Refletir a Universidade de Cabo Verde – (1ª Parte)   
Ponto de Vista

Refletir a Universidade de Cabo Verde – (1ª Parte)  

Uma universidade, pela sua finalidade, assente nas atividades de investigação, docência e transferência do conhecimento, o que faz dela uma arena académica, por excelência, a sua governação é, por natureza, complexa e há quem a considera como uma das organizações mais difícil de governar, exatamente, pelos níveis elevados de formação e do sentido critico do seu pessoal. Face a esse ambiente, a questão de liderança é premente! Esta deve ser visionária, informada e criativa, para promover um ambiente de forte engajamento institucional, aproveitando todo o seu potencial, em termos de capacidades humanas existentes.

Nos últimos tempos, tem-se falado muito do conhecimento e da sua importância no processo de desenvolvimento dos países e a “economia do conhecimento” surge como algo “novo”, quando na verdade não é (Chang, 2013)[i]. Na verdade, desde sempre, o progresso de um país tem dependido do domínio sobre o conhecimento que este tem (ou não tem). O Estado de Cabo Verde, ao criar a Universidade de Cabo Verde, deu um grande passo para promover a produção, a distribuição e aplicação do conhecimento no processo geral do desenvolvimento do país, visando o progresso e, consequentemente, o bem-estar aos cabo-verdianos, como fim último de todas as políticas públicas. 

Para um país pequeno como Cabo Verde, é simbólico e significativo a criação de uma Universidade pública com a designação do próprio país, como é o caso de Universidade de Cabo Verde. Há algumas vozes que, no entanto, criticam essa designação e argumentam que não conhecem qualquer outra Universidade com a designação do seu país. Nada mais falso, pois podem até não conhecer, mas existem e são várias, como por exemplo: Universidade Nacional de Singapura; Universidade da África do Sul, Universidade das Maurícias, Universidade Nacional Autónoma do México; Universidade das Seychelles, Universidade da Islândia, Universidade de Luxemburgo, etc. Importa realçar que esta última é de 2003 e é a única Universidade pública daquele país amigo de Cabo Verde. Portanto, o nome “Universidade de Cabo Verde” é significativo e representa uma visão global do Estado em ter uma Universidade pública forte, sem prejuízo, no entanto, de criação de novas instituições públicas em domínios específicos de especialização técnica, devendo, todavia, levar em consideração a dimensão do país e a sustentabilidade institucional, tanto de ponto de vista financeiro, como de todo o arcabouço técnico e científico.

Por outro lado, um outro aspeto fundamental a considerar nessas decisões é a capacidade de internacionalização, uma condição intrínseca da Universidade, na sua verdadeira aceção. Quando uma Universidade é demasiadamente pequena, para além de questões da sua sustentabilidade que se coloca, a tendência é para ter dificuldades no estabelecimento de redes, formação de parcerias e afirmação internacional. Importa considerar que há estudos que apontam que uma Universidade, para ter sustentabilidade, deve possuir uma base populacional de um milhão de pessoas. Não é por acaso que, nos últimos tempos, tem-se verificado fusões e formação de consórcios entre instituições do ensino superior, um pouco por todo mundo. A fusão recente entre a Universidade Clássica de Lisboa e a Universidade Técnica de Lisboa para dar origem a uma mega universidade - a Universidade de Lisboa, com cerca de cinquenta mil alunos, é um exemplo que nos é próximo e a ter em conta. Mas também, a ofensiva europeia lançada em 2019, por iniciativa do Presidente Francês, para a formação de consórcio entre as Universidades Europeias para competirem com as Universidades Asiáticas e Americanas, do qual faz parte, por exemplo, a Universidade de Aveiro, é um outro exemplo a ter em conta e que contraria a nossa prática de fragmentação de instituições do ensino superior, num país que já não tem, sequer, meio milhão de população, de acordo com os últimos dados do INE.

No entanto, apesar da dimensão, a questão central é ter uma boa universidade, capaz de promover a produção, a distribuição e a aplicação dos conhecimentos técnico-científicos nos processos do desenvolvimento do país.

A Uni-CV é ainda uma instituição nova, é certo, mas os sinais do seu desenvolvimento são preocupantes. Um dos seus maiores problemas é o défice no financiamento público. No início, a contribuição direta do Estado rondava 48% e, nos últimos anos, este tem variado entre 32 e 34% (Brito, 2019)[ii]. Esta prática contraria a tendência internacional, segundo a qual, o Estado ainda é o maior financiador do ensino superior público, com uma participação que varia entre 70 a 80% (Johnstone, 2014[iii]; Salmi, 2013[iv]). É claro que as Universidades, hoje, são cada vez mais pressionadas pelos Estados para mobilizarem os seus próprios recursos financeiros, através do aproveitamento das suas capacidades instaladas, na prestação de serviços às empresas e à sociedade, de uma forma geral.

Esta exigência permite às instituições mobilizar recursos próprios, complementares ao financiamento público, mas também favorece as suas afirmações na sociedade, como sendo relevantes, pelos serviços que prestam. Este quadro, que deve ser estimulado pelo Estado, através de medidas de política que promovem relações, por exemplo, das empresas com o mundo académico, cria uma lógica dialética (de relacionamento) entre as partes (academia, empresas e sociedade), em que a academia leva o conhecimento às empresas e à sociedade e, em troca, além de recursos financeiros que pode receber pelos serviços prestados, retroalimenta-se com novos conhecimentos e interrogações resultantes do seu contacto com o “terreno”, capacitando-se melhor para promover a inovação no país. Aqui, entra em jogo um outro problema maior da Uni-CV e que é a sua governança.

Uma universidade, pela sua finalidade, assente nas atividades de investigação, docência e transferência do conhecimento, o que faz dela uma arena académica, por excelência, a sua governação é, por natureza, complexa e há quem a considera como uma das organizações mais difícil de governar, exatamente, pelos níveis elevados de formação e do sentido critico do seu pessoal. Face a esse ambiente, a questão de liderança é premente! Esta deve ser visionária, informada e criativa, para promover um ambiente de forte engajamento institucional, aproveitando todo o seu potencial, em termos de capacidades humanas existentes.

O modelo adotado para a governança da Uni-CV e a forma como esta vem sendo liderada, particularmente nos últimos anos, são pouco abonatórios ao seu desenvolvimento institucional e, consequentemente, de baixa eficácia, no que concerne ao cumprimento da sua missão, face a um país que dela tanto precisa. O centralismo e a pouca abertura ao diálogo e reflexões sobre a vida da instituição e os seus desafios contrariam as melhores práticas internacionais da governança universitária e põem em causa a essência de uma Universidade, enquanto espaço de liberdade, de autonomia, de reflexões, de partilha e de produção e distribuição de conhecimento.

Sendo uma Universidade com défice “crónico” de financiamento público (situação muito preocupante e que deve ser corrigida pelo Estado), e com o modelo de governança que existe, ela tem sérias dificuldades em se afirmar, desenvolver e cumprir, adequadamente, a missão para qual foi criada. Se a questão financeira é preocupante, a forma como ela se organiza e funciona agrava ainda mais a situação, com fortes repercussões na sua capacidade de respostas e de fazer face aos desafios de mobilizar recursos financeiros próprios de que precisa. Com este ambiente de dificuldades, o efeito bola de neve entra em ação. Desde logo, a Uni-CV não consegue dotar-se de um corpo docente robusto e o que tem, não obstante o esforço pessoal e o máximo que cada um procura dar de si, o ambiente institucional é pouco favorável ao seu desenvolvimento profissional.

Se, por um lado, a questão financeira tem repercussão direta nos salários dos docentes e no desenvolvimento das suas carreiras, com todas as suas implicações (e há quem, depois de muitos anos de trabalho e de esforço pessoal para a aquisição do seu doutoramento, está a partir para a aposentação com um salário de miséria, por causa da estagnação na carreira), por outro, a falta de diálogo, o ambiente tímido de investigação, de reflexões e debates académicos não favorece o desenvolvimento profissional dos docentes, logo, a capacidade institucional da Uni-CV fica reduzida e o seu funcionamento é rotineiro e de sobrevivência.

[1] Arnaldo Brito - Professor na Universidade de Cabo Verde e Vice-Presidente da FORGES (Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa) - https://www.aforges.org.  Doutorado em Educação, na especialidade de Administração e Política Educacional - vertente Governança Universitária; Mestrado em Organização e Administração da Educação; Licenciado em História e habilitado com o Curso de Magistério Primário. Contacto: arnaldo.brito@docente.unicv.edu.cv  / arnaldo.brito@sapo.cv

Referências

[i] Chand, H-J. (2008). 23 coisas que não nos ensinaram sobre o capitalismo. São Paulo: Editora Cultrix.
[ii] Brito, A. (2019). Governança universitária: modelos e práticas. O caso da universidade de Cabo Verde. Lisboa: Educa.
[iii]Johnstone, D. B. (2014). Financing higher education: worldwide perspectives and policy optio. Retirado de: thf-papers_financing-higher-education.pdf (headfoundation.org).
[iv] Salmi, J. (2013). Defining a sustainable financing strategy for tertiary education in developing countries. Policy note prepared for AusAID. Retirado de: http://www.auserf.com.au/wp-content/files_mf/1373503003Policynote6_DefiningaSustainableFinancingStrategy_FINAL_26062013.pdf

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