Segundo Charles Akibodé, por causa da regularidade de violação dos homens africanos escravizados pelos padres, que surgiram expressões em língua caboverdiana como: leba na ku, toma na ku, e da na ku. Expressões essas obscenas, provêm do crime de violação que foram introduzidas, aos poucos, na língua caboverdiana. Até hoje, a igreja católica caboverdiana com toda a sua elegância não solicitou um pedido de perdão à sociedade caboverdiana perante este crime contra humanidade. A crise moral da igreja católica, hoje, no cometimento do crime da violação no mundo, é reflexo e consequência de um passado colonial de crime de violação contra os africanos.
Parte II: Historiografia: omissões e assuntos silenciados
O povoamento de Cabo Verde, por via da escravatura, tem origem nos povos de região da Alta Guine, hoje os países do Senegal até Serra Leoa. Por exemplo, a formação de língua caboverdiana tem morfologia oriunda de Jalofo e Mandinga. Nos séculos quinze e dezesseis, a maioria dos falantes de uma língua em Cabo Verde era primeiro Jalofo e Mandinga, confrontando a língua do escravocrata, o português. Sobre a mesma matéria, afirma o Pedro Pires, no seu O meu Compromisso com Cabo Verde, Volume I: 2001-2006, disse que:
Estratos profundos e ancestrais da nossa cultura registam traços de ascendência wolof, por exemplo. Desta etnia provieram gestos e objectos que penetraram os poros íntimos da nossa vivência colectiva, instalando-se no seu âmago. Prova disso é que muitos dos gestos e objectos que modelaram secularmente o nosso quotidiano foram designados no crioulo por palavras da referida origem. Alguns estudiosos que, nos últimos tempos, se lançaram corajosamente na busca das origens africanas da nossa língua materna—facto deveras importante, uma vez que o crioulo tem vindo a ser estudado mais na perspectiva estruturalista do que óptica da etimologia— afirmam que termos como bindi, feti-feti, tchuputi e tantos outros têm a sua origem no wolof. São dados da Linguística que a História abona e ajuda a explicar. Neste sentido, incito os historiadores e linguistas cabo-verdianos e senegaleses, assim como todos aqueles que se interessam pelas nossas culturas, a desvendarem os mistérios destes cruzamentos longínquos e olvidados. (p.310)
Exemplos de pesquisas indo nesta direção é o que não faltam. Por exemplo, em Louisiana, nos Estados Unidos, o historiador senegalês, Ibrahima Seck pesquisou sobre Whitney Plantation para mostrar influencias cultural de jalofo/Senegal, que resultou em seu livro, Bouki Faiti Gombo: A History of the Slave Community of Habitation Haydel (Whitney Plantation) Louisiana, 1750-1860. Tem muitos outros exemplos nos estudos sobre diásporas africanas, nos quais são pesquisadas as origens dos africanos escravizados e suas influencias nas formações socioculturais das Américas.
Portanto, penso que está mais do que evidente de que a abordagem da História Geral de Cabo Verde, focou em navegadores e descobridores europeus e as suas instituições políticas, econômicas e religiosas. A título de exemplo, a formação do catolicismo em Cabo Verde, que foi de natureza sincrética por causa das influências das religiões africanas, entretanto no capítulo “Igreja, Missionação e Sociedade,” em HGCV (Vol II, 2ª edição), Maria Emília Madeira Santos e Maria João Soares justificaram esta omissão da seguinte forma:
Ao optarmos pela expressão Igreja, Missionação e Sociedade não estamos, porém, a tomar uma posição restritiva. A presença da Igreja Católica é tão pertinaz em todo o arquipélago e a sua manifestação social tão sólida que parece ser esta a única religião que prevaleceu desde os primórdios da presença da Ordem de Cristo até à actualidade. Sabemos que não é assim.
A religião, tal como a alimentação e a língua, são áreas de permanência que oferecem ao historiador de África vias regressivas para o teu trabalho. Estes temas são detectáveis na documentação dos séculos XVI e XVII, mas apenas emergem pontualmente, sendo o primeiro o mais difícil de aprender. A verdade é que a religiosidade africana não era compreendida na época por aqueles que a conheciam e se lhe referiam fugazmente. Eram em geral os padres que denunciavam a presença de práticas a que chamavam gentílicas, mas no que diz respeito às ilhas de Cabo Verde, raramente ousavam descrever e não pretendiam aprofundar. (p.359)
Porém, esta justificação intrigou-me bastante, porquanto sempre acreditei que o desafio interessante para o historiador é precisamente buscar várias fontes e confrontá-las para escrever a história. Em 2019, no segundo II Seminário Tecendo Redes Antirracistas: Encerramento que aconteceu em Praia, Cabo Verde, o historiador António Correia e Silva, disse que descobriu fontes como a de Manuel de Barros, um padre jesuíta, que descreveu os ritos de religiões africanas no século dezessete, sobretudo de rito de água vermelha. Nos primórdios de escravização em Cabo Verde, a predominância dos jalofos era marcante e eles praticavam o Islão. Correia e Silva disse que a arqueologia descoberta em Cabo Verde perto das igrejas, revelam que os africanos enterrados tinham posturas fetais que demonstram que esses crentes praticavam religiões africanas. Na minha própria tese de doutoramento, descrevi festas de “reynados” e foro (atualmente cinza) como rituais católicos sincréticos durante século dezoito. A falta desta perspectiva mais abrangente e crítica tem acontecido porque o foco continua centrado na história institucional, tal como a história de igreja católica em Cabo Verde, ao invés de uma história social dos povos.
Recentemente, na Cidade Velha, foi celebrado decénio jubilar dos 500 anos da Diocese de Santiago. Porém, historicamente, a igreja católica em Cabo Verde esteve sempre fortemente ligada à escravatura e ao tráfico negreiro (através do baptismo dos africanos capturados, compras e vendas destes ‘pagãos’). Ademais, cônegos e padres violavam os escravos e as escravas, que alguns foram denunciados ao Santo Ofício durante a Inquisição. Por exemplo, Luiz Mott escreveu que em 1640 em “Cabo Verde, ao ser preso o cônego Gabriel Dias Ferreira, 28 anos, natural desta mesma ilha atlântica, acusado de ter mantido cópulas sodomíticas com 82 jovens, negros em sua maioria, assim comentava o inquisidor Pedro Castilho: ‘este réu devasso é prejudicial por cometer o pecado de sodomia com muitos rapazes negros e boçais, e ser primeiros denunciados daquela parte donde parece não havia notícia do dito crime antes dele.’”[1]
Segundo Charles Akibodé, por causa da regularidade de violação dos homens africanos escravizados pelos padres, que surgiram expressões em língua caboverdiana como: leba na ku, toma na ku, e da na ku. Expressões essas obscenas, provêm do crime de violação que foram introduzidas, aos poucos, na língua caboverdiana. Até hoje, a igreja católica caboverdiana com toda a sua elegância não solicitou um pedido de perdão à sociedade caboverdiana perante este crime contra humanidade. A crise moral da igreja católica, hoje, no cometimento do crime da violação no mundo, é reflexo e consequência de um passado colonial de crime de violação contra os africanos.
Por tudo isto, torna-se um imperativo reescrever uma história ampla e fiel aos fatos e ao seu ensinamento. Por exemplo, no fim da luta armada teve uma iniciativa da escrita de uma nova história, intitulada PAIGC 1974, História da Guiné e ilhas de Cabo Verde. Era uma perspectiva com algumas rupturas epistemológicas, designadamente ir além da história de colonização. Por isso, esta história tomou como marco inicial não a escravatura, mas, sim, a origem da humanidade.
Aquele livro, também, foca na imigração do povoamento da já referida região; possui temas referentes ao surgimento de várias comunidades decentralizadas e centralizadas; expansão do Islão; o contato de África com Europa, com atenção ao tráfico negreiro e outros comércios etc. Por mais incrível que se possa imaginar não é esse manual que se usa no pós-independência para o ensino da história.
* Doutorado em História de África
[1] “Raízes Históricas da Homosexualidade Atlântico Lusófono Negro,” Afro-Ásia, 33 (2005), 10.
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