Sim, poderia ter escrito um texto muito bonito sobre o 5 de julho, data em que se assinala a independência de Cabo Verde. Poderia, pois, mas parece-me que sobre essa matéria já escrevi tudo o que havia para dizer, não subsistindo dúvidas sobre o que sinto pelo país e pelas suas gentes. Amo Cabo Verde e ponto final! E, já agora, viva a independência nacional!
Não que eu acredite nesse conceito abstrato, porque, de facto, Cabo Verde é independente, mas pouco. Isto é, formalmente é um país independente, tem hino, tem bandeira, presidente, parlamento e governo próprio, mas – como cada vez mais se percebe e principalmente com o atual governo -, o País está amarrado aos ditames do império e da União Europeia (UE), não decidindo nada fora dos interesses geoestratégicos destas duas potências. Aliás, isso é cada vez mais visível ao nível da política externa, com Cabo Verde a abandonar aquela que foi sempre a sua linha estratégica em matéria de política diplomática: independência e não alinhamento.
AO LADO DOS SENHORES DA GUERRA
Poder-se-ia dizer que “o mundo mudou”… mas, sendo verdade que mudou, Cabo Verde adotou uma atitude de submissão, sem princípios e não salvaguardando o seu próprio interesse nacional, numa altura em que o império e a UE se encontram em acelerado processo de decadência, impotentes perante a emergência de novas potências mundiais. Neste cenário, em vez de trabalhar para a paz, o País colocou-se ao lado dos senhores da guerra.
Enfim, pode-se cortar as correntes, mas, se o escravo continua dentro da cabeça, não há nada a fazer…
A prazo, o País irá pagar custos elevados pelas suas atuais opções, e não apenas ao nível da sua política externa. Em matéria económica as consequências poderão ser arrasadoras.
AUMENTO DO CONSUMO É FUNDAMENTAL PARA O CRESCIMENTO DA ECONOMIA
Ao mesmo tempo que se ostenta o crescimento da economia, exibindo percentagens em abstrato, procurando fundamentar a suposta comprovação de boas políticas, a verdade é que isso não é sentido no país real, com a estagnação do consumo.
Ora, entre outros fatores, a condição fundamental para o crescimento da economia real (isto é, com impactos junto da população), é o aumento do consumo. E como é que isso se consegue? Naturalmente, através do aumento dos salários. E isso, objetivamente, não constituiu uma opção deste governo.
GOVERNOS SÃO AGENTES DOS MERCADOS FINANCEIROS
Trata-se de uma originalidade crioula? Claro que não. Os governos são uma espécie de agentes dos grandes interesses económicos, fundamentalmente dos mercados financeiros. São eles que decidem tudo e quem tem uma ténue atitude de insubmissão, normalmente, está tramado. Para contrariar isso é preciso ter (recorrendo ao calão) “eles no sítio” e contar com um amplo apoio popular, o que não é o caso deste governo!
JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E POLITIZAÇÃO DA JUSTIÇA
Paralelamente, temos verificado, nos últimos anos, um processo de judicialização da política e de politização da justiça, com maior incidência na antecâmara da pré-campanha para as eleições autárquicas deste ano, procurando afastar adversários na secretaria (como se diz no futebol), condenando sem julgamento e sem trânsito em julgado.
De forma atamancada, procurou-se contrariar a ideia negativa, suscitada na opinião pública, de utilização da justiça de forma discricionária e com objetivos políticos, generalizando as ações de busca e apreensão nas autarquias a poucos meses das eleições, inclusive, recorrendo a métodos pouco consentâneos com um Estado de Direito democrático, exibindo armas e agentes de cara tapada, criando desnecessário alarde público.
A intenção é criar a perceção de que a Justiça abate sobre todos a sua mão pesada, independentemente do partido. O tiro, porém, saiu pela culatra, envolvendo em ridículo as operações policiais, ao mesmo tempo que se procura confundir eventuais inconformidades administrativas om crimes, ainda não investigados e dificilmente comprováveis. É o manicómio eleitoral a falar mais alto do que a racionalidade!
ENTORSES DEMOCRÁTICOS
O governo – e o partido que o sustenta – está a cometer erros estratégicos graves, seguindo uma agenda que, nuns casos, é lesiva do interesse nacional; e, noutros, gravosa para o Estado de Direito, gerando entorses democráticos de consequências imprevisíveis.
Em devido tempo, previ que as lideranças do MpD percorreriam esse caminho, não aprendendo com a História e não reconhecendo os tiros no pé que têm dado nos últimos anos. O que é uma pena, porque este governo tinha tudo para dar certo, detinha todas as circunstâncias para mobilizar o País e levá-lo a outros patamares.
A verdade é que este MpD há muito deixou de ser um partido, é (como em tempos referi) uma sociedade anónima dirigida por um duvidoso conselho de administração, que começou o seu percurso esvaziando o partido de militantes e substituindo-os por especialistas de coisa nenhuma, conselheiros de generalidades, tecnocratas e alpinistas sociais, salvo meritórias exceções.
É com dor que o digo! Em 2016 acreditei, de facto, que vinha aí um tempo novo. Não veio (ou, no máximo, veio em algumas tranches)! E, seguramente, quem mudou não fui eu.
“BOLSONARISMO CRIOULO”
Paralelamente, setores relevantes do MpD têm vindo a alinhar, consciente ou inconscientemente, em narrativas adversas ao valores democráticos e republicanos, propagando fake news e tentativas de assassinato de caráter (de que eu próprio já fui alvo), gerando uma espécie de “bolsonarismo crioulo” que é estimulado mesmo por altos dirigentes ventoinha. É o lamaçal!
Perante um cenário destes, seria útil o pronunciamento dos antigos presidentes da República de Cabo Verde (como sugeriu um amigo), mas, quer Pedro Pires, seja Jorge Carlos Fonseca, mantêm-se em silêncio ou debitam declarações generalistas e politicamente corretas, sob a capa de um nubloso distanciamento institucional.
Instalou-se o silêncio sistémico!
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