Da didatização traída, padronização fortuita: os sinais de uma governação desastrosa e sem ética
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Da didatização traída, padronização fortuita: os sinais de uma governação desastrosa e sem ética

O caso da norma pandialetal ficará na história não como um avanço, mas como um símbolo de como se pode trair uma causa justa com má gestão, arrogância e oportunismo de agentes mal preparados que assumem o poder politico e dão cabo da vida das pessoas e do país. Em vez de fortalecer a nossa língua e a nossa escola, esta governação preferiu manipular processos, afastar críticos e impor soluções artificiais. O resultado não foi a didatização da língua cabo-verdiana, mas a didatização da incompetência política. Cabo Verde merecia mais — e os 50 anos da independência exigiam dignidade, não improviso.

Assistimos, nos últimos 6 meses, aquilo que se pode intitular de algo como “quando a escola se torna aparelho ideológico do Estado, dividindo e causando desonra num Cabo Verde 50 anos”

Com efeito, a introdução da disciplina de Língua e Cultura Cabo-Verdiana (L&CCV) no ensino secundário, que deveria marcar um passo histórico de valorização da língua materna, transformou-se num caso de má gestão política, científica e pedagógica. Após 6 meses de sucessivas denúncias em jornais on-line, rádio e televisão nacionais, partidas de vários quadrantes da sociedade, surgimento de um parecer científico da DALMA (ramo da associação para a língua materna cabo-verdiana em Portugal), processo judicial interposto pelo poeta José Luiz Tavares, temos, finalmente, uma reação do Ministério da Educação e da professora Amália Lopes, validadora do referido manual. Neste sentido, destacamos os principais desdobramentos do problema que ainda se mantêm ofuscados:

i) Gestão catastrófica do processo

O Governo avançou com uma lei que não foi formatada para a padronização da língua, mas para abrir eixos jurídico-normativos para uma didatização pós-colonial e inclusiva da língua e o Ministério da Educação, desastrosamente, causou uma grande confusão por diversos desvios e omissões. Em lugar de orientar uma harmoniosa e cuidada didatização, muitos assumiram de facto estar perante uma oportunidade de padronizar a LCV. A professora Amália de Melo Lopes, validadora do manual, insiste na defesa da dita norma e Fernanda Pratas assume a urgência da padronização do berdiano, embora as autoras já tinham dito que não pretendiam padronizar a língua. O próprio Ministro declarou, no início do ano letivo, que “a padronização traz sempre polémicas” — ignorando a evidência básica: a lei autoriza a criar programas e materiais didáticos, não a mexer na língua, cuja tutela sequer pertence ao Ministério da Educação.

i’) A disciplina não é mais experimental- A fase de experimentação já acabou e … Kes dirijenti nen ka da kónta.

Em setembro de 2025, o próprio Ministro reafirma o caráter experimental da disciplina. A lei que cria a disciplina estipula o seu caráter experimental somente por três anos [art.15º, nº 2, a)]. É grave o descaso que o próprio Ministro tem com a experimentação da língua materna, iniciativa que ele se gaba de ter tido a coragem de empreender. Fez contratações anuláveis, excluiu alguns dos ativos do processo, por perseguição e abandono, não seguiu e nem se aconselhou devidamente sobre as responsabilidades ministeriais ao ponto de a experiência terminar sem ele se dar conta.  De referir que o decreto-Lei é de 12 de Julho de 2022, há 3 anos. Piriúdu xpermental dja kába! Não tem como a disciplina continuar em regime experimental.

ii) Má gestão dos recursos humanos e processos

Foram recrutados professores de história, geografia e filosofia para ensinar língua, sem preparação adequada. A prometida “investigação-ação” nunca foi implementada: não houve instrumentos de recolha de dados validados, nem acompanhamento pedagógico dos professores, nem um programa de capacitação sistemática feita pelos próprios autores dos programas, como deveria ocorrer num processo de experimentação de uma língua que nunca foi didatizada, de facto. Para piorar, a continuidade para elaboração do programa do 11º foi com recrutamento de estrangeiros não especialistas da LCV.

iii) Perseguição e afastamento de quadros críticos

Profissionais que recusaram validar programas mal concebidos foram punidos — incluindo suspensão sem salário por quase um ano e exclusão de equipas de trabalho. O afastamento de vozes críticas abriu espaço para a emergência de uma “norma pandialetal” artificial, rejeitada por escritores, linguistas, juristas, ex-governantes e outros setores da sociedade.

iv) Má gestão financeira

Até hoje, três anos depois, especialistas que elaboraram programas da LCV e outras disciplinas ainda não foram remunerados pelo trabalho realizado. Por outro lado, o Banco Mundial exigiu a realização do concurso a partir do 11º ano, inviabilizando as sucessivas práticas de ajuste direto e o ME, tendo elementos que testemunhavam, no caso da LCV, incapacidade da empresa vencedora em ter quadros, não avançou com a  anulação do concurso.

v) O peso simbólico do português

Apesar de vezes sem conta se propalar o ensino do português-língua segunda há mais de 30 anos (no inicio dos anos 90 do sec. XX, isso espelha na lei, e em 2017 se repetiu a mesma coisa), a didática do português em Cabo Verde sempre foi normativa, elitista e centrada na escrita, como se fosse língua materna e visando aproximar-se do modelo europeu. Na verdade, apesar de muitos esforços empreendidos por formadores dedicados, o paradigma colonial sempre volta sorrateiramente e por inércia. Professores esforçam-se por imitar o português de Lisboa para evitar discriminação. Até nas universidades, textos na variedade brasileira são desvalorizados. Essa herança pedagógica alimenta a ideia de que também o crioulo berdiano deve ser “uniformizado” para se tornar língua legítima, esquecendo-se que o português só alcançou o estado atual após séculos de processos históricos e políticos inaceitáveis pela natureza jurídica do Estado de Cabo Verde (no caso da língua portuguesa, contou, por exemplo, com séculos de colonialismo e escravatura).

vi) Falta de humildade de alguns linguistas

Com os especialistas críticos afastados, alguns linguistas envolvidos deixaram de consultar colegas e passaram a tratar a padronização como se fosse um ato científico, estritamente da área da linguística, concebível em laboratório (in vitro, no dizer de alguns autores proponentes de tal ato) quando é sobretudo um ato político que tenta realizar um assalto pela via da utilização da escola como aparelho ideológico do Estado.

vii) Aumento da desconfiança social

A desordem alimenta desconfiança generalizada. Muitos cabo-verdianos, agora, questionam a consistência da sua própria língua e até dos estudos linguísticos. Acha-se que é preciso fazer “alguma coisa dentro da língua”, ideia reforçada pelo nº 2 do artigo 9º da Constituição, que não faz outra coisa se não a subalternização da LCV em relação ao português, quando a lcv está muito bem e não precisa de nenhuma operação interna…já a LP, essa sim, precisa das ações do Estado para ser democratizada no país…ainda hoje, a sua aprendizagem cinge-se à leitura de textos. As produções orais e escritas é onde registamos mais erros dos alunos. O próprio Ministério da Educação reforça essa percepção errada da LCV ao alegar que suspendeu o manual para que “os linguistas se entendam”, quando o problema é, na verdade, de má governação da reforma em termos de recursos humanos, gestão, seguimento e avaliação de processos curriculares, numa lógica que faz parecer que com o português está tudo bem e que o problema é o crioulo e os crioulistas…Quanto engano!

viii) Uma notória atuação do Cabo Verde –diáspora

Não posso deixar de registar, com especial satisfação à nossa diáspora, que, estando fora das garras do poder político nacional, teve a coragem de se levantar em defesa da língua e da dignidade de Cabo Verde. O poeta José Luíz Tavares, que valentemente, de entre várias lutas literárias interpôs uma ação judicial contra o manual, bem como José Luís Almada e o Conselho Científico do DALMA – Lisboa (formado por cabo-verdianos e portugueses), o linguista Diltino Ferreira no Brasil, prontamente acudiram à nação contra o barbarismo governativo. A sua intervenção é um testemunho de que a língua cabo-verdiana pertence a todo o povo, dentro e fora do país, que a cidadania linguística não conhece fronteiras e que Cabo Verde não é sem a sua diáspora.

Em suma, o episódio da “norma pandialetal” não é apenas uma polémica académica em que um grupo de cientistas se entusiasmam em transformar a sociedade cabo-verdiana em campo de ensaio. Antes, é um fracasso político e administrativo no âmbito de uma reforma educativa mal conduzida e que tem sido vendida como a melhor da história do país mas arrisca-se a receber o apelido de pior. No caso da língua, em vez de valorizar a diversidade do crioulo berdiano e avançar numa didatização inclusiva e pós-colonial, o processo foi conduzido de forma improvisada, autoritária e financeiramente desleal, favorecendo intromissão estrangeira pouco dignificante para o Cabo Verde de 50 anos de Estado “di el pa el” (isso quer dizer independente). O resultado foi o oposto do esperado: aumentou o preconceito linguístico, a desconfiança social e a fragmentação entre os próprios especialistas.

O caso da norma pandialetal ficará na história não como um avanço, mas como um símbolo de como se pode trair uma causa justa com má gestão, arrogância e oportunismo de agentes mal preparados que assumem o poder politico e dão cabo da vida das pessoas e do país. Em vez de fortalecer a nossa língua e a nossa escola, esta governação preferiu manipular processos, afastar críticos e impor soluções artificiais. O resultado não foi a didatização da língua cabo-verdiana, mas a didatização da incompetência política. Cabo Verde merecia mais — e os 50 anos da independência exigiam dignidade, não improviso.

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