1. Entre vários outros, há um facto preocupante na sociedade caboverdeana: nos últimos cinco a 10 anos, estamos a assistir a uma tentativa permanente de manipulação do conceito de “assistencialismo” de modo a desvalorizar esta forma de intervenção do Estado, associando-a à noção de desperdício e inutilidade, para assim justificar a total falta de necessidade de tomada de determinadas medidas de políticas públicas que, na verdade, são simplesmente indispensáveis para a sobrevivência condigna de determinadas pessoas, inseridas nas camadas mais desfavorecidas da sociedade;
2. Em primeiro lugar, é preciso que fique claro: só há uma definição – de facto – do que é o assistencialismo, entendido como a “doutrina ou prática política que defende a assistência aos mais carenciados da sociedade” (1), escreve o Dicionário Priberam que também lança o alerta entre parênteses: “por vezes usado em sentido depreciativo, referindo-se a medidas ou promessas demagógicas”. Contudo, em Cabo Verde, nem sequer a situação é de associação do assistencialismo à demagogia. Há um discurso político partidário a defender que o Estado – simplesmente – nunca deve ser assistencialista! Sendo que, para argumentar que o Estado não deve ser assistencialista, tem-se socorrido muito de um ditado que diz: “Não se deve dar o peixe, mas sim deve-se ensinar a pescar”, como forma de se garantir a autonomia da pessoa!
3. Este ditado é deitado por terra por um académico e político português, Alfredo Bruto da Costa, doutorado em sociologia, que em resumo afirma: “Discordo da frase «não dês o peixe, dá a cana»”. E, continua explicando: “Se só deres o peixe, ele só comerá hoje. Se, além do peixe, deres a cana, ele comerá hoje e o resto da vida. Não vale de nada dar uma cana a alguém que está com tanta fome que não pode sequer levantar-se para chegar ao rio para pescar” (2). É de maior importância reter que há pessoas carenciadas e que precisam de assistência para saírem da situação de exclusão social e de indignidade humana em que se encontram. Este assistir às pessoas é o assistencialismo que cabe ao Estado assumir. Todavia, se há dirigente público que faz a "instrumentalização dessa assistência", utilizando-o para fins e ganhos particulares, é fundamental que não se utilize essa “ação de instrumentalização” como justificação para desvalorizar e mudar a essência do que é o assistencialismo, que é assistir com honestidade, justiça e humanismo quem comprovadamente precisa! Pelo contrário, a prática de instrumentalização deve ser chamada pelo nome próprio: corrupção, desonestidade, falta de caráter e de ética, etc.
4. Será que Cabo Verde não tem pessoas a viverem em condições desumanas que justificam medidas públicas de assistencialismo? Será democrático que – à partida – o Estado exclua uma certa camada da população nacional da sua esfera de atuação, uma vez que não considera a possibilidade de ter políticas assistencialistas que são as primeiras políticas públicas que essas camadas sociais necessitam?
5. Para se ter respostas honestas a estas questões é imprescindível que se tenha uma noção mínima do estado em que se encontra a sociedade caboverdeana e para isso deve-se prestar a devida atenção a três dados estatísticos fundamentais sobre a (i) a pobreza, o desemprego e a chamada inatividade. Os dados estatísticos do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) demonstram que no ano de 2015 havia 179 mil e 909 caboverdeanos pobres, isto é, que viviam em casas que tinham em média menos de 262$00 para o sustento por dia, para toda a família! Sendo que entre esses pobres havia uns tinham menos ainda: 54 mil 395 tinham menos do que 136$00 por dia para as suas casas – nem sabemos quantas pessoas tinham cada casa! Estas são enquadradas na chamada pobreza extrema!
6. Para o desemprego o cenário é também desolador! Mas, para percebermos bem a realidade do drama dos caboverdeanos que não têm emprego, há uma explicação que é fundamental. A taxa de desemprego do INE (3) não corresponde a todos os caboverdeanos que não estão a trabalhar. Para sabermos quantos caboverdeanos estão de facto – no desemprego – temos de somar os desempregados (27 mil e 28 pessoas) e uma parte dos chamados inativos, entre os quais os que não procuraram trabalho (desanimados), os que estão à espera de respostas ou de retomarem o emprego anterior. É bastante ilustrativo o quanto a noção de inativos contribui para mascarar a realidade do desemprego em Cabo Verde, se considerarmos que entre os inativos só a percentagem dos indivíduos que não procuraram trabalho – porque consideram que “não há qualquer emprego” (4) disponível – é de 16,4%, ou seja, é superior à própria taxa de desemprego (12,2%). Cabo Verde tem mais desanimados do que desempregados!
7. Em síntese, como negar a função assistencialista ao Estado num país com largas franjas de cidadãos pobres (35,1%), desempregados (12,2%), desanimados (16,4%), a passar fome (13%) (5) e 30% de jovens dos 15 aos 34 anos sem trabalho e nem a frequentar a escola ou uma formação? (6) Pior ainda quando se trata do mesmo Estado que, simultaneamente, se assume contra “dar” aos mais carenciados, mas “doa” milhões a empresas privadas sob o disfarce de “avales”, “garantias” – desistências de cobranças nos tribunais – e recebe “assistência internacional” para completar o seu próprio Orçamento de Estado (7) e até em arroz para a alimentação do país! (8)
8. Quando se trata de acudir o “coitado” é condenado porque é assistencialismo, mas quando é para canalizar milhões de contos do Orçamento do Estado para os empresários, muda de nome e passar a ser chamado de incentivo?! Esta é a grande hipocrisia em que se está a transformar o Estado de Cabo Verde, atualmente.
(1) https://dicionario.priberam.org/assistencialismo
(2) “Morreu Bruto da Costa, o político para quem se devia dar aos pobres o peixe e a cana”. (Público, 11 nov. 2016) https://www.publico.pt/2016/11/11/sociedade/noticia/morreu-o-antigo-ministro-e-conselheiro-de-estado-alfredo-bruto-da-costa-1750840?fbclid=IwAR3fFGIrS7R9tmsxcxPta1wcCJMh8hN55P2B5GyWq-g9gEhRXK3TrmRPUfY
(3) As fórmulas estatísticas são poderosos instrumentos de dominação. A fórmula de cálculo que o INE utiliza é imposta por centros de decisões dos países mais ricos do mundo.
(4) INE (2019), Estatísticas do Mercado do Trabalho, Inquérito Multiobjectivo Contínuo 2018, pág. 46, http://ine.cv/wp-content/uploads/2019/04/imc_2018_estatisticas_mercado_trabalho_compressed.pdf
(5) “A fome atingiu 13% da população cabo-verdiana em 2018”. (A Nação, 17 jul. 2019) https://anacao.cv/a-fome-atingiu-13-da-populacao-cabo-verdiana-em-2018-onu/
(6) Geração “nem, nem”. (Expresso das Ilhas, 14 abr. 2019) https://expressodasilhas.cv/economia/2019/04/14/geracao-nem-nem/63323
(7) “Cabo Verde precisa de endividar-se em 180 ME para financiar Orçamento de 2020”. (Lusa, 28 out. 2019) https://www.rtp.pt/noticias/economia/cabo-verde-precisa-de-endividar-se-em-180-me-para-financiar-orcamento-de-2020_n1182000
(8) “Cabo Verde recebe assistência alimentar do Japão” (Expresso das Ilhas, 8 out. 2019). https://expressodasilhas.cv/politica/2019/10/08/cabo-verde-recebe-assistencia-alimentar-do-japao/66024?fbclid=IwAR0vrOFg-wjHA5mXhHp7IRchT7nZf--MqcXuBcY97Euvrl-h2HtmjQBBEXQ
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