A desfaçatez como arma de ludibriar
Colunista

A desfaçatez como arma de ludibriar

As aparentes serenidade e humildade do vice-primeiro-ministro (muito enfatizadas pela, cada vez mais escassa, caterva do costume), em entrevista ao Jornal de Domingo da TCV, procurou ocultar o atrevimento de Olavo Correia em escarnecer, em horário nobre, da inteligência dos cabo-verdianos. Sem-vergonhice parece ser a palavra adequada para definir um governo em final de ciclo, que, mesmo recorrendo aos artifícios da propaganda, não consegue dar resposta para coisas tão óbvias como sejam a desastrosa política de transportes, o descartar do interesse público e o atentado à soberania nacional. 

A narrativa de Olavo Correia parece não ter tido o efeito pretendido, já que não respondeu a questões-chave colocadas pela jornalista, passando à margem do aprofundar de cada questionamento e, mais grave ainda, pôs em causa declarações de José Gonçalves, insinuando que o ex-ministro do Turismo e Transportes e ex-ministro da Economia Marítima teria conhecimento do embuste cozinhado no próprio Ministério das Finanças, levando à alteração de uma minuta de contrato aprovada pelo Conselho de Ministros.

A desfaçatez não tem limites, ao se insinuar com o maior despudor que Gonçalves, um prestigiado quadro cabo-verdiano, com currículo académico e percurso internacional irrepreensíveis, tenha faltado à verdade (com que interesse?), mas não explicando, com a clareza necessária e a profundidade exigida, as razões que levaram à alteração do contrato.   

Estranhezas em catadupa

Escamoteadas não podem ser as atitudes suspeitas do governo, desde logo do primeiro-ministro, que ainda não proferiu uma palavra que seja a propósito, e que, apenas quatro longos dias após a denúncia, atirou para a fogueira dos questionamentos públicos o seu (cada vez menos) vice. Não é de estranhar, está nos genes de Ulisses Correia e Silva queimar o seu entorno para tentar sair incólume nos momentos mais críticos, sobrevivendo às tempestades.

Nem mesmo Eurico Monteiro, o novo garoto-propaganda do governo (já que Olavo passou a ser uma figura sem crédito nem serventia, logo susceptível de ser atirado para a fogueira), teria condições de vir a terreiro apagar os fogos colaterais, porque (mesmo inteligente como é) seria impossível justificar o injustificável, pesem os seus esforços para dar do governo uma imagem positiva e branquear a silhueta de um primeiro-ministro em que os cabo-verdianos já não se sentem representados.

Pela leviandade com que se gerem os negócios do Estado, este incidente, sem dúvida, coloca ainda mais periclitantes as já de si reduzidas possibilidades de Ulisses renovar o seu mandato em 2026. É que trapalhadas e tiros no pé, em política, pagam-se caro.

Factos desmontam narrativas oficiais

Ouvir quem sabe é sempre o melhor caminho. Por tal, fomos ouvir técnicos dos sectores financeiro e marítimo, permitindo apurar que a alteração unilateral da minuta contratual com a CV Interilhas (CVI) aprovada em Conselho de Ministros, de acordo com as declarações de José Gonçalves, foi levada a cabo pelo vice-primeiro-ministro e ministro das Finanças, Olavo Correia, “sem conhecimento ou autorização” do ex-ministro da Economia Marítima e em “violação da colegialidade governativa”. O que implicou a inclusão de cláusulas contratuais lesivas do interesse público.

E permitindo, assim, “a cláusula de remuneração mínima garantida de 10 por cento (%) sobre os rendimentos brutos; a remoção de cláusulas de condicionalidade e revisão de exclusividade; bem como a definição de jurisdição arbitral exclusiva e irrecorrível”, sem salvaguarda da soberania jurisdicional.

Ademais, do ponto de vista técnico, “a cláusula que garante à CVI uma rentabilidade de 10% sobre os rendimentos totais constitui “uma invenção sem precedentes”, ou seja: “uma aberração financeira”. É que, segundo especialistas do sector financeiro, “o WACC (Weighted Average Cost of Capital), métrica internacionalmente aceite para definir a taxa de remuneração de capital em projectos regulados ou concessionados, varia entre 6 a 8% para empresas marítimas de perfil semelhante”.

Ainda segundo os técnicos, “a remuneração deveria ser calculada sobre o capital próprio investido [equity]” e não sobre “o volume total de rendimentos brutos”, como estipulado no contrato. Tal modelo, aliás, “não encontra paralelo técnico, jurídico ou económico em concessões públicas similares na Europa, África ou América Latina”. Tratando-se, por tal, de um “erro técnico grave, que gerou distorções profundas nos mecanismos de compensação financeira e nos incentivos económicos do concessionário”.

Como consequência, a indemnização compensatória transferida à CVI pelo Estado “aumentou desproporcionalmente de 3,1 milhões de euros, em 2022, para 6,5 milhões de euros, em 2023”, registando-se um extraordinário aumento de mais de 100%, lesivo dos interesses do Estado de Cabo Verde.

Lesar o Estado em favor de interesses privados

Ainda segundo os técnicos, este aumento “não teve como base qualquer alteração substancial no volume de serviço público prestado”, tão-pouco foi “precedido de avaliação regulatória independente”, pelo que “a eliminação ou formulação ambígua da cláusula de exclusividade” permitiu à concessionária “reclamar perdas de oportunidade”; impor “limitações à concorrência”; e exigir compensações adicionais por "interferência de terceiros", sem que isso estivesse juridicamente tipificado.

Ademais, a ausência de um regulador sectorial com independência técnica e autonomia operacional “comprometeu qualquer capacidade do Estado em fazer valer os seus direitos” contratuais.

Aliás, é importante referir que o contrato estabelece a submissão de litígios ao Tribunal Arbitral, com base – pasme-se! - no “Regulamento da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, com sentença irrecorrível”, conforme refere o artigo 42.º do regulamento, significando que o Estado “renunciou à possibilidade de recorrer a qualquer tribunal nacional”, mesmo perante “cláusulas desequilibradas ou vícios de vontade”.

Em linhas gerais, entre o valor reclamado inicialmente, a indemnização fixada no acórdão, a parcela variável prevista e as indemnizações anuais, o erário público sai lesado num valor que ronda os 40 (quarenta) milhões de euros. O que representa, em termos brutos, 5% do Orçamento do Estado e, aproximadamente, 2% do PIB (Produto Interno Bruto), comprometendo recursos que poderiam ser destinados a sectores fundamentais, como a saúde, a educação e as infra-estruturas, entre outros.

Face ao exposto, é por demais evidente – ainda segundo os técnicos contactados - que a concessão “foi conduzida sem rigor técnico, sem base regulatória independente e com cláusulas financeiras absurdas que privilegiaram o concessionário”; que o governo, decorrente da conduta do vice-primeiro-ministro, bem como por omissão do ministro da tutela e, eventualmente, com o conhecimento do primeiro-ministro, “comprometeu o interesse público, desprotegeu o erário e entregou a soberania arbitral a jurisdição privada”. Ou seja, o modelo adoptado é tecnicamente insustentável, juridicamente vulnerável e politicamente irresponsável.

Defender o interesse nacional

Perante a irresponsabilidade do governo, qual o caminho a seguir para fazer face à situação criada? Ainda segundo os técnicos, várias medidas se impõem, como sejam: a “revisão e renegociação urgente do contrato de concessão”, com base em “cláusulas de reequilíbrio financeiro e interesse público”; criação de uma “autoridade reguladora marítima independente, com competências de avaliação”; a abertura de “procedimentos de responsabilização política e financeira” em função de decisões unilaterais e ilegais; a aprovação de um “novo quadro legal para concessões”, incluindo salvaguardas de soberania judicial e limites objetivos à remuneração do capital; bem assim, a “solicitação de auditoria externa e sindicância jurídica” sobre os actos que originaram este litígio arbitral.

Por último, uma interrogação e um apelo cívico: por onde anda o procurador Geral da República, tão afoito a criminalizar jornalistas?; sobre este escândalo e atentado à soberania de Cabo Verde, já que o primeiro-ministro (o principal responsável pelas políticas do governo) se mantém inexplicavelmente em silêncio, seria expectável que o presidente da República se pronunciasse sobre o assunto, enquanto voz autorizada do Estado na garantia do interesse público.

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