Praia Leaks XV. (Espantosa novidade neste intervalo)
Ponto de Vista

Praia Leaks XV. (Espantosa novidade neste intervalo)

No número anterior informei que suspenderia os artigos “até depois das eleições que se avizinham, seja qual for o resultado das mesmas”.

As eleições foram ganhas na Praia por uma nova força política - o PAICV, com seu candidato Francisco Carvalho. Ora, tendo o novo edil eleito dito, com simbólica verdade, num debate durante a campanha eleitoral, que a corrupção fundiária constitui já o estatuto especial da capital, é legítimo esperar que algumas questões venham a ser esclarecidas e medidas tomadas. Justifica-se, assim, um compasso de espera nestes textos, pelo menos até à posse.

Mas aproveito este meio-tempo para trazer uma informação nova e surpreendente para mim, no quadro dum assunto já tratado; e para corrigir dois lapsos, um deles na verdade irrelevante em conteúdo, mas sempre de corrigir, e o outro irrelevante porque apenas a palavra inspirada de Kodê di Dona será ouvida: ele cantou “kantu dia ku kantu noti/ kantu dia sen kebra djudjun”, atirando a nossa imaginação para o tempo indefinido duma dor infinda e não os “séti dia...” em que no leak II se enclausura o infinito. Fica esta correção.

Revisitemos o assunto já tratado:

Ficou claro que, mais do que aquilo que aconteceu em 1954 (o ilegal alargamento registal dos terrenos adquiridos por Fernando Sousa), a causa próxima que motivou os PRAIALEAKS localizou-se na segunda metade dos anos noventa, culminando com o assalto criminoso às matrizes em 1999 e com a entrega de Palmarejo Pequeno, Terra Branca e Tira Chapéu pelo Presidente da Câmara aos assaltantes.

Um tal assalto (que, rasgando e reescrevendo falsamente as quatro primeiras folhas do livro de matrizes rústicas n.º 1, permitiu a jusante a produção da matriz falsa 1.105 – além de outras não menos falsas), está tão comprovado como o fica ter havido um homicídio quando se encontra um corpo esfaqueado e morto na rua. Ninguém jamais ousou negá-lo.

Lendo a acusação do Ministério Público vê-se que até se sabe quem concretamente fez o trabalho com sua própria caligrafia (pessoa já falecida) e vê-se a preparação desse assalto a um alto nível político e municipal, partindo duma carta de 1997 em que um advogado português de Fernando Sousa praticamente pede colaboração das autoridades para a fraude (veja-se Praia Leaks – III). E sabe-se, porque resumido na expressão FS/NANÁ, quem tirou e vem tirando, continuamente até hoje, proveito da fraude matricial de 1999.

Ora bom, como vimos, em 2017 a Câmara Municipal da Praia de Óscar Santos, seguindo um Memorandum de Entendimento de 2014 de Ulisses Correia e Silva, negociou com FS/NANÁ, através dum contrato falsamente chamado de compra e venda, os terrenos correspondentes à matriz falsa 1.105. Negociou e na base desse negócio ficou de dar rios de dinheiro a FS/NANÁ.

Mas – e este é o ponto! - até hoje absolutamente ninguém (nem FS/NANÁ, nem qualquer dos citados autarcas, nem algum vereador ao serviço dos mesmos), apresentou, quanto aos prédios invadidos pelo registo fraudulento, qualquer documento de aquisição por parte de Fernando Sousa, seja por compra e venda, por doação, por arrematação em hasta pública, por herança, por usucapião ou outro meio previsto nas leis para a aquisição de direitos.

E note-se que todos esses modos de aquisição só podem constar de documento, incluindo a usucapião, que é declarada por tribunal ou reconhecida por notário e conservador em processo próprio. Ora, tais documentos constam, até hoje, dos livros da conservatória do registo predial da Praia, em nome de outras entidades.

Acredito firmemente que nenhum jurista sério seria capaz de afirmar que a arrematação dos prédios descritos sob os n.ºs 5.779 e 5.780 foi uma forma de aquisição dos prédios já descritos sob os n.ºs 3.561, 3.562 e 5.210, bastando para tanto que aqueles prédios arrematados fossem fraudulentamente alargados no registo para cobrirem estes últimos e se falsificasse uma matriz para eles.

Dizê-lo seria acrescentar às formas legais de aquisição do direito de propriedade mais uma, muito estranha: a fraude, o crime.

Compreenda-se, pois, o desabafo expresso no Leak I: “Jurei para mim lutar contra a ideia de enfraquecer o Estado, fragilizando para isso a Administração Pública, como guardiã da Legalidade de procedimentos, ao reduzi-la à vontade discricionária de governantes (...)”.

Pois bem: Vamos agora à tal informação nova, surpreendente e talvez chocante. O leitor que se sente confortavelmente e ouça:

Quando escrevi os textos antecedentes a este eu estava convencido de que o prédio 3.561 se encontrava inscrito no registo predial, desde 1907, em nome dos Tavares Homem (António Gil e João de Deus Tavares Homem – respetivamente sob os n.ºs 1.024 e 1025), apesar de recoberto pelo registo ilegal de Fernando Sousa de 1954 e pela matriz da mesma laia de 1999. Lembrava-me de ter visto a certidão atualizada do 3.561 ainda em inícios de 2019 e lá estavam aquelas inscrições como sendo as últimas.

Entretanto, alguém disse-me há dias: olha que o 3.561 tem um registo provisório, por compra feita à ENAVI, em nome da EFE – Sociedade para o Ensino, Formação e Educação, SA, que é dona do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais e da qual Arnaldo Silva é sócio!

Não acreditei. Tinha ideia de que realmente a EFE tinha comprado terreno na área do 3.561, pois cheguei a ver aí uma tabuleta de onde se depreendia isso, mas pensei que o vendedor teria sido FS/NANÁ, usando este a descrição 5.780 falsificada e a matriz 1.105 idem que sempre usou, pelo que no 3.561, intencionalmente ignorado, tal aquisição não poderia estar registada, mas sim no 5.780.

Mas surpreenda-se o leitor com esta trapalhada: Em 2014 a EFE, sociedade de Arnaldo Silva, comprou à ENAVI, SARL, 50.000 m2 de terreno na área do 3.561, mas sem referir este prédio. Ou seja, a EFE, SA, de Naná, comprou à ENAVI tereno efetivamente dentro do 3.561, mas que segundo ele FS/NANÁ estaria no seu 5.780 alargado.

Dá para entender? A sociedade de Naná comprou na ENAVI terreno que FS/NANÁ dizia pertencer-lhe?!...

Vim a saber que em 2015 uns Tavares Homem meteram uma providência cautelar para retirar à EFE a posse abusiva que tinha tomado, tendo o juiz deferido o pedido e restituído a posse, mas a ação definitiva marca passo paralítico até hoje.

Mais: tendo a EFE, de Naná, comprado apenas 5 hectares dum prédio descrito com número diferente quer do 3.561, quer do 5.780, mas na realidade dentro da área do 3.561, o conservador registou em 2019 provisoriamente todo o 3.561 (que tem a área de mais de 300 hectares) em nome da EFE.

Óh ke sabe!!!

E é com esta sabura amarga para o país que fechamos esse assunto “fastento” e passamos alegremente ao lapso ainda não corrigido, mudando por completo de espírito, mais para nos descontrairmos com uma história interessante de utilidade indireta para o nosso tema do que para corrigir o lapso. Inspiro-me, com descontração imaginativa de quem não é historiador, numa obra rigorosa e saborosíssima de Laurentino Gomes intitulada “1808”.

No leak VIII, mostrando que o poder colonial verberava contra a ocupação fraudulenta de grandes extensões de terrenos nas possessões ultramarinas, escrevi:

Estou a ver o Príncipe regente Don Pedro, no seu Alvará de 18 de Setembro de 1811, a pressionar, aguerridamente, desde o Rio de Janeiro, no sentido da divisão das grandes propriedades para o bem da agricultura. Ele proclamava o propósito de “desterrar de vez e extinguir pela raíz as maquinações perniciosas, com que se tem procurado, por manejos criminosos, e particulares interesses, dilatar a execução das minhas paternais disposições, tendentes a promover o aumento e melhoramento da Agricultura”.

A referência a Don Pedro foi um lapso: príncipe regente era o pai dele, D. João VI, filho de D. Maria I, “a louca”. D. Pedro, que, como se sabe, viria a proclamar a independência do Brasil a partir das margens do Ipiranga (um riacho) em 1822, na altura do alvará se abeirava dos 13 anos.

Será interessante – porque de algum modo faz parte da nossa história, até porque no ato da Independência do Brasil ficou consignado que este nunca reivindicaria direitos sobre Cabo Verde e isso por alguma razão foi – falar um pouco da ida de toda a corte portuguesa, isto é, de toda a governação (milhares e milhares de pessoas) para o Brasil, protegida pela armada da “Senhora dos Mares” (Inglaterra), fugindo ao bloqueio continental imposto por Napoleão Bonaparte a todos os países europeus contra os interesses ingleses.

O Imperador e general, que não digerira bem o esmagamento naval infligido por Lord Nelson em 1805 às esquadras francesa e espanhola juntas, na Batalha de Trafalgar, ordenou o bloqueio continental de todos os interesses ingleses, pois em terra mandava ele.

Ordens a que nenhum rei ou rainha ousou desobedecer, se excluirmos a Dinamarca que “tuntunhiu” (hesitou) e foi preciso para a convencer uma saraivada de quatro dias seguidos (noite e dia) de tiros de canhão sobre Copenhaga, despejada pela armada francesa – pois, como se sabe, em política a força do argumento nada vale perante o argumento da força.

Mas Portugal, pequeno e fraco país europeu, teria de se esquivar de algum modo, pois a sua economia dependia totalmente da Inglaterra. Aliás, era uma aliança antiga em que, por exemplo, havia cerca de século e meio os cidadãos ingleses em Portugal só eram julgados por juízes nomeados pela Inglaterra (hoje em dia, com alguns ajustes, chama-se “SOFA” a essas coisas).

Assim, a fuga para o Brasil, tantas vezes defendida como forma de manter a Independência (já perdida uma vez no passado para uma “tróica” de Filipes espanhóis sucessivos), acabou por acontecer em 29 de novembro de 1807.

Nessa altura a França e a Espanha já tinham dividido Portugal entre si, em três partes, cabendo a parte central e mais rica ao irmão mais novo de Napoleão, Luciano, que entretanto a repudiou (achou pouco?!). Mas pouco tempo depois a Espanha teve um comportamento que desagradou a Napoleão e este depôs o rei Carlos IV e deu o trono espanhol a seu outro irmão, José Bonaparte (naquele tempo isso não era nepotismo), o que provocou revolta popular sufocada por massacres.

A fuga foi uma aventura sem precedentes que viria a ditar os novos destinos de Portugal, da sua colónia americana e até do próprio Napoleão Bonaparte antes do desastre final de Waterloo.

O general invencível, que em dez anos não sofreu qualquer derrota de algum exército regular, na península ibérica enfrentaria uma guerra esquisita do povo, com repentinas pauladas na nuca e pedradas na cabeça, vindas de mãos, forquilhas e fundas invisíveis, foices nas pernas, engenhos explosivos e emboscadas que criavam um inferno.

Assim, quando o general Junot chegou a Lisboa e, depois de encolher um dedão do pé que teimava em querer sair da bota a romper-se, aplicou o binóculo e julgou ter avistado na linha do horizonte, longe do Tejo, as naus da fuga que tinham partido dois dias atrás e a que finalmente os ventos enfunavam as velas, concluiu: “apanhei vazio!”.

Ele já tinha perdido centenas de homens e sabia que se metera numa alhada, mas nem imaginava o mais que lhe esperava... e não vou contar.

No Brasil foi assinado em 1810 um tratado a reforçar os laços de amizade (os SOFA, digamos) com a Inglaterra, com componentes de vantagens comerciais importantes, pois em política não há almoços, nem viagens e proteções grátis e no Brasil – largo mercado potencial para a Inglaterra industrial inundar de tudo - é que morriam o peixe do ouro e do diamante.

A governação de Portugal a partir do Brasil durou até 1821. A viagem de regresso da corte coincidia com o último suspiro do incomparável e culto general que, desterrado e deprimido por ali no meio do Atlântico sul, na rochosa ilha de Santa Helena, já não magicava heroica fuga (como de Elba) nem melhorias no seu cadastro predial ou grandes reformas sociais para além da Constituição e do Código Napoleónico da liberdade contratual e da igualdade, com que fechava o “Ancien Régime” e abria o futuro.

Salva a interpretação de modernos doutos, vá para Napoleão Bonaparte o louvor de Camões aos Antigos: “numa mão sempre a espada noutra a pena”.

Pois bem: foi lá do longe, no Brasil, onde se praticava, com bênçãos da corte e pela corte, a mais braba e inovadora corrupção naquela altura (hoje não sei), que o Príncipe regente se insurgiu, como vimos, contra o que de igual – se tanto! - acontecia nas (outras) colónias.

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