Carta Aberta
Estimado Colega,
Permite-me antes de proferir qualquer consideração, expressar publicamente o quanto admiro e reconheço o teu trabalho de intervenção artística. Acredito que tens contribuído para a reflexão do que são as cidades, vilas, ruas, fábricas e becos destas nossas agitadas metrópoles. Merecida homenagem aos profissionais que te acompanham e, de forma laboriosa dão corpo ao teu ideário estético.
Escrevo esta carta aberta Alexandre, por não ter outra forma de manifestar a minha estupefacção pela forma como conduziste as tuas últimas intervenções em Cabo Verde, nomeadamente na fachada da Escola de Achada Frente, na Cidade da Praia, e na Praceta D.Luís na cidade de Mindelo.
Alexandre, talvez não saibas e por isso tens o direito de ser esclarecido.
Todos aqueles que chegam pela primeira vez à capital Cabo-Verdiana ficam convencidos que Plateau é o centro da cidade. No entanto, é na Achada Grande (e noutros bairros semelhantes), que está o pulsar da cidade.
Achada Grande é um daqueles lugares onde as tensões sociais são particularmente intensas e expressivas. Esta inquietação é provocada pelo constante corrupio de gentes que entram e saem do bairro, da contínua transformação das ruas e casas, do crescimento abrupto das populações oriundas do continente africano, e do rico caldo cultural que todos contribuem e vivem mergulhados. Tudo isto faz do bairro um espaço singular.
Esta singularidade e as suas intrínsecas idiossincrasias faz da Achada Grande um excelente laboratório de experimentação e de análise para cientistas sociais, activista, arquitectos benfeitores e outros tantos que (geralmente oriundos de lugares mais a norte) se auto proclamam “amigos da cooperação”.
Estes amigos cooperantes, são geralmente financiados por entidades externas e a sua fonte de financiamento é por vezes obscura, ou pouco transparente.
O que talvez não saibas Alexandre, é que muitos destes amigos têm importantes negócios em Cabo Verde e pouco ou nada contribuem para a qualidade de vida das populações das Achadas onde as condições são mais penosas e em muitos casos de verdadeira luta pela sobrevivência.
Talvez Alexandre não tenhas tido o tempo necessário para investigar quem são e o que fazem algumas das ONG's que operam em território cabo-verdiano, quais as suas verdadeiras intenções, motivações e estratégias caridosas. Talvez…
Se desconheces estas e outras realidades, já decerto ouviste falar dos paraísos fiscais e dos milhões que Cabo Verde “guarda” de muitos países europeus, sobretudo de Portugal.1
Acredito que se soubesses destes factos, terias representado o Amílcar Cabral com um semblante triste, o rosto de um homem desiludido e cansado por ver tantos dos seus ideais esquecidos e vilipendiados por aqueles que governam esta jovem nação independente.
Bastava ouvires o povo que fala nas ruas, nos bairros, nas praças e feiras, nas escolas e universidade, no trabalho e no campo. Este é um povo que por vezes expressa-se aos gritos, outras vezes, com um olhar cabisbaixo, triste e sem esperança.
Eu sei Alexandre, a vida de artista com o teu estatuto é muito preenchida. És considerado o “português do ano”2, o representante oficial das obras de estado, é uma vida cansativa e nem sempre tens tempo para fazer o necessário trabalho de investigação. Afinal, o teu trabalho na Cidade da Praia era simples e nada tinha para correr mal - criar um mural legal e decorativo de dimensões consideráveis de forma a envolver o palestrante no dia da inauguração. Missão cumprida!
É Lamentável quando um artista de intervenção se submete aos humores dos seus patrocinadores, e às suas agendas mediáticas. O nosso trabalho deixa de ser de intervenção para se transformar em decoração publicitária. Morre o artista nasce o entertainer.
Este poderia ser um momento único e triste na tua passagem por Cabo Verde. Infelizmente a tua intervenção na cidade do Mindelo foi ainda mais (perdoa-me a crueza das minhas palavras) desastrosa.
Quando chegaste à cidade de Mindelo deparaste-te com uma sociedade vibrante, contestatária, orgulhosa do seu passado, irrepreensível na sua postura cívica e profundamente empenhada e vigilante na defesa dos seus direitos e destinos. Bem diferente daqueles governantes e outros políticos com cargos de responsabilidade cívica que encontraste na Praia.
Muitos Mindelenses esperavam de ti um artista desperto para a realidade social desta cidade. Mas infelizmente Alexandre (mais uma vez) ficaste encantado com a “morabeza”, do tempo-leve e do passa-devagar, da Laginha acolhedora e morna, que te fez esquecer os reais problemas que afetam os cidadãos desta cidade.
Todos desejavam que o teu poder mediático e de intervenção social mobilizasse a sociedade civil e a tua “voz” o motiv para a reflexão que se impõe nestes conturbados tempos que esta terra vive.
Lamento dizer-te mais uma vez colega, não fizeste o trabalho de casa!
A directa consequência deste teu laisser fair, acabou por te envolver em tramas e jogos de poder. Tentaste remediar a situação proferindo as mais desajustadas, senão mesmo desastrosas, declarações para a comunicação social:
Como pode um artista de arte urbana com a tua experiência declarar que desconhecia os planos para o espaço reservado para o teu mural?
Porventura tens conhecimento do passado histórico desta praceta e a necessária cautela para com todos aqueles que a frequentam?
Como foi possível Alexandre, depois de teres conhecimento que para este espaço estava projectado a construção do Centro Cultural Português (CCP) dizeres para um importante jornal “bom agora que a intervenção está feita, as partes que dialoguem…”. Sabes há quanto tempo os mindelenses desejam e precisam deste equipamento cultural na cidade? Para momentos como estes há sempre um velho provérbio português - “quem vier atrás que feche a porta”.
Colega Alexandre Farto.
Sei que por vezes o calor implacável das ilhas nos roubam um certo discernimento leva-nos a exprimir e a fazer coisas que nem sempre se ajustam ao contexto. Este desnorte assintomático é preocupante e ataca sobretudo aqueles que estão de passagem como foi o teu caso. Mas não és caso único, se isso te pode deixar mais tranquilo. Estou certo que te lembras das declarações de António Costa, acerca da “11 ilha de Cabo Verde3”, ou dos ignóbeis visitantes que confundem Micadinaia com uma ilha grega perdida nos confins da história.
Acontece… não te sintas só e envergonhado!
Agora que a euforia mediática passou, e tu já no conforto da Lisbofonia, acredito que estas minhas palavras te façam reflectir, e quem sabe tragam de volta o Alexandre que todos já temos saudades.
Lembras-te daquelas tuas palavras quase messiânicas “o grafiti é sempre ilegal4”?
Volta Alexandre, estás perdoado.
Lisboa, Novembro de 2019
Contos da Macaronésia
1 https://expresso.pt/economia/2019-10-14-Paraisos-fiscais.-Sairam-672-milhoes-de-Portugal-em-2018
2 https://www.tsf.pt/cultura/vhils-e-personalidade-de-2015-para-a-imprensa-estrangeira-em-portugal-4931963.html
3 https://www.publico.pt/2019/04/13/politica/noticia/cabo-verde-nao-dez-ilhas-11-portugal-1869152
4 https://fumaca.pt/vhils-ativismo-pela-arte/
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