume-se que depois e na sequência da realização da programadas eleições legislativas de Dezembro de 1990), e cujos pontos essenciais deveriam ser: a efectiva separação entre os poderes legislativo, executivo e judicial; a garantia efectiva da independência dos juízes e dos tribunais; a eleição do Presidente da República por sufrágio universal, directo e secreto e a limitação temporal do seu mandato; a incompatibilização entre o exercício de funções de membro do governo, de magistrado e de deputado; a criação de um Tribunal Constitucional; a liberdade de criação de partidos políticos; o fim da unicidade sindical; a edificação de um poder local forte, autónomo, descentralizado e livremente eleito pelas comuninades locais por forma a garantir a participação de todos os concelhos e ilhas no processo do desenvolvimento equilibrado e equitativo do país; a criação de um Conselho de Comunicação Social para a garantia da independência dos jornalistas, da isenção, da objectividade, da imparcialidade e do pliuralismo dos órgãos de comunicação social e da igualdade de acesso aos mesmos por parte de todos os partidos políticos e de todas as correntes de opinião presentes na sociedade caboverdiana.
Deste modo, e passado quase um mês depois do início da Pirestroika (termo cunhado pelo falecido jornalista caboverdiano Manuel Delgado com o inequívoco propósito e o claro fito de suscitar similitudes políticas e semânticas positivas entre a Abertura Política caboverdiana e a Perestroika soviética, despoletada pelo Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachov), o MpD surgiu como um movimento político independente e/ou oposicionista unificado visando primacialmente superar a dispersão política e a eventual falta, insuficiência e/ou ausência de unidade programática, alegadamente pretendida pelo PAICV, dos grupos de cidadãos convocados pela Direcção Política do partido único governante, a participar, conjunta e concorrencialmente com ele, enquanto força política dirigente da sociedade e do Estado, e com as suas organizações sociais de massas, nas programadas eleições legislativas de Dezembro de 1990. Dessas eleições legislativas deveria resultar na óptica do PAICV uma nova Assembleia Nacional Popular de composição politicamente pluralista e que teria como tarefa fundamental a promoção de uma profunda revisão constitucional com vista à revogação do artº 4º e dos artigos conexos da Constituição Política de 25 de Setembro de 1980 na sua redacção de 14 de Fevereiro de 1981, que, como era consabido, consagravam o PAICV como força política dirigente da sociedade e do Estado.
ii. A realização no mês de Abril de 1990 da V Reunião Ordinária do Conselho Nacional do PAICV, para aprimorar e eventualmente mudar o perfil da Abertura Política Democrática, com a proposta de realização no mês de Novembro de 1990 de eleições presidenciais por sufrágio universal, directo e secreto por proposta de grupos de cidadãos independentes, e no mês de Fevereiro ou de Março de 1991 de eleições legislativas pluripartidárias, isto é, com a participação de outros partidos políticos para além do PAICV, e não mais somente com a participação do PAICV e de grupos de cidadãos independentes, como inicialmente previsto na Declaração do Conselho Nacional do PAICV, de 19 de Fevereiro de 1990, de anúncio da Abertura Pública Democrática. A V Reunião Ordinária do Conselho Nacional do PAICV procedeu igualmente à calendarização de algumas actividades fundamentais para a concretização da Abertura Política Democrática, anunciada em 19 Fevereiro de 1990, quais sejam a convocação de um Congresso Extraordinário do partido a ter lugar no mês seguinte de Julho; a recomendação aos órgãos competentes do Estado da realização de uma sessão legislativa da ANP, já no mês de Maio seguinte, para a aprovação de algumas Leis estruturantes da Abertura Política Democrática, como, por exemplo as Leis regulamentadoras/reguladoras das liberdades de reunião e de manifestação e a Lei consagradora da liberdade de criação de associações políticas bem como a revogação do artº 50º da Lei de Imprensa (que incriminava a imputação de factos ofensivos ao Chefe de Estado, não admitindo a prova da verdade dos mesmos factos), da famigerada Lei do Boato e de outras normas e diplomas legais repressivos, primacialmente de natureza processual-penal, como aquela que permitia a detenção sem culpa formada de suspeitos por mais de seis meses pelas FSOP (Forças de Segurança e Ordem Pública). Ademais, a V Reunião Ordinária do Conselho Nacional do PAICV recomendou aos órgãos estatais competentes a tomada das medidas necessárias e pertinentes para a realização, no mês de Setembro de 1990, de uma sessão legislativa da ANP para a revisão constitucional de consagração do pluripartidarismo político e para a aprovação de outras Leis estruturantes da transição política democrática e da radical mudança do regime político caboverdiano.
Reagindo a essa reunião do Conselho Nacional do PAICV e às suas deliberações, num comunicado assinado pelo seu Coordenador Provisório, Carlos de Carvalho Veiga, o MpD diz congratular--se com a constatada irreversibilidade do processo de transição democrática em curso e mostra-se satisfeito com o acolhimento por parte da Direcção do PAICV da sua proposta de eleição do Presidente da República por sufrágio universal, directo e secreto bem como da sua proposta de alteração da vigente Lei das Associações visando alargá-la às associações políticas, mas afirma-se completamente contrário à realização de eleições presidenciais já no mês de Novembro de 1990, alegando que a calendarização dessa eleição teria em vista não a remoção de alegados bloqueios à transição política, mas a solução de problemas de sucessão política no seio do PAICV, pelo que o mais importante, do ponto de vista do MpD, deveria ser a promoção de uma revisão constitucional imediata, se bem que reduzida ao mínimo possível, já na programada sessão legislativa de Maio da ANP, com vista à remoção dos artigos 4º e 46º da Constituição Política caboverdiana vigente bem como a adopção da Lei dos Partidos Políticos e da Lei de Bases do Estatuto da Oposição, para além, obviamente, da Lei das Associações Políticas. Ademais, lamentou o MpD que o Conselho Nacional do PAICV não se tivesse pronunciado sobre as suas exigências de extinção da polícia política, de despartidarização das Forças Armadas e da salvaguarda da isenção da comunicação social do Estado, exigindo ademais o corte imediato de subsídios públicos ao PAICV e às suas organizações sociais de massas a partir do OGE (Orçamento Geral do Estado).
Numa carta subsequente dirigida ao Presidente da República, também subscrita pelo seu Coordenador Pricvisório, Dr. Carlos de Carvalho Veiga, o MpD reclamou de novo contra a alegada falta de isenção dos órgãos de comunicação social do Estado no tratamento de eventos promovidos pela oposição política emergente e o seu suposto flagrante desequilíbrio em relação aos eventos promovidos pelo partido do governo e, por isso, exigiu a imediata demissão do ministro titular da pasta da comunicação social, exigência que doravante, e conjuntamente com as exigências de corte de subsídios públicos, nos termos acima referidos, de revisão constitucional imediata e mínima, de despartidarização das Forças Armadas e de extinção da polícia política farão parte da agenda de reivindicação e de mobilização políticas permanentes do MpD, comprovando-se a mesma como assaz produtiva, asseverando-se depois como decisiva, em especial quando e enquanto o MpD se viu e pôde colocar-se, sobretudo a partir da segunda metade do mês de Maio e a primeira metade do mês de Junho, quase completamente sozinho no terreno político encetando uma longa e eficaz campanha de mobilização política das populações de todos os concelhos do país e de todas as ilhas e diásporas caboverdianas, ficando o PAICV a ocupar-se primacialmente com o convencimento das suas próprias bases militantes da pertinência, da oportunidade e da tempestividade políticas das mudanças já encetadas e em curso e a assegurar-se da concretização das exigíveis e correspondentes adaptações e mudanças institucionais, político-legais e jurídico-constitucionais demandadas pelo doravante célere processo de transição política democrática.
iii. A subsequente e acelerada pluripartidarização de facto da sociedade caboverdiana das ilhas e diásporas, com a realização da primeira Conferência de Imprensa do MpD a 5 de Maio de 1990, no Hotel Praia-Mar, da cidade capital do país, dirigida por Eurico Correia Monteiro, e a realização da sua primeira sessão pública de esclarecimento no dia 6 de Maio de 1990, no Centro Social Primeiro de Maio, sito no bairro da Fazenda, na cidade da Praia, tendo sido Carlos Veiga o principal orador dessa sessão de esclarecimento também entendida como o Primeiro Encontro Nacional do MpD).
A acima-referida pluripartidarização da sociedade caboverdiana caboverdiana viria a ser reforçada com a actividade política, se bem que assaz incipiente, de algumas associações políticas, como a USD (Associação Social-Democrata), do engenheiro Jorge Ferreira Querido e do arquitecto Pedro Rolando Martins, e a Associação Democrata-Cristã, do padre António Fidalgo Barros e do arquitecto António Jorge Delgado, bem como da histórica UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática), fundada em Roterdão, a 13 de Maio de 1978, com o regresso do exílio de alguns dos seus dirigentes, como, por exemplo, António Gumercindo Chantre, tendo, até então, sido obrigada nas ilhas a actuar na clandestinidade política, tal como, aliás, os CCPD (Círculos Cabo-Verdianos para a Democracia), fundados em Portugal por Jorge Carlos Fonseca, nos inícios dos anos oitenta, e integrados por círculos políticos oposicionistas conotados, nas ilhas e diásporas, a par do GRIS (Grupo de Intervenção Socialista), com o antigo fraccionismo e a passada dissidência trotskistas no seio do PAIGC, sendo que enquanto o GRIS permaneceu durante o período antecente da Queda do Muro de Berlim como um grupúsculo de obediência trokskista, os membros dos CCPD passaram, paralela e/ou conjuntamente com outros antigos radicais de esquerda, de filiações várias nominalmente maoístas, estalinistas, luxemburguistas, marxista-leninistas e outras similares, a integrar várias correntes políticas de esquerda, centro-esquerda, centro-direita e, até, da direita, tendo evoluído para a defesa e a promoção da democracia liberal, de matriz ocidental, e a sua urgente implantação em Cabo Verde como a questão política prioritária.
Tendo um grande número de membros dos CCPD regressado a Cabo Verde depois da conclusão dos seus estudos universitáris e ocupado posições e cargos de relevo nos sectores administrativo e empresarial do Estado bem como no sector privado e nas organizações da sociedade civil caboverdiana, como, por exemplo, o IPAJ (Instituto de Patrocínio e Assistência Judiciários), esses mesmos membros dos CCPD viriam a desempenhar um papel decisivo e preponderante na fundação, na organização, na promoção, na disseminação e na credibilização do MpD como alternativa governamental para uma eventual primeira alternância política, ademais democrática, no Cabo Verde pós-colonial.
iv. A realização em Julho de 1990 do Congresso Extraordinário do PAICV para avalizar todas as propostas do seu Conselho Nacional relativas ao novo perfil da Abertura Política Democrática e propô-las aos órgãos competentes do Estado para a devida e tempestiva aprovação na sessão legislativa de Setembro/Outubro da ANP.
vi. A realização nos inícios de Setembro de 1990 de negociações entre o PAICV e o MpD bem como entre o PAICV e a UPICV (tendo a UCID estranhamente indicado o MpD para a representar nas negociações ciom o PAICV, depois de num primeiro ter exigido a deslocação de uma Delegação do PAICV aos EUA para com ela negociar directamente) para a calendarização definitiva da transição política democrática e para o tratamento de outras importantes questões relacionadas com a revisão constitucional, agendada para o o fim desse mesmo mês de Setembro/início do próximo mês de Outubro de 1990. Nessas mesmas negociações, o MpD conseguiu que o PAICV aceitasse a sua proposta de realização das eleições legislativas antes da realização das eleições presidenciais, mas não da sua proposta de revisão mínima da Constituição e reduzida à revogação do artº 4º e do artº 46º e a sua substituição por normas consagradoras da livre formação de partidos políticos, tendo o PAICV contraposto a sua proposta, depis apoiada pela UPICV, da consagração de um sistema de governo semipresidencial e parlamentar em lugar do até então vigente sistema de governo semipresidencial de assembleia, a) conferindo ao Chefe de Estado as novas competências de livre dissolução do parlamento e de nomeação e de exoneração do Primeiro-Ministro; de veto político contra diplomas emanados do governo e do parlamento; e b) atribuindo à ANP as novas competências de testemunhar a posse do Presidente da República eleito; de autorizar a saída e a ausência do país do Presidente da República; de aprovar o Programa do Governo; de apresentar moções de confiança e moções de censura ao Governo; de superar o veto político do Presidente da República, etc.
vii. A consagração de jure do pluralismo político e social e do multipartidarismo pela revisão de 29 de Setembro de 1990 da Constituição Política caboverdiana de 5 de Setembro/de 14 de Fevereiro de 1981 e a aprovação pela ANP nos termos consignados nas correspondentes propostad do PAICV de um pacote de Leis Ordinárias estruturantes, quais sejam a Lei dos Partidos políticos e do Estatuto da Oposição Democrática, a nova Lei para a Eleição dos Deputados à Assembleia Nacional Popular (ANP) por sufrágio universal, directo, igual e secreto, pela primeira vez no Cabo Verde pós-colonial em listas plurinominais e solidárias apresentadas por partidos políticos; a inédita Lei para a Eleição do Presidente da República, igualmente e, pela primeira vez no Cabo Verde pós-colonial, por sufrágio universal, directo, igual e secreto e por proposta de grupos de cidadãos independentes e com eventual apoio de partidos políticos, bem como das também inéditas Lei do Direito de Antena Política, Lei da Resposta e da Réplica Políticas e Lei da Greve e da Proibição do Lock Out. Estas novas Leis Ordinárias vieram juntar-se às também inéditas Leis Regulamentadoras da Liberdade de Reunião e da Liberdade de Manifestação e da Lei Consagradora da Liberdade de Criação de Associações Políticas, aprovadas na sessão legislativa de Maio de 1990 da mesma ANP. Toda essas Leis Ordinárias vieram complementar e completar a Revisão Constitucional de 29 de Setembro de 1990 no quadro de um novo regime político, doravante de perfil inegável e nitidamente pluralista de facto e de jure, e, por isso, susceptível de ser classificado como um Estado de Direito Democrático, posto que transfigurado em regime político pluripartidário num estádio muito avançado de sedimentação e efectivação, ainda nos transactos tempos do regime de partido único socializante, dos pilares essenciais de um Estado de Direito, formal e material.
Tanto mais que o regime político pluralista e multipartidário emergente ficou marcado, imediatamente depois, por medidas fundamentais da iniciativa do MpD, ganhador com maioria qualificada das eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991, e, por isso, alcandorado ao poder político como um "Governo de Regime", como oportuna e tempestivamente asseverado por Carlos Veiga na sua tomada de posse como novo Primeiro-Ministro de Cabo Verde perante o novo Presidente da República eleito do nosso país, António Mascarenhas Gomes Monteiro, bem como na apresentação do seu primeiro Programa de Governo ao plenário da ANP na sua nova legislatura, doravante bipartidária, quais sejam: a dissolução formal e expressa dos serviços de segurança do Estado considerados integrantes da vituperada polícia política bem como a extinção de outros organismos remanescentes dos tempos do regime de partido único socializante, como os tribunais de zona, as comissões de moradores, as comissões de reforma agrária, as comissões de litígios de trabalho e as milícias populares, severamente vilipendiados eexecrados pelo MpD como sendo próprios e típicos desse mesmo regime político, por isso, qualificados como politicamente repressivos, e ademais considerados infestados de militantes do antigo partido único; a conclusão da despartidarização das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) e das FSOP (Forças de Segurança e Ordem Públicas), tendo esse mesmo processo de despartidarização sido, aliás, iniciado ainda durante a governação do PAICV, com a proibição de os seus membros no activo poderem candidatar-se a cargos electivos e com a colocação na reforma dos Comandantes e demais Oficiais que quisessem continuar na vida política activa ou nela enveredar (para o caso específico das FSOP); a aprovação da nova Lei que consagrou o pluralismo sindical e extinguiu a obrigatoriedade legal da unicidade sindical; a aprovação de novas leis autárquicas, reformadoras daquelas aprovadas ainda em Julho de 1989 para a realização de eleições relativamente pluralistas dos órgãos do poder local com a participação do PAICV e de grupos independentes de cidadãos, bem como a realização de eleições para os órgãos de um novo poder local democrático plural e descentralizado com a participação de partidos políticos e de grupos de cidadãos indedpendentes.
Nesta concreta óptica, é o Estado caboverdiano resultante da transição política de 1990/1991 passível de ser caracterizado e qualificado como plenamente de Direito Democrático, do ponto de vista do respeito da dignidade da pessoa humana, da garantia das liberdades e dos direitos cívicos e políticos dos cidadãos, bem como, mas em muito menor medida, dos seus direitos económicos, sociais e culturais, da garantia da independência dos juízes e dos tribunais, da efectiva separação entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, da existência de um poder local descentralizado e democrático e da emergência e da consolidação de uma imprenda livre e de uma cada vez mais pujante e pluralista sociedade civil. Na nossa provisória opinião, foi outrossim com a Revisão Constitucional de 29 de Setembro de 1990 e as Leis de Mudança Política aprovadas ao seu abrigo, à sua sombra fundamental e/ou tendo-a no horizonte, que não só se consagrou de jure um novo regime político, pluralista e multipartidário bem assim um Estado de Direito Democrático, dos pontos de vista formal e material, mas que, do ponto de vista jurídico-formal, teve igualmente o seu início a Segunda República caboverdiana, que teve depois, a 13 de Janeiro, a 17 de Fevereiro e em Dezembro de 1991, a completa legitimação política dos novos titulares dos órgãos do poder de Estado e do poder local mediante a realização de eleições livres, pluralistas e pluripartidárias e, por isso isso, plenamente livres e inteiramente democráticas.
Esse novo regime político caboverdiano, devidamente consubstanciado num Estado de Direito Democrático, formal e material, e inaugural da Segunda República caboverdiana, permaneceu todavia, do ponto de vista da enunciação dos seus princípios e objectivos jurídico-constitucionais, muito marcado pelo flagrante dirigismo público nos domínios político, económico, social e cultural e pela insofismável e incontornável dominância da propriedade do Estado em sectores essenciais da economia, mesmo depois da liberalização da parte económica da Constituição Política caboverdiana, de 5 de Setembro na sua redacção de 14 de Fevereiro de 1981, promovida pela Revisão Constitucional de 27 de Dezembro de 1988, na sequência da política da reorientação da economia caboverdiana para a sua extroversão, decidida pelo III Congresso do PAICV, de Novembro de 1988, ainda em plena vigência do regime de partido único socializante.
Deste modo, a Constituição Política da República caboverdiana de 5 de Setembro de 1980, na sua redacção de 14 de Fevereiro de 1981, manteve-se refém e prisioneira da sua original matriz socializante e da sua denominação nacional-democrático-revolucionária porque impondo programaticamente a toda a sociedade num horizonte político-social de médio e/ou longo prazos, indiferente a eventuais alternâncias políticas e governamentais e cuja legitimidade tem de ocorrer necessariamente por via exclusivamente eleitoral, a construção de uma “sociedade liberta da exploração do homem pelo homem” e “da sujeição da pessoa humana a interesses degradantes de indivíduos, grupos e classes”, isto é, de uma sociedade de matriz socialista e humanista, do ponto de vista material, por isso mesmo, susceptível de ser qualificada como autoritária, se bem que somente dos pontos de vista formal e nominal.
viii. A realização, em Novembro de 1990, da primeira Convenção Política do MpD. Nessa Convenção Política, integrada por delegados vindos de todos os concelhos e ilhas do país e dos mais importantes países de radicação das diásporas caboverdianas, o MpD apresentou-se como um amplo movimento político-social, congregador, inclusive do ponto de vista orgânico, de (quase) toda oposição política emergente, incluindo de todas as antigas facções políticas dissidentes do PAIGC-CV/PAICV em diferentes períodos históricos, bem como dos adversários políticos históricos de uma ou de mais vertentes da sua ideologia política nacionalista revolucionária, pan-africanista e progressista e do seu regime político de democracia nacional revolucionária, quais sejam o seu projecto pós-colonial de unidade Guiné-Cabo Verde, o seu ideário político socializante e o seu autoritarismo revolucionário, mais recentemente acrescidos das suas concepções e políticas económicas fundadas nos conceitos de economia nacional independente, de desenvolvimento tripolar do país, de substituição das importações e de reciclagem da ajuda externa e dass remessas dos emigrantes, a sua ideologia culturalista afro-crioulista, posteriormente, sobretudo depois do colapso do projecto pós-colonial de união orgânica entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde, contaminada, postergada e pejada de derivas barlaventistas e neo-claridosas fortemente regionalistas e bairristas, etc.).
Tenha-se em conta nesse contexto que o desiderato do MpD de congregação político-social de todas as vozes oposicionistas (ou, igualmente, descontentes e críticas mesmo no seio da massa militante do antigo partido único) no quadro orgânico de uma ampla frente unida anti-paicvista foi sobremaneira favorecida pelos seguintes factores e circunstâncias:
1) O amplo e comprovado conhecimento por parte dos mais importantes dirigentes, responsáveis, quadros e activistas do MpD dos muitos problemas, estrangulamentos e atribulações com que, no seu dia-a-dia, se confrontavam as populações dos vários concelhos, localidades, zonas e ilhas do país , bem como dos anseios, das aspirações e dos sonhos que acalentavam;
2) A vasta e diversificada experiência política desses mesmos dirigentes, responsáveis, quadros e militantes do MpD, bastas vezes colhida durante e no quadro da sua antiga militância no PAIGC-CV/PAICV e nas suas organizações sociais e de massas.
3) A presença dos seus membros em lugares nevrálgicos e em cargos relevantes da administração e da gestão quotidianas do país (incluindo nos tribunais e nas forças de segurança e ordem pública, nos hospitais, nas escolas, nas empresas, nas cooperativas, nas repartições públicas, nos gabinetes de estudos, nos centros de investigação, nos serviços municipais, no comércio, nas fábricas, na prestação de serviços, nas organizações autónomas da sociedade civil, etc.,) e o seu correlativo envolvimento numa aura de competência e de dedicação na resolução dos ingentes problemas do país e das suas populações, o que, se por um lado, servia para justificar o seu bastas vezes dúbio papel e controverso estatuto de colaboracionistas, mesmo que alegadamente rebeldes ou forçados, do agora publicamente e por demais detestado, vituperado e execrado regime de partido único socializante e servir outrossim de alibi para justificar o entretecimento de laços comestíveis, de outro política e moralmente condenáveis, com o mesmo regime político e o seu sistema administrativo e económico-empresarial, por outro lado, servia para explicar a relativa e inegável moderação repressiva do mesmo regime político e o prestígio de que os seus dirigentes gozavam junto dos seus parceiros internacionais bilaterais e multilaterais, alegadamente em razão da sua boa governação e da gestão eficiente e transparente dos escassos recursos nacionais e dos recursos postos à sua disposição pela comunidade internacional, a isso acrescendo o seu modo de vida simples, austero e aparentemente incorruptível, embrenhados que pareciam estar, tal como propugnado pelo omnipresente ideólogo e guia imortal Amílcar Cabral, no processo de suicídio de classe enquanto clase de serviços pequeno-burguesa, se bem que também marcado por um certo distanciamento físico, social e simbólico, bastas vezes ritualizado, em relação às populações comuns dos centros urbanos e dos meios rurais das ilhas e diásporas e do seu difícil e sacrificado dia-a-dia.
4) O fracasso e a incapacidade da UCID em possibilitar o regresso atempado ao país para a sua confrontação política com o partido governante, o PAICV, o não alargamento da sua escassa implantação política no país, reduzida quase que às ilhas nortenhas de Santo Antão e de São Vicente e a correlativa impossibilidade de o mesmo partido, politicamente implantado sobretudo nos países de residência das diásporas caboverdianas, de se legalizar junto do Supremo Tribunal de Justiça e do impedimento da sua admissão como partido histórico caboverdiano e correspondente isenção de preenchimento dos apertados requisitos exigidos pela recentemente adoptada Lei dos Partidos Políticos, tal como proposto pelos deputados David Hopffer Almada e Francisco Correia, mas não aceite pelo Plenário da ANP, que todavia atribuiu ao PAICV esse mesmo estatuto de partido histórico.
As considerações acima expendidas sobre a UCID podem ser também aplicadas mutatis mutandis à UPICV-R, de José Leitão da Graça, mas de forma muito mais agravada pois que nos não parece crível que o seu líder histórico tenha alguma vez deixado de professar uma compreensão estritamente estalinista/maoísta/enver-hoxhista do seu marxismo-leninismo de obediência albanesa, também ele fustigado e varrido do mapa pelos ventos da mudança democrática na Europa de Leste. A sua adesão à mudança política em Cabo Verde significava sobretudo, como, aliás, confessou em entrevista, que a revolução socialista deixou de estar na ordem do dia político, quer em Cabo Verde, quer em outras partes da África ou do mundo. Ademais, e na verdade, parecia que, fora do círculo etritamente familiar de José Leitão da Graça, a UPICV-R parecia não ter militantes e simpatizantes, nem sequer se preocupando em tê-los. Daí, a sua irónica designação de “partido conjugal” pelo jornalista José Vicente Lopes.
Com a realização da sua primeira Convenção Política Nacional, o MpD passou a dispor de um coerente, credível e desenvolvido Programa Político, dos órgãos estatutários respaldados nos respectivos Estatutos e de uma enorme e justificada sede de governação do país fundada na sua legítima ambição da devida e tempestiva concretização da aventura democrática de que se dizia ser, se bem que erroneamente, o principal demiurgo e, se possível, almejava ser o exclusivo protagonista no Cabo Verde pós-colonial.
Por sua vez, Carlos Veiga, o até agora Coordenador Provisório do MpD, emerge como o líder incontestado e o primeiro Presidente do MpD, estatuto político que se consolida durante as seguintes campanhas eleitorais vencedoras e o projectam para a figura de líder histórico do MpD e um dos principais rostos da mudança democrática em Cabo Verde ou, como ele próprio prefere dizer, da revolução pacífica que assolou Cabo Verde e engendrou a sua transição política democrática, iniciada com a Abertura Política Democrática, de 19 de Fevereiro de 1990, e culminada e concluÍda, do ponto de vista político e jurídico-constitucional, com a aprovação da Constituição Política caboverdiana, de 25 de Setembro de 1992. Estatuto de rosto da mudança democrática ou, tout court, da democracia caboverdiana, que Carlos Wahnon de Carvalho Veiga certamente partilha com Aristides Maria Pereira, Pedro Verona Rodrigues Pires, Abílio Augusto Monteiro Duarte, Olívio Pires, David Hopffer Cordeiro Almada, André Corsino Tolentino, João Pereira Silva, António Mascarenhas Gomes Monteiro, Lídio Silva, Felisberto Vieira Lopes, Onésimo Silveira, o padre António Fidalgo Barros, Jorge Carlos de Almeida Fonseca, Eurico Correia Monteiro, Manuel Faustino, José Tomás Wahnon de Carvalho Veiga, Germano Almeida, Aristides Raimundo Lima, Bartolomeu Varela, José Maria Pereira Neves, Manuel Inocêncio Sousa, Armindo Maurício, Alfredo Teixeira, Arnaldo Silva, Teófilo Santos Silva, António Gualberto do Rosário Almada, Amílcar Spencer Lopes, António Espírito Santo Fonseca, Jacinto Abreu Santos, Felisberto Alves Vieira, José António dos Reis, António Monteiro e tantos outros proeminentes políticos e intelectuais caboverdianos que, com diferentes posicionamentos político-ideológicos e colocados em trincheiras diversas, adversárias por definição, mas sempre necessárias, porque germinadoras, complementadoras e enriquecedoras do consenso e do dissenso democráticos, puderam integrar o povo da independência, que depois se fez ressurgir como povo da democracia, e, certamente anteviram e almejam integrar num futuro próximo tacteável como o povo do desenvolvimento do nosso país, protagonizando ademais duas e mais alternâncias políticas democráticas, consabidamente todas decisivas para a consolidacão e a qualificação do Pluralismo Político-Social, da Democracia e do Estado de Direito Democrático e Social, consagrados na Constituição Política caboverdiana de 25 de Setembro de 1992 e nas suas várias, enriquecedoras e cada vez mais consensualizadas Revisões Constitucionais.
(Continua...)
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