«Faca que não corta, pena que não escreve, amigo que não serve, que não serve, que se perca, pouco importa». Do inesquecível micaelense, Herculano Delgado Freire.
Hoje, se estivéssemos por lá, faríamos uma viagem de acalorada cortesia ao bairro de Ponta d’ Água, na capital. Havia de ser uma regalada caminhada, uma degustante romaria à referida localidade. Então, ao toque de alvorada e sob os auspícios dos primeiros e viçosos raios do génio, púnhamo-nos em pé, de pernas a esticar e pronto para jorna. O escopo da aventura seria abeirarmo-nos dos aposentos do distinto maioral da nossa zona natalícia, António Miranda Furtado, popularmente conhecido por António Vaz, que completa, neste virtuoso 17 de maio, os seus 100 anos de existência (1920-2020). De seguida, curvar-nos-íamos, para lhe suplicar a lenitiva bênção costumeira do cume da sua cobiçada vitalidade, com toda a vénia e cerimónia, mui à moda dos egrégios valores da leda terra. E por que não erguer a taça de afeiçoado suor de boi do seu sortido chão de Machado e Fonte d’Horta, espargindo-lhe borrifos de néctar singelo em sua solene indumentária de anfitrião?
Sim, o ritual faz parte da bonita tradição do ameno povo. Depois, dando sequência à aura de festejo, implorar do decano de alcalina e fina estirpe uma amistosa autorização para lhe cantar um salmo, devotando-lhe as mais denodadas e fervorosas felicitações. A gesta consistiria em arfar o peito e entoar com ele, numa toada gutural e refinada, o jubiloso canto gregoriano, arte sacra de que o seu irmão de fé e coevo da freguesia, Pedro Vermão de Sousa, era um sublime executante. Seria um momento único, arrepiante e mui enobrecido, deveras emocionante para o repasto espiritual do nosso imbele estado de alma. Era esse o preito de tributo que lhe íamos render, caso não forçosamente confinado, aqui nas trevas de malandreca sujeitinha, a traiçoeira de que tanto se fala hodiernamente. Pois, nada seria mais gratificante do que tomar assento num banquete de gracioso contorno familiar, para servir o acepipe disponível e comemorar uma efeméride de fascinante raridade, batendo palmas, dando louvores ao céu e dirigindo palavras laudativas de incentivo ao nosso vizinho e conclamado compatrício.
E vai fazer anos num dia que nos é particularmente especial, isto é, num mágico domingo. E para mais, tratando-se de alguém que nos viu a vir ao mundo, a sorrir, a brincar, a chorar e a soluçar, num ambiente de múltipla pertença e de partilha, de comunhão de esforço, de avivado mutualismo e de cobaltada fraternidade. Uma pessoa com quem aprendemos imensa coisa boa. Pela sua escorreita postura de católico devoto e de assíduo praticante, pelo seu ativismo em prol da zona, como se ver infra, e pela sobriedade de uma impoluta ética cristã, diante da vida. Ou ainda pela sua vasta e reconhecida perseverança. É dicicil para nós, na pele de nativo da ribeira, irmanado por laços de sangue e de indubitável cordialidade ao estro centenarista da redondeza, elaborar uma crónica deste calibre, sem nos emocionarmos, sem nos regozijarmos, quando a distância que nos separa da ínclita persona é bastante ténue, para não dizer exígua. Daí, naturais cumplicidades, gentílicas maneiras e comovidas alegrias.
Contudo, se já abordamos tantos outros diversos sítios das ilhas da nossa inquestionável afeição e as suas incontornáveis idealidades de altina proa, seria de tremenda ingratidão da nossa parte não fazer o mesmo com as nossas afamadas referências da freguesia, deixando de fora o nosso próprio túmulo de umbigo. Talvez não fossemos digno de minúscula confiança. Até porque não é todos os dias que um dos nossos tem a chance e privilégio de celebrar a tão almejada e seleta idade. É um marco que nos coloca no topo de ufanismo e a olhar para o majestoso Pico d’Antónia, o patrono toponímico do nosso venerando homenageado. Vale a pena pular, ovacionar, escrever e memorar o raro evento, com toda a pompa e circunstância. Por isso, o agora místico ádvena, solta o brado e manda a brasa de desejo, daqui do exílio: - «Parabéns, Nhô Ntoni! Que venham mais e mais e mais. Vós sóis um grande e sois o decano dos maioriais de toda a nossa casta. Estamos enormemente grato da vossa brilhante trajetória e sintimo-nos balsamicamente honrado de vos invocar e de elevar em alta conta da nossa estima».
Em verdade, sentimo-nos benzido e agraciado, “da planta dos pés ao cocuruto da cabeça”, tal que diria o nosso saudoso Herculano Freire, de ter tido a ingente fortuna de crescer nas benditas mãos do aniversariante e de conviver com ele, desde a nossa tenra meninice. Não nos esquecemos nunca da sua candidez de fibra e da sua doçura de trato. E mais uma vez, o místico ádvena reconhece: - «Vós fostes um dos sages precetores daquilo que viria a ser o nosso brando temperamento, absolutamente essencial nos dias que correm. Obrigado por tudo». De facto, a respeitável e magna figura é portadora de uma mansidão de gema e de uma vasta sapiência, quando em sede de tradições orais da nossa ilha. Discreto, mas excelente contador de estórias e peripécias. Uma valência adquirida no caldo de uma cultura de refinada tolerância, típica da de Ribeira de Candura da nossa augusta freguesia. Além de um requintado bom humor. Uma exaltação bem merecida, porque, na realidade, cem anos contados, um a um, até o pico da maravilha, não é prerrogativa para qualquer um. Sequer para poucos. E sim apenas para eleitos da deifica filtragem, estreitinha e excelsamente seletiva. É uma prenda do divino, um dom de altíssimo Demiurgo, para o seu estrito clube dos ungidos.
Oriundo de uma tradicional família de proprietários de terras, António Miranda Furtado era casado com Camila Miranda Cardoso, da zona de Pilão Cão de quem é cônjuge sobrevivo. Tiveram nove filhos: seis rapazes e três meninas. De entre eles (julgamos de alguma pertinência destacar), o primogénito, Jacinto Furtado Miranda e o quarto na linha de descendência, Emanuel Miranda Furtado, foram deputados nacionais no decurso da década de noventa. Jacinto seria nomeado, na sequência das eleições pluripardárias de 1991, delegado do governo no concelho do Tarrafal. Tendo sido democraticamente eleito, no mesmo ano, primevo presidente da câmara municipal daquela edilidade, que comprendia as freguesias de São Miguel Arcanjo e Santo Amaro Abade. Depois, acabaria igualmente por ser o inaugural e único governador civil das ilhas de Santiago e Maio, no final da mesma década. Dos rebentos do aniversariante, se a memória não nos falha, só a prof. Maria Sábado Miranda da Cruz foi a nossa colega de primária.
Aproveitamos o soberano ensejo para endereçar aos filhos e netos os nossos sinceros parabéns, pelo valioso pai e avô que têm tido a sorte de ter. Nhô Ntoni nasceu e viveu, quase toda a sua vida, na virente Ribeira de Ribeireta, uma estância de impecável correção. A ribeira de acção católica, cordata e calma, onde tudo se processava nos trilhos da mais perfeita tranquilidade. Neste quesito, todos cantavam em uníssono concorde. Por isso, o pacifismo foi sempre o inegável cartão de visita desse povoado. António Miranda Furtado, o nosso antigo Prof. Vasco Baptista Gomes Furtado e seu o irmão, Filinto Gomes Furtado (este também era o nosso lídimo Docente fora da escola). Tais nobres entes foram, de entre outros, os que cultivavam e ensinavam-nos a levar a fôlego de peito a necessária serenidade, que nos caraterizaria ao longo das nossas vidas. Para o fundo da ribeira confluíam uns futricas e gurias, ávidos da ciência e do saber, desprendendo-se dos cutelos de Covoada, Milho Branco, Achada Cavalo e Monte Bode. Todos aconchegados no delicioso regaço da nossa lendária capela-escola. Nos minutos de intervalo, a morada fervilhava e reluzia, num misto de leve ruido e de quietude. Em Ribeireta, ainda hoje, as coisas continuam a acontecer dentro dos cânones da tradição. Isto apesar das impetuosas vicissitudes do tempo e de importação, de fora para dentro do país, de muita façanha ruim. Aspetos que nada têm a ver com os nossos traços culturais ou idiossincráticos, sobretudo em matéria de palavreados inúteis, aportes e discursos obscenos, impudorada vestimenta... Pérfidos modismos e levianos mimetismos, que levam à falta de tato e de elegância no trato com os menos novos.
Ah enleva estatura do Filinto! Sempre entusiasta e cativante. Quando se aproximava da nossa turma, sabíamos, de antevisão, que era ele, porque o lívido favónio que prenunciava a sua chegada soprava numa guinada inconfundível. Ele adorava ver meninas e rapazes a estudar. Para o visionário da ribeira, a diferença entre pupilos e pupilas, no que tange à seara de Saussure e Paulo Freire, já na altura, devia ser exatamente népia. Então, ao passar por nós, depois de nos cobrir de garbo e de radiosa bênção, lá estava ele, numa tirada bastante suave e pedagógica: - «Então, como vai a escola? Estudem, estudem, meus amigos!». Após o feito, seguia o seu reto caminho adentro, acompanhado do indefetível cão de guarda e de inseparável companheirismo. O nédio vulto não tinha instantes a perder. Curiosamente, anos mais tarde, entraríamos numa sala de aulas, na capital. Encontramos um ensinador, que interrompia a sessão, fazia uma pausa explicativa, para moralizar e motivar os seus alunos, abrindo-lhes a mente, passando a mesmíssima receita: - «Estudem, estudem, meus amigos! Enterrem o focinho nos livros e leiam!».
Diante do recital de bona fide, ficamos aliciado e rendido à primeira. Assim, murmuramos baixinho: - «Caramba! Que grande parecença discursiva entre ele e o incensado filho da nossa ribeira!?». Na aula seguinte, o magister fez a sua habitual pausa na explicação, voltou ao tema, para desembrulhar o nó da anterior exortação, esmiuçando assim a dica: - «A quem seja de uma família pobre, a instrução é a via mais airosa para mudar o curso de vida». De forma honesta, como é óbvio. Depois, viemos a conhecer o brioso Lente em pauta, de quem passamos a ser amigo e admirador. Não era nem mais nem menos que o actual Prof. Doutor Arlindo Mendes, da vizinha zona de Saltos. Na ribeira aqui descrita, à época da nossa infância e adolescência, o tempo era ocupado, tendo cada um seu punho impado de labor e cansativo suor na testa. Desavença na comuna era de invulgaríssima ocorrência, para não dizer inexistente. Enfim, sob a égide dos nossos prestimosos maiorais, a vida de cada um conhecia, desde início, o esboço da sua posterior desenvoltura. Uns verdadeiros heróis comunitários e conquistadores de todas as justas e benquistas recordações (continua).
Domingos Landim de Barros
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