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Humberto Cardoso e as falsas percepções
Ponto de Vista

Humberto Cardoso e as falsas percepções

A Constituição da República deve ser um instrumento que une a nação, e que todos nela se sintam e se revejam nos seus princípios e valores. O consenso político-social a volta da constituição a partir de 2010, protagonizado por atores legitimamente investidos, não pode ser quebrado por entes não investidos de legitimidade democrática, por, no entendimento dos subscritores, a sua ação não se compaginar com o Direito Democrático, sublinhamos: Direito Democrático. Bendito o país que tem uma sociedade civil que se ergue para defender a constituição, e que usa os mecanismos que a própria constituição estabelece para fazer valer o seu direito e a ser escutado, colocando as suas dúvidas e inquietações aos seus legítimos representantes. Bendito, esse país!

A Petição Pública, que pede ao Presidente da República que solicite ao Presidente da Assembleia que convoque uma sessão extraordinária da Assembleia Nacional para que sejam debatidos os efeitos sobre alguns comandos constitucionais, em resultado do acórdão 17/2023 do Tribunal Constitucional, conseguiu granjear, por um lado, uma grande adesão de setores importantes da sociedade cabo-verdiana, e. por outro, produzir alguns anticorpos em uma certa elite, felizmente de pouca expressão, que não apoiam a iniciativa.

Em poucos dias, a Petição conseguiu-se obter a subscrição de mais de dois mil pessoas, de todas as ilhas de Cabo Verde, bem como da nossa diáspora, e de entre os subscritores deve-se destacar figuras, sem desprimor para os demais, de um ex-presidente da Assembleia Nacional, de um ex-primeiro-ministro, de quase uma dezena e meia de ex-membros do governo, de quase uma dezena de ex-deputados, de um Chefe da Casa Civil da Presidência da Republica, uma dezena de académicos (professores universitários), de nove dezenas de professores, de quase duas dezenas de médicos, de quase duas dezenas de juristas e advogados, mais de três de dezenas de empresários, enfim um naipe diferenciado de cidadãos, alguns tendo desempenhado altas funções na administração do país.

Como é normal na democracia, há quem não concorde com esta iniciativa, e obviamente está no seu legítimo direito de não concordar, podendo fundamentar as suas posições com fatos e argumentos sérios.

Não se pode, no entanto, a pretexto de não se concordar com a petição, usar como argumento justificativo o que a petição não tem, não diz e não defende.

O exemplo acabado, do que atrás se disse, é o texto do último Editorial, no Jornal Expresso das Ilhas, saído do punho do seu Diretor, Humberto Cardoso.

Humberto Cardoso que nos tem brindado com textos opinativos sérios, válidos, ponderados e construtivos ao longo desse tempo, desta vez abriu uma exceção para se destoar da sua bitola de alto nível e bastante racional para deixar falar (escrever) o coração, portanto dando vazão ao sentimento e a emoção.

Escreve o Humberto Cardoso que existe uma tentativa(?) por parte dos promotores de “envolver o Presidente da República na contestação do acórdão do Tribunal Constitucional que decidiu pela constitucionalidade da resolução da Assembleia Nacional que autorizou a detenção de um deputado”.  

Este argumento, com todo o respeito, não é sério. Cardoso sabe que com a constituição de 1992, os cabo-verdianos ganharam um dos direitos mais importante da vida de um cidadão e de uma coletividade que é o de participação política e cívica, estando esse direito integrado no catálogo dos Direitos, Liberdades e Garantias.

A constituição consagra no nº 1 do artigo 59º que “Todos os cidadãos, individual ou coletivamente, têm o direito de apresentar, por escrito, aos órgãos de soberania ou do poder local e a quaisquer autoridades, petições, queixas, reclamações ou represen­tações para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e bem assim o direito de serem informados em prazo razoável sobre os resultados da respetiva apreciação”.

Parece de uma evidência cristalina que a constituição franqueou as portas para que os cidadãos, querendo, pudessem apresentar petições, reclamações ou representações em defesa dos seus direitos ou da constituição e das leis aos orgãos de soberania, sendo também claro que a constituição não discriminou orgãos de soberania a que se pudesse dirigir, podendo os cidadãos apresentar as suas petições a qualquer um.

Logo, só por má-fé se pode insinuar que se pretende envolver o Presidente da República na contestação, como se essa iniciativa fosse um expediente fora da lei ou dos princípios que regem o regime jurídico das petições. Também só por má vontade, Humberto Cardoso pode conseguir ler na Petição a contestação ao acórdão do Tribunal Constitucional, a não ser se estiver com falsas perceções ou seja a ver o que não existe. Várias vezes os promotores já afirmaram e sublinharam que a decisão do tribunal constitucional está tomada, decidida por um órgão legítimo e que cumpre acatá-la e respeitá-la. Discutir os efeitos da decisão é coisa bem distinta daquela de discutir a decisão, uma vez que a ação decorre em uma fase posterior à decisão e tem a ver com a sua aplicação e as suas implicações.

Vou tentar explicar, exemplificando: um tribunal decidiu condenar uma pessoa a uma pena de multa de mil contos. A pessoa condenada vai ter que arranjar os mil contos para pagar a multa. Reúne a família discute a forma de pagar que poderá ser: ou vendendo o terreno, se o tiver, ou a casa ou o automóvel ou outros bens. A família quando discute a forma de pagar, não está a discutir a decisão do tribunal, está, sim, a arranjar a forma de cumprir a decisão, ou seja, debatendo as consequências ou os efeitos da decisão, traduzidos na mobilização do dinheiro para pagar a multa.

Me parece fácil de demonstrar que não se está a pedir para que se discuta as decisões judiciais, nem a sua alteração e, muito menos, a sua revogação, pelo que não deixa de ser abusivo fazer tal insinuação com base no que não está dito, nem escrito, em ponto algum da petição.

Por outro lado, alega Humberto Cardoso  que “o princípio de separação de poderes não permite interferência dos orgãos de soberania nas decisões judiciais. Também é sabido que acórdãos têm força obrigatória geral”. Pois é, o raciocínio aplicado para formular o juízo sobre a separação dos poderes padece de um vício (parece que não é único com essa anomalia cognitiva) que é o de considerar que o parlamento vai discutir a decisão judicial, o que manifestamente não é o caso, como já foi atrás desenhado com exemplo para ficar mais simples de entender.

Tentar colocar a causa e o efeito no mesmo plano ou, pior ainda, confundi-los não é um exercício sério e não abona a favor de quem o faz.

Importa, no entanto, sublinhar que o nº 1 do artigo 59º da Constituição da República[1] quis que nenhum órgão de soberania ou entidades públicas ficassem fora do perímetro da sindicância dos cidadãos quando afirma que todos os cidadãos “têm o direito de apresentar, por escrito, aos órgãos de soberania ou do poder local e a quaisquer autoridades”, petições, queixas, representações, etc., significando com isso que nem os tribunais, enquanto órgão de soberania, estão excluídos do escrutínio dos cidadãos.   

Porém, como em Cabo Verde temos as nossas idiossincrasias, acontece que em 1997, com a aprovação do Regime Jurídico  do Exercício do Direito de Petição, introduziu-se uma limitação que briga flagrantemente com a constituição quando no nº 1 do artigo 2º  estabeleceu-se que “Todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou coletivamente, aos órgãos de soberania e a quaisquer autoridades públicas, com exceção dos tribunais, petições, representações, reclamações ou queixas para a defesa dos seus direitos, da Constituição, das Leis ou do interesse geral” ou seja: excluiu-se um dos orgãos de soberania do perímetro das petições.

A subtração do direito dos cidadãos de poderem apresentar aos tribunais, incluindo o Tribunal Constitucional, “queixas, reclamações ou represen­tações para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral”, parece não estar de acordo com a constituição porque, todos sabemos, que uma lei infra-constitucional não pode alterar ou restringir direitos constitucionalmente estabelecidos, a não ser que a própria constituição preveja a sua restrição, e pior ainda, porque os Direitos, Liberdades e Garantias, categoria a que o direito de petição pertence, integram o elenco dos limites materiais de revisão, não podendo sequer serem alterados por via da revisão constitucional.

Ora, se se prevalecer o principio da supremacia da constituição é mais que evidente que os cidadãos cabo-verdianos deveriam conservar o direito de questionar as decisões dos órgão de soberania, tendo essas decisões a proveniência que tiverem.

Cardoso advoga paternalisticamente que o normal seria avançar com uma petição “dirigida à Assembleia Nacional a propor aos deputados e aos grupos parlamentares que legislassem para clarificar normas e procedimentos respeitantes à imunidade parlamentar e, se for necessário, proceder a uma revisão da constituição”, esquecendo-se que é um direito dos peticionários, e, de acordo com o estabelecido na lei, o de escolherem livremente as vias e os caminhos que entenderem mais convenientes, sempre no respeito pela legalidade estabelecida.

Esta petição assume a forma de “representação” que como diz a Lei n.º 33/IV/97 (nº 3 do artigo 2º) se trata de uma “exposição destinada a exprimir posição diversa da perfilhada por qualquer entidade pública, ou a chamar a atenção de uma autoridade pública relativamente a qualquer situação ou ato, com vista à sua revisão ou à ponderação dos seus efeitos”.

Convém que se preste bem a atenção a esta norma: os cidadãos têm o direito de “chamar a atenção de uma autoridade pública relativamente a qualquer situação ou ato, com vista à sua revisão ou à ponderação dos seus efeitos”

A lei não exclui aos peticionários o direito de solicitar aos órgãos de soberania que pondere sobre os efeitos de uma decisão tomada por qualquer entidade pública.

Além disso, os peticionários também entendem que se deve deixar ao parlamento a liberdade de decidir, face às conclusões a que se chegar, o caminho a seguir, sem excluir a possibilidade da abertura de um processo de revisão constitucional, se esse for o consenso que os parlamentares obtiverem.

Aliás fazia todo o sentido que assim fosse, face à existência no parlamento de uma Comissão Eventual para a Reforma do Parlamento que está a trabalhar na alteração das leis como o Estatuto de Deputados, o Regimento e a Orgânica da Assembleia Nacional. E já agora, por que não criar uma Comissão de Revisão Constitucional, desde que entre uma proposta de revisão constitucional, permitindo um trabalho articulado e de adequação das legislações ordinárias num quadro constitucional em revisão?  

Para um parlamento adulto não existe assuntos tabus, qualquer matéria é tratada e debatida com responsabilidade, e tratando-se de matéria sensível, deverá imperar o sentido de Estado, não sendo necessário, para o caso, fazer-se um debate a porta fechada.

Finalmente, a investida do Humberto Cardoso contra a petição e contra os peticionários fica melhor espelhada nesta passagem do seu texto quando insinua maquiavelicamente que  “Imagine-se o clamor que virá a seguir se for o PR a indeferir ou se o parlamento convocado extraordinariamente considerar que não é da sua competência reapreciar decisões judiciais. A dúvida que fica é se não é precisamente isso que se pretende provocar.

Há já algum tempo que se tornaram visíveis as tentativas de transformar o descontentamento justificado com a morosidade da justiça em hostilidade dirigida ao poder judicial e em contestação da integridade dos juízes e procuradores”.

Cardoso maliciosamente antecipa cenários e antevê tumultos que poderão surgir com uma eventual rejeição da petição, construindo cenários distópicos sobre uma realidade que só a sua imaginação fértil é capaz criar.

Pior do que isso, chega a tratar os subscritores como um ex-presidente da Assembleia Nacional, como um ex-primeiro-ministro, como ex-membros do governo e deputados, como um constitucionalista, com contributo inestimável na elaboração da constituição,  e outros tantos, como “rapazes sem juízo” que andam a preparar “conspiração” contra o regime e a perseguir a justiça, para, eventualmente, se instalar em Cabo Verde uma democracia iliberal.

Com devida consideração, entende-se que a arrogância deveria ter limite, que seria o de respeitar o percurso, as contribuições e a história das pessoas, sob pena de cairmos num totalitarismo da ordem estabelecida, onde a pluralidade de opiniões e o respeito devido às opiniões contrárias são sacrificados no altar da intolerância e da unicidade procedimental e comportamental.  

Às vezes, sem querer, soltamos alguns fantasmas “não democratizados” que emergem das profundezas do nosso inconsciente e escapam ao nosso controlo racional. É bom estarmos atentos a isso.

Os peticionários utilizaram um instrumento político para provocar um debate político e não jurídico, e um parlamento que não consegue debater politicamente questões constitucionais reclamadas por cidadãos, o melhor que terá a fazer, é simplesmente fechar as portas.  

A Constituição da República deve ser um instrumento que une a nação, e que todos nela se sintam e se revejam nos seus princípios e valores. O consenso político-social a volta da constituição a partir de 2010, protagonizado por atores legitimamente investidos, não pode ser quebrado por entes não investidos de legitimidade democrática, por, no entendimento dos subscritores, a sua ação não se compaginar com o Direito Democrático, sublinhamos: Direito Democrático.

Bendito o país que tem uma sociedade civil que se ergue para defender a constituição, e que usa os mecanismos que a própria constituição estabelece para fazer valer o seu direito e a ser escutado, colocando as suas dúvidas e inquietações aos seus legítimos representantes.

Bendito, esse país!

Porém, e sobre esta decisão que deu origem a esse clamor cívico? A omissão de Humberto Cardoso é completa.

E fica aqui a citação:

“Ora, admitindo-se o costume constitucional contra a Constituição como o Tribunal admite, tal significa que se pode aceitar um efeito derrogatório em relação à norma do nº 1 do artigo 148º da Constituição da República. Assim, a resolução nº 3/X/2021, de 12 de julho, da Comissão Permanente não é inconstitucional por ser conforme a norma costumeira constitucional”.   

Ou seja:

Em sede da verificação da constitucionalidade, porque afinal o Estado de Cabo Verde rege-se pelo princípio da constitucionalidade, decidiu-se:

1) Derrogar uma norma constitucional escrita para viabilizar um ato normativo inconstitucional ou não conforme à constituição;

2) Declarar a resolução nº 3/X/2021, de 12 de julho, da Comissão Permanente, não inconstitucional, não por estar de acordo com a constituição escrita, mas por ser conforme a norma costumeira constitucional;

3) A norma costumeira invocada tem a força derrogatória sobre norma da constituição escrita, assumindo-se a característica de norma supra-constitucional.

Sobre isto, o amigo, Humberto Cardoso, disse ZERO.

Há silêncios significativos.

 

[1] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I – 2007, consideram, ao comentarem o artigo 52º da Constituição Portuguesa sobre a Petição, que a lei fundamental portuguesa  “configura o direito de petição, lato sensu(nº 1) como direito político, como instrumento de participação dos cidadãos na vida política (v. nota I ao art. 48º). Admite que a petição se dirija quer à defesa de direitos pessoais (reclamações e queixas), quer à defesa da Constituição, das leis ou do interesse geral (petições stricto sensu e representações). A caraterização do direito de petição como um direito de participação política, e não como como direito pessoal, justifica que ele possa ser exercido independentemente da existência de qualquer gravame pessoal ou lesão de interesse próprios. Ou seja, em defesa da legalidade constitucional ou do interesse geral (cfr. L. nº 83/95, direito de participação procedimental e de ação popular). No entanto, além de um desafio de participação política em si mesmo, o direito de petição é também, tal como o direito de ação popular (art. 20º) uma garantia em sentido próprio. De natureza extrajudicial, para defesa de todos os direitos e interesses legalmente protegidos, a começar pelos demais direitos, liberdades e garantias”.   

 

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