O objectivo deste artigo de opinião é trazer para a esfera pública algumas notas para a reflexão crítica sobre a política externa de Cabo Verde, no atual contexto internacional, marcado pela pandemia de COVID-19 e dar novas pistas para a configuração da diplomacia cabo-verdiana, num tempo de iminente mudança da geopolítica mundial.
A política externa, desde a independência aos nossos dias, pelo viés da cooperação, da negociação e da diplomacia (com os seus altos e baixos, naturalmente), consubstanciada nas Cartas Essenciais das Nações Unidas e da União Africana, tem sido um dos baluartes da soberania, da democracia e do desenvolvimento de Cabo Verde. O país vem dando passos firmes e seguros no sentido da construção de um Estado credível, útil e disposto a dar a sua contribuição, ainda que modesta, para um mundo de paz, de justiça, de solidariedade, de progresso e de felicidade para toda a Humanidade.
A política externa esteve sempre estribada em valores e princípios claros que têm permitido Cabo Verde estabelecer relações com todos os Estados na base do respeito mútuo, da reciprocidade de interesses, da não ingerência nos assuntos internos e do estrito respeito pelo Direito Internacional e pelas normas que regem as relações entre os Estados soberanos.
Ela tem-se baseado, sobretudo, na gestão da boa imagem externa e da credibilidade do País, antes como uma Nação Africana (ainda parte dos Países Menos Avançados) exemplar na reconversão da Ajuda Internacional, depois como um Estado democrático, promotor das liberdades e dos direitos humanos, para mais recentemente, como Pequeno Estado Insular em Desenvolvimento, apostado na inserção dinâmica na economia mundial, classificado como País de Desenvolvimento Médio e bem posicionado para cumprir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Esta política externa dorsal tem um percurso histórico, estribado numa genealogia que remonta à Luta de Libertação Nacional, porquanto herdeira da visão internacional pragmática de Amílcar Cabral, de certa forma desafiadora da bipolaridade intensiva da Guerra Fria e adaptável a novos contextos que permitiram nos anos 70 e 80 um forte apoio a Cabo Verde, em grande medida responsável pela estabilidade do país nos primeiros 15 anos da Independência.
Durante a I República, período que vai de 1975 a 1990, Cabo Verde ficou marcado pela exemplaridade da sua política externa de Não-alinhamento e de uma Diplomacia pragmática focada nos condicionantes internos de consolidação da Soberania e da Reconstrução Nacional, privilegiando a racionalização da Ajuda Pública para o Desenvolvimento, a promoção da Paz e da Segurança, e a racionalização das Remessas dos Emigrantes.
Já em fase tardia da I República, introduz-se outro condicionante interno que foi a tese da extroversão económica do país.
Foi na II República, a partir de 1991, com o regime multipartidário vigente, e sem deixar de considerar a Ajuda Pública para o Desenvolvimento, que se observa com nitidez a inclusão de nova praxis na política externa, nomeadamente uma diplomacia mais direcionada para a economia de mercado, do Investimento Direto Estrangeiro (IDE), do Atlantismo, da aproximação ativa à Europa, e da integração dinâmica da Diáspora especialmente até 2001; a partir de então até 2016, introduziram-se na política externa a Agenda de Transformação para o Desenvolvimento, a ideia híbrida da Nação Global (à escala da Diáspora), a intensificação das relações com potências internacionais como a UE, a CEDEAO, os EUA e a China, sem perder de vista a necessidade de procurar outras âncoras que permitem ao país dar passos ousados no processo da sua transformação e do seu desenvolvimento.
Neste momento, a mais evidente realidade mundial é a pandemia de COVID-19. O que mudaremos? Que respostas para este desafio?
Cabo Verde deve ter inteligência estratégica para perspetivar esta crise avassaladora, mantendo o realismo e a prudência, ancorados numa visão holística, exegese que pressupõe a criação imediata de um grupo de trabalho transdisciplinar com savoir-faire acumulado e reconhecido, para dessecar novas tecnologias governamentais e novas abordagens a serem incorporadas na nossa política externa, pois as relações externas baseiam-se na credibilidade, na descrição e na coerência das declarações.
Este não é o momento de posições ambíguas e de declarações embaraçosas, na arena internacional, algumas comprometedoras da soberania nacional e outras que desaceleram o capital reputacional tão arduamente conquistado em quase cinco décadas de política externa.
Impõe-se um olhar crítico e estratégico sobre o quanto a nova conjuntura mundial possa impactar o processo de desenvolvimento nacional, como se depreende, fortemente condicionado pelas variabilidades exógenas.
Como muito bem referiu o economista e académico Carlos Lopes: “Cabo Verde sofre neste momento de perda total de fluxos turísticos. A principal dívida do país está associada ao sector dos transportes. O país estava a tentar reestruturação dos transportes aéreos e dos transportes marítimos. Tudo isso está altamente impactado pelo coronavírus”, deitando por terra a perspetiva de crescimento a 6% do PIB, inscrita no Orçamento Geral do Estado para 2020 e revistas em alta pelo próprio Fundo Monetário Internacional. Aliás, não estando todas as contas feitas, torna-se hoje mais realista perspetivar um crescimento anémico, próximo do recessivo, com o agravamento do desemprego, da inflação e da dívida.
Tal como acontecera no período de 2009 a 2015, com o Governo anterior, mercê do choque externo da conjuntura internacional desfavorável e nas antípodas da avaliação positiva do Grupo de Apoio Orçamental (GAO), o actual Governo terá de rever a avaliação do risco, na presente conjuntura, assim como o quadro macroeconómico que não se tenderá a estável e a economia que deixará temporariamente de crescer.
Tal como outrora com o Governo do PAICV, o actual Executivo terá agora de enfrentar desafios e de tomar não só medidas orçamentais contra-cíclicas para restaurar o crescimento, as quais irão agravar a despesa pública, a dívida e o défice, como também terá de reconfigurar a política externa para reintroduzir mais influxos em termos de Investimento Directo Estrangeiros, de financiamento para o desenvolvimento, aparentemente em queda, desde a graduação de Cabo Verde da categoria de Países Menos Avançados (PMA). Convém não perder de vista que os tradicionais parceiros de desenvolvimentos de Verde tornaram-se epicentro desta pandemia ...!
Este novo quadro mundial e esta nova emergência nacional, sem pôr em causa a Carta de Política Externa Cabo-verdiana -“documento estratégico” para as relações diplomáticas de Cabo Verde com os outros países nos diferentes domínios, nem rejeitar o eixo matricial que há muito norteia as relações da diplomacia económica cabo-verdiana, máxime a Parceria Especial com a União Europeia, a integração na CEDEAO, as parcerias com os Estados Unidos da América e a China, como da mais ativa posição sobre a CPLP, implicará novos eixos...
Segundo Henry Kissinger, em recente artigo no Wall Street Journal, a crise provocada pelo novo coronavírus ameaça alterar a Ordem Mundial e urge que os países adaptem às exigências de uma eventual nova era!
Concordando em todo ou em parte com as inferências do antigo Secretário de Estado americano e Professor de Ciência Política na Universidade de Georgetown, creio que somos forçados a repensar o contexto global e interpretar os sinais desse novo tempo de volatilidade, de incerteza e de imprevisibilidade, a partir de novas variáveis e, consequentemente, de novas abordagens...
Na verdade, como Pequeno Estado Insular em Desenvolvimento, com fortes vulnerabilidades, Cabo Verde pode de forma SMART e Convergente (algo que apela a um alargado pacto político sobre a política externa), encarar elementos e pistas inovadoras, buscando efetivamente as engenharias super-estruturais e infraestruturais, implicando todos os factores da nossa afirmação no contexto das nações, mormente a nossa posição geográfica - no carrefour do Atlântico, a estabilidade política e a nossa Diáspora. Como soubemos negociar a nossa saída da categoria dos PMA, pode-se hoje conjugar novos axiomas diplomáticos, particularmente nos eixos da diplomacia económica, alicerçadas na valorização do mérito e na responsabilidade partilhada junto dos nossos parceiros bilaterais e multilaterais. Urge criar uma Agenda diplomática clara no que tange à problemática do Perdão da dívida, bem como a remissão do pagamento das prestações por vencer.
Pode-se resenhar políticas públicas mais assertivas e impactantes para a nossa Diáspora, reflectindo estrategicamente na assunção efetiva da Nação Global.
Pode-se também reafirmar os grandes Objectivos do Desenvolvimento Sustentável - ODS, tornando o país um “showcase” da materialização das 17 metas globais para 2030. Eis um dos grandes desideratos da Governamentalidade Global dos nossos tempos!
Desafia-nos uma política externa mais adaptada à nova maneira de estar-no-mundo e, consequentemente, uma abordagem diplomática mais ajustada a este intervalo entre épocas. No caso de Cabo Verde, com a sua vulnerabilidade, o seu condicionamento aos factores externos e às variáveis exógenas, impõe-se-nos, antes de mais, uma correta contextualização geopolítica e uma redefinição das nossas margens de manobra internacional, assim como o nível do nosso poder de “Agentivité” e do nosso “Softpower”.
A eventual Nova Ordem Mundial requer que “pensemos com as nossas próprias cabeças”, como bem nos ensinou Amílcar Cabral. A reconversão como novo desígnio nacional, impõe-se, antes de mais, uma correta contextualização geopolítica e redefinição das nossas margens de manobra internacional.
É tempo de crise. Atendendo à pureza etimológica da palavra, significa que é tempo de decisão. E, se o fizermos de forma auspiciosa, este pode ser claramente o nosso Momento Kairótico, isto é, o bom momento de agirmos em termos de política externa. A mudança parece estar a bater às portas das nossas ilhas.
*Deputado da Nação. Secretario Geral Adjunto do PAICV para as Relações Externas e Diáspora. Investigador Universitário
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