Governar em Democracia
Ponto de Vista

Governar em Democracia

A governança tão séria como é não pode ser deixada apenas nas mãos dos governos. E dos políticos. A sociedade civil é chamada em todos os momentos, máxime os críticos, a dizer da sua justiça, denunciar as más práticas, reivindicar ou aplaudir, conforme couber. Os governantes - disse de mim em tempos o saudoso Manuel Delgado - são nossos funcionários. Governam em nome de nós todos recursos que são de todos nós . Em democracia, “esperamos e exigimos de uma forma democrática que a sociedade tenha precedência sobre o Estado, que os governados e o governo aceitem o princípio de que o Estado está a serviço dos cidadãos, e não os cidadãos a serviço do Estado, que o governo existe para o povo e não o contrário(Sartori, Giovanni (1994), A Teoria da Democracia Revistada (Vol. I, O Debate Contemporâneo), Brasil, Editora Ática, p.57).

Indignou-me sobremaneira a forma como a maioria parlamentar tratou a questão da imunidade parlamentar. Desde a década de 90, foi negociado um compromisso entre o MPD, então no poder, e o PAICV, em como, em nenhuma circunstância, seria levantada a imunidade a um Deputado, a não ser que este se exprimisse absolutamente nesse sentido.

Em 2001, quando o PAICV assumiu o poder, este compromisso manteve-se e vários Deputados, da oposição e da situação, a coberto da imunidade parlamentar, deixaram de responder a processos crime, de corrupção e outros mais graves, então instaurados.

Sempre questionei a forma como era tratada a questão da imunidade. Mas para o MPD tão sagrada era a questão, podia por em causa a separação de poderes, a independência dos Deputados e o papel da oposição democrática e abrir caminho à instrumentalização da imunidade pela maioria, que sempre advogou a sobrevivência do consenso da década de 90.

Quando assume o poder, em 2016, o MPD mantém a mesmo posicionamento, não aceita levantar a imunidade parlamentar a seus Deputados, até que chega o primeiro pedido de suspensão da imunidade parlamentar de um Deputado do PAICV. Decide fazer uma outra leitura, eventualmente mais conforme, da letra e do espírito da Constituição da República, e opta por mudar unilateralmente de posição sobre tão delicada questão, sem sequer abrir espaços de negociação com a oposição democrática.

O MPD tem uma concepção belicosa da política. O objectivo essencial é hostilizar e destruir o outro, sem complacência, utilizando as armas do poder. Para o MPD, a sua sobrevivência passa pela destruição do inimigo, com ternura. Sob a capa de um discurso anti corrupção e imoralidade na gestão da coisa pública, contorce a verdade, manipula a comunicação social pública, e apresenta-se como o moralista de serviço, que promove o rigor, a transparência, a prestação de contas, a equidade e a responsabilidade como valores cimeiros. Os outros são corruptos, imorais e devem ser banidos. Nós os democratas, os promotores da democracia, da boa governança, a tudo temos direito, tudo podemos, inclusive eliminar os maus do sistema, os “lobos vestidos de cordeiro”. É a necropolítica ou política do terror, na acepção de Achille Mbembe, ou o biopoder, na significação que lhe é dada por Michel Foucault, a política como instrumento de aniquilamento, por todos os meios, do inimigo.

Nessa questão da imunidade dos Deputados não pode haver dois pesos e duas medidas. Desejando mudar as regras do jogo, considero aliás mais razoável o entendimento da imunidade parlamentar vazada na Constituição agora expendido pela maioria parlamentar, devia o MPD dialogar com a oposição e consensualizar novas regras, as quais deverão, doravante, abranger a todos. O que não se pode fazer em democracia é, na calada da noite, por ter a maioria, decidir unilateralmente alterar os consensos anteriores, com o único intuito de fragilizar a oposição democrática.

Um Estado de Direito Democrático consolidado exige um governo forte e uma oposição forte. Não se pode falar em liberdades e democracia, tentando a todo custo, a toda a hora, destruir a oposição tida como a inimiga do sistema e criar um clima de medo e de intolerância. “a democracia não é.. puro e simples poder da maioria. Na verdade, “poder da maioria” é apenas uma fórmula condensada para poder limitado da maioria, para um poder restrito da maioria que respeita os direitos da minoria... Democracia não é poder sem reservas (irrestrito, portanto) da maioria” (Sartori, Giovanni (1994)A Teoria da Democracia Revisitada (Vol.I, O Debate Compemporâneo), Brasil, Editora Ática, p.53).

Não temos alternativa à democracia. Os homens e as mulheres de boa vontade devem, pois, com nobreza e liberdade de espírito, lutar pela consolidação da democracia, porque ela é “o principal remédio contra o abuso do poder”. (Bobbio, Norberto (1983), Qual Socialismo, Brasil, Paz e Terra, p.85).

José Maria Neves

 

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