...o comportamento do Primeiro-Ministro de Cabo Verde não é apenas uma questão de má gestão; é a personificação do que Maquiavel descreve como um líder que se preocupa mais com a manutenção de seu poder pessoal do que com o bem-estar de seu povo. E quando essa linha tênue é cruzada, quando o líder transforma o Estado em sua propriedade pessoal, ele semeia as sementes de sua própria destruição, como Maquiavel, Foucault, Weber e Arendt já alertaram, cada um a seu modo. O governo não é um feudo, e a história tem sido implacável com aqueles que ignoram essa verdade fundamental.
Ao observar a política de Cabo Verde, especialmente sob a liderança do atual Primeiro-Ministro, torna-se inescapável a comparação com as reflexões clássicas sobre o poder e a governança encontradas em "O Príncipe" de Nicolau Maquiavel. Essa obra, por séculos debatida e reinterpretada, fornece uma lente quase profética para examinar as dinâmicas de quem se coloca à frente de um governo como se fosse dono do próprio Estado. O comportamento do atual PM, que age como se Cabo Verde fosse uma extensão de sua vontade pessoal, desperta em nós a necessidade de revisitar o que Maquiavel, e tantos outros filósofos políticos, advertiram sobre os perigos dessa centralização do poder.
Há uma passagem em "O Príncipe" que afirma: “Os homens esquecem mais depressa a morte do pai do que a perda do patrimônio.” Maquiavel, ao destacar esse aspecto da natureza humana, revela um princípio fundamental na política: o líder que controla os recursos do povo tem em mãos o poder de controlar suas emoções e suas lealdades. O Primeiro-Ministro de Cabo Verde parece ter absorvido essa lição de maneira quase instintiva, gerindo os recursos da nação não como um servidor público, mas como um senhor feudal que distribui favores conforme seus próprios interesses.
Podemos aqui recorrer também ao pensador contemporâneo Michel Foucault, que, ao examinar as estruturas de poder, nos lembra que o poder não é apenas algo que se possui, mas algo que se exerce, se perpetua e se dissemina através de práticas discursivas e de controle. E é exatamente isso que vemos no modo como o PM de Cabo Verde opera: o seu governo não é apenas um instrumento de liderança, mas uma maquinaria bem calibrada que regula o acesso aos recursos, aos favores e, sobretudo, às possibilidades de mobilidade social e política. Foucault, em Vigiar e Punir, nos alerta que a verdadeira opressão está na sutileza do controle, na regularidade das práticas que se tornam norma. O PM construiu uma estrutura onde qualquer tentativa de desafiar sua autoridade parece se dissolver na burocracia ou na chantagem implícita do ostracismo econômico e social.
O PM trata o governo como sua propriedade pessoal, o que nos remete a outro grande pensador do poder: Max Weber. Weber distingue entre três tipos de autoridade – tradicional, carismática e legal-racional – sendo esta última aquela que, teoricamente, prevalece nos Estados modernos. Contudo, o que observamos em Cabo Verde é uma transmutação perversa entre essas categorias, onde o líder tenta construir um legado de autoridade carismática, disfarçada de legalidade institucional, mas operando com métodos tradicionais que se aproximam de uma espécie de neofeudalismo. Weber, com sua análise precisa do carisma como uma forma de dominação, poderia muito bem interpretar a atuação do PM como uma tentativa deliberada de moldar a percepção pública através da encenação de um líder providencial, enquanto, na realidade, perpetua formas antiquadas de controle pessoal sobre os recursos e as estruturas de poder.
À medida que o PM se consolida no poder, o que Maquiavel nos advertiu sobre a necessidade de um príncipe ser amado ou temido se torna notoriamente relevante. "É melhor ser temido do que amado, se não se pode ser ambos." O PM não busca a aprovação popular em termos genuínos; ao contrário, ele se envolve em uma forma de populismo calculado, onde favores são distribuídos seletivamente para garantir apoio, mas onde a verdadeira afeição popular é secundária à obediência. Maquiavel, nesse sentido, estaria satisfeito com a manipulação do medo, mas profundamente desconfiado da falta de virtù, aquela habilidade de adaptar-se às mudanças circunstanciais, que parece faltar ao líder atual. Sua gestão está tão fixada em manter o status quo que se torna incapaz de responder às crescentes demandas de um povo que, embora silencioso, começa a mostrar sinais de impaciência.
E como não mencionar Hannah Arendt, que nos ensinou a discernir entre poder, força e autoridade. Arendt, em A Condição Humana, distingue o poder como algo que emerge da ação coletiva e do acordo entre os governados, e não como uma mera imposição de força ou fraude. O Primeiro-Ministro de Cabo Verde, entretanto, parece operar numa lógica inversa, onde o poder não é algo que floresce do consenso social, mas uma ferramenta de dominação individual, usada para suprimir a dissidência e garantir a continuidade de seu domínio pessoal sobre os recursos e instituições do país. Arendt teria visto com alarme a maneira como o PM de Cabo Verde trivializa o conceito de autoridade, tratando o governo como um mero prolongamento de suas aspirações pessoais, sem prestar contas à necessidade de um verdadeiro diálogo democrático.
Voltemos a Foucault. O PM usa estratégias de controle quase invisíveis. A nomeação de amigos em cargos de confiança, a alocação de recursos para setores que promovem mais sua imagem do que o bem comum, e a centralização de decisões cruciais nas mãos de poucos escolhidos de sua confiança são todos exemplos de um controle capilar, que se infiltra em todos os aspectos da vida política cabo-verdiana. O PM talvez acredite que, ao silenciar as críticas com favores e presentes políticos, consegue garantir a estabilidade. Mas, como nos recorda Maquiavel, “A fortuna é uma mulher; se quisermos mantê-la submissa, é preciso esbofeteá-la e maltratá-la”. A submissão da fortuna é uma ilusão. Ela se rebela, e quando o faz, a queda é inevitável.
Assim, o comportamento do Primeiro-Ministro de Cabo Verde não é apenas uma questão de má gestão; é a personificação do que Maquiavel descreve como um líder que se preocupa mais com a manutenção de seu poder pessoal do que com o bem-estar de seu povo. E quando essa linha tênue é cruzada, quando o líder transforma o Estado em sua propriedade pessoal, ele semeia as sementes de sua própria destruição, como Maquiavel, Foucault, Weber e Arendt já alertaram, cada um a seu modo. O governo não é um feudo, e a história tem sido implacável com aqueles que ignoram essa verdade fundamental.
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Comentários
Casimiro Centeio, 24 de Set de 2024
Bravo, meu ilustre !
Análise a qual tiro o chapéu.